Andava a adiar a coisa, eu bem sabia porquê, sempre detestei
esperar, e ali não se fazia outra coisa, mas o que ela insistiu para que eu…,
depois já não conseguia com os joelhos, como morávamos num 2º andar, o problema
recorrente, nunca fui homem de estar muito tempo quieto, detestava televisão,
ao contrário dela, que se perdia dias a fio com aquilo, não me importava nada
com isso, enquanto via as novelas, ao menos, deixava-me em paz, coitada, nem me
chateava muito, mas acontece que, às vezes, eu gosto de estar cá comigo, com as
minhas coisas, a relembrar isto e aquilo, e, nesses momentos, não gosto que me
arranquem de onde estava, é um pouco como quando estamos do lado de lá dos
sonhos e algo nos faz relembrar o aqui, o despertador, uma buzina, a porta demasiada
de um vizinho, um ladrar, sei lá, tanta coisa a empurrar-nos sempre para o lado
de cá das coisas, de facto, ela, neste particular, era pródiga, podia estar
noutra divisão da casa, no entanto, a sua voz omnipresente O que queres para o almoço? Já tomaste o comprimido do colesterol? E o
da tensão? Já viste como está o colarinho desta camisa? Sabes o que aconteceu à
vizinha do… Deixava de ouvir, a partir deste exacto ponto, um semi-sorriso
no rosto e anuía compassadamente, como se acompanhasse aquele desvelo que, para
mim, se podia desenrolar em Marte, é curioso, tantos anos sob um mesmo tecto,
porém, nunca encontrei arrojo para lhe confessar que aqueles enredos não me
interessavam minimamente, às vezes, talvez para colorir a coisa, deixava uma
questão no ar, aí, fruto da experiência, apoiava o queixo na mão, ar de
pensador tudo vence, e emitia um arrastado Realmente…,
certificada de que a estava a acompanhar, ela, com renovadas forças, logo se
atirava para uma nova trama, às vezes, na vida, termos um ouvinte é tudo,
basta-nos tão pouco, mas esta mania do mais, amanhecia um Outono a cumprimentar
Inverno, um desses dias tão cinzentos que parecemos flutuar sobre a existência,
logo que assomamos à janela do mundo, percebemos que nada perdurará na memória,
talvez por uma impressão desconfortável de um cinzento demasiado, assim que
abri a porta da rua, compreendi uma latente ameaça de chuva, ela fez questão de
me acompanhar, percorremos os trezentos metros até ao destino, de guarda-chuva
na mão, embora fechado, e de olhares para os céus, àquela hora já uma bicha
significativa, reparei, com curiosidade, na quantidade de olhares no passeio,
às vezes questiono-me se perdemos a capacidade de nos olharmos, de nos
reconhecermos enquanto seres da mesma espécie, jamais diria de nos
compreendermos, para isso, não são precisos livros, basta olhar à volta por
meio-minuto, chegámos à recepção após quase uma hora de espera, cartão de uma
coisa, número de outra, consulta para a tarde, então porquê vir de manhã, e o
médico que ainda não chegou, mas não convém ir embora, mas porquê, se a
consulta só de tarde, a resposta que não uma resposta, por tão vaga, tão
automática, procurei-lhe humanidade sabendo da dificuldade de tal empreitada,
mesmo assim, persisti, o rosto sempre com o ecrã, acho que nunca nos olhou, por
ali, também olhares de passeio, mas sem haver passeio, de novo, questiono-me se
perdemos a capacidade de nos olharmos, ou talvez já não o faça, com a questão
nasce sempre a resposta, nós é que sempre desatentos para estas singularidades
da existência, insisti Então, porquê vir
de manhã? Logo a educação em ruínas, certamente nunca por ali habitou, uma
expiração que, de tão sonora, roçou a imbecilidade, Os senhores é que sabem da vossa vida. Se quiserem esperar, esperam, se
não quiserem, podem ir-se embora. Agora, se perderem a vez, não se venham para
aqui queixar… Estou a avisar: vagas para consultas, só daqui a seis meses! Ela,
como sempre, a apertar-me, com gentileza, o braço, já sabia que queria dali
sair, era quase um código nosso, apesar de nunca o estipularmos, quando se
partilha os passos desta vida, há coisas e lugares onde as palavras não cabem,
e isso é bom, ponto final. Fomo-nos sentar e viver a espera, quando já nada
esperamos, continuam a obrigar-nos a esperar, chego à conclusão de que a vida
se resume a uma enorme ironia, parece sentir gozo em se rir na nossa cara, como
se no seu enleio nos conduzisse ao ponto de onde julgáramos ter partido há
tanto, e, afinal, ainda ali estamos, com o seu risinho desdenhoso diante de
nós, para ali ficámos, à nossa volta, mais olhares de passeio, uma questão em
mim (Em que momento deixámos de nos
olhar?), talvez por isso, eu saia cada vez menos, já aqui não pertenço,
ainda bem que ela com uma revista, pelo menos, não se perde em questões, mas
esta invernosa fonte nunca me secou, a certa altura, as costas manifestaram-se,
ao meu redor, já uma outra luz, é sabido que tudo muda, ou talvez não, uma luz
cansada, a revista já outra, por ali, o passeio menos olhado, nisto, o meu nome
ecoa pelos corredores, pareceu-me que chamavam um outro, tal a distância na
articulação das sílabas, uma vez mais, neste dia, procurava humanidade, agora
era eu em olhares de passeio, em busca de algo, quiçá alguém tenha deixado cair
qualquer coisa que nos ilumine o momento, pelo meu braço, gentileza, na forma
de um código muito nosso, lá nos levantámos, meio trôpegos de tanta espera,
ainda inebriados da surpresa do nome a ecoar pelos corredores, agora por uma
segunda vez, recebeu-nos, também pela segunda vez nesse dia, um rosto debruçado
para um ecrã, ainda não nos sentáramos e uma voz, como se de outra margem, Então, o que o traz por cá? De que se
queixa? Tem alguma dor? Acabaram-se-lhe as receitas? Não me cheguei a
sentar, desta vez, fui eu em gentileza para o braço dela, um código muito
nosso, se há coisa que a idade ensina é a sair de cena sem se dar muito por
isso…
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.