Livros do Escritor

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quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

Para quê??? II


 

Há uma questão que nos assalta, durante a vida, pelo menos três vezes, ele experienciou-a, assim que estacionou o carro, naquela tão comprida garagem –  parecia um carrito de brincar ali colocado pela mão de uma criança, havia algo de enternecedor na sua solidão no meio daquele amplo espaço, dele parecia emanar um grito envergonhado de desamparo –, pela primeira vez (“O que fui fazer à minha vida?!”), viveu este drama no silêncio de si, embora lhe denotasse um entusiasmo contido, como se caminhasse por terrenos desconhecidos, não se podia permitir inquietá-la com os seus dramas, a mudança levou-lhes cerca de metade das férias, o restante seria para se adaptarem, sentiram-se, desde o primeiro instante, olhados, pelos locais, como estranhos, uma indizível, mas tão palpável, barreira, talvez provenientes de um outro mundo, apesar dos laivos de urbanismo de alguns campónios, uma das piores misturas possíveis, que infelizmente foram conhecendo, também eles, em verdade, não disfarçavam o olhar, derramado em redor, que lhes gritava, sem verbo, “Parolos, parolos, parolos…”, assim se materializava uma latente hostilidade, os regionalismos e a pronúncia, em múltiplas situações, deixavam-nos atónitos, ela sempre mais maleável em se adaptar, ele sozinho perante uma questão que o ameaçava submergir (“O que fui fazer à minha vida?! O que fui fazer à minha vida?! O que fui fazer à minha vida?!”), guardou-a, por enquanto, para si, não queria, nestes momentos iniciais, turvar horizontes, passada uma semana, a penúltima das férias, ele “Que dizes de irmos passar a última semana lá… Assim, aproveitamos para rever…”, a luz pela face dela foi esclarecedora, essa ideia já a habitava, na manhã seguinte, puseram-se ao caminho, assim que, pelo retrovisor, a urbanização nova, bastante jardinada, prédios baixos, somente dois andares, sentiram-se rejuvenescer, sorrisos espontâneos pelos rostos, entre eles o diálogo aligeirava-se, e cada um, de si para si, orava para que essa semana se tornasse eternidade, compreenderam dolorosamente que ali não queriam regressar, após mais de duas horas, à sua frente, o mar de três décadas recebia-os sob a luz alegre e estival de Agosto, sentiu um gélido metal trespassar-lhe o coração, olhava aquele horizonte azul de três décadas, pela primeira vez, como forasteiro, a dor provinha de, finalmente, compreender que aquela é a sua casa, à vista do mar de três décadas, da luz alegre e estival de Agosto, de lhe vislumbrar dor pelo rosto, ela pousou a mão sobre a dele, procurou suavizar a dor de um coração trespassado, aquietar-lhe uma dor tão desabrida, entre falanges murmurou-lhe que haviam de corrigir tão grosseiro erro, a eternidade desconhece o tempo, essa semana acabou por se lhes afigurar um instante, uma ida à janela para ver que tempo lá fora, ou nem isso, regressaram de noite, nela, agora, uma certeza pétrea de caminhar para uma noite infinda, só o ruído do motor atenuava o silêncio doloroso entre eles, três horas depois – a contrariedade foi proporcional à velocidade –, ele a sair do carro para abrir a garagem, de novo, o grito envergonhado de desamparo do carrito de brincar ali colocado pela mão de uma criança, o prédio ainda só por eles ocupado, nos outros edifícios também só duas ou três casas, como lhes custou subir aqueles degraus, abriram a porta e nem memória de “Meu Deus! É enorme… E lindíssima…”, nada, deixaram-se cair na vasta cama que haviam comprado, entre muitos outros móveis, adormeceram somente pelo cansaço, um sono com as portas totalmente fechadas ao sonho, o dia seguinte era o último das férias, quando ele despertou, deixou-a dormir, e foi até à ampla varanda da sala, em frente tinha outro prédio, de dois andares, a uma distância razoável, não, por ali não haveria sombras de betão que o asfixiassem, as sombras já nele se alojaram, olhou o horizonte possível, as copas de umas árvores na lonjura, até lá o indefinível entre a modernice da urbanização e o rústico de casebres desalinhados pela paisagem, fechou os olhos e concluiu “Aqui jamais serei feliz! Eu não pertenço a este lugar!”; talvez uma das mais dolorosas inferências (“Aqui jamais serei feliz! Eu não pertenço a este lugar!”), tentou contrariar, uma vez mais, com as copas de umas árvores na lonjura, surgiram-lhe negras, contorcidas, imóveis, funestas, nem vislumbres do propalado bucolismo rural, apenas um inquietante silêncio em redor, não estava, de todo, familiarizado com tal, havia sempre um rumorejar à sua volta, nem que fosse o trânsito – como se um fenómeno natural –, fechou os olhos e repetiu para si “Aqui jamais serei feliz! Eu não pertenço a este lugar!”; olhou o céu e mais lhe pesou o pensar, nem vestígios do horizonte azul de três décadas, só na sua memória, quem sabe numa outra existência, mantinha-se pardacento, as coisas do mundo sem a dignidade de uma sombra, e o silêncio a intensificar-lhe os ecos interiores, era uma alma desarrumada, são as únicas que procuram a lonjura, possivelmente aí serenem os seus inclementes gritos, reflectiu na dignidade dela em não partilhar o seu sofrimento, também concluíra há dias suficientes “Aqui jamais serei feliz! Eu não pertenço a este lugar!”, os cento e trinta e seis metros quadrados, do andar de cima, estavam ao abandono, os passos da sua imaginação imobilizaram-se, “Aqui jamais serei feliz! Eu não pertenço a este lugar!,” regressou para dentro, se lá fora as coisas do mundo sem a dignidade de uma sombra, ele sentiu que as sombras foram aglutinadas ali, naquela casa, a meio do corredor olhou a escada para o andar de cima, apenas uma escuridão opressiva, foi até ao quarto, ela ainda dormia, os lábios levemente sorridentes, talvez, nesses momentos, ainda estivesse num lugar onde não houvesse noites sem prenúncios de amanhãs.

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