Não me lembro do nome dele, mas isso também é o menos importante, porque no fim o que fica é sempre o rosto, e foi por aí que facilmente o reconheci, hoje, na cada vez mais sofrível operação de abrir a carteira por umas gotas de combustível, a meio da tarde, ali estava ele, muito direito, na fila para pagar, o cabelo, ainda o mantém, menos mau, impecavelmente penteado, apesar da neve dos anos, percebi que pagou com uma nota e recebeu moedas, diligentemente arrumou-as, passou por mim, mas não me reconheceu, ser-lhe-ia impossível, eu ainda criança quando já ouvia falar dele, no entanto, algo retinha a minha atenção quando aquele nome ecoava lá por casa, não tanto o nome como os actos, como se uma certa tragicidade, claro que lhe acompanhei os passos, com a devida discrição, enquanto aguardava pela minha vez de pagar, dirigiu-se para um utilitário com aspecto de cinquentão, embora devidamente barbeado, lá dentro, uma companhia feminina, no entanto, o interior da viatura não lhe velava o carácter rotundo, mesmo o rosto não disfarçava traços de subúrbio em fins-de-semana cinzentos, o cabelo com um quê de arame farpado reluzente à força de muita tinta, ostentava um olhar inexpressivo que não se alterou com a chegada dele, que continuava muito direito, mesmo sentado, antes de arrancar, os óculos escuros, não sei porquê, mas enterneceu-me aqueles gestos cinematográficos em tão desolador cenário, e lá foi, aquela memória, assim que despertada, demorou a partir, ainda por aqui andou um par de dias, não são as coisas que nos interessam, mas quem nos éramos, e como, quando as vivemos, esse é um dos enigmas dessa coisa a que chamamos memória, no fundo, trata-se da muralha individual última face ao tempo, tinha eu terminado há umas semanas a escola primária, quando ouvi minha mãe Já viste! E tem a mania que é rico… E, na realidade, é um pobre coitado… Até desempregado está! Coitada daquela mãe… Meu pai limitava-se a anuir, via-o, sem o ver, entretido com algo, mas sem deixar de se expressar com um gesto, certa vez, até contou a história de alguém, lá da terra, que colocava, no bolso do casaco, as tampas das canetas (era só o que tinha), contudo, para os outros, além de letrado, passaria uma imagem de posses, fascinou-me aquela teatralidade, não sei porquê, parecia-me haver por ali uma dualidade que só encontrava nos super-heróis, como se uma identidade secreta e outra imagem pública, apesar de viver num humilde rés-do-chão, que partilhava com a mãe, com um só quarto, ele dormia na sala, falava, recorrentemente, de propriedades na província, algumas com vastos hectares, quem não o conhecia, emocionava-se de estar perante tão nobre linhagem, não nos podemos esquecer de que cada frase era emitida com aquela sua peculiar postura muito direita, as mãos nos bolsos e com um desassombro só possível a quem conhece a realidade dos factos, nunca percebi se ele acreditava nas suas palavras, também nunca o perguntei, certa vez, ainda pensei abordar minha mãe, porém, esse pensamento não caminhou muito, de certeza que acharia estranho o meu interesse por tal figura, ainda poderia argumentar, em meu favor, a analogia com os super-heróis, mas sei que a sua resposta fulminante não tardaria, como uma sentença sobre a minha cabeça (Estou cansada de te dizer que mentir é feio!), apesar disso, eu sabia há tanto que a mentira é necessária, se assim não fosse, Peter Parker, Clark Kent, Bruce Wayne, Matt Murdock, e tantos outros, não teriam um minuto de sossego nas suas vidas, é estranho, mas para o miúdo que eu fui, aquela vida dupla era a que mais se aproximava das páginas que eu incessantemente devorava, várias vezes, dei por mim, coisa rara, a ouvir atentamente os meus pais, para saber dele, se alguém o desmascarou, se caiu nalguma cilada, se a sua identidade se mantinha secreta, que fascinante seria aquela vida, saía todas os dias daquele obscuro rés-do-chão, enfrentava ameaças oriundas dos mais recônditos pontos do universo como um super-proprietário, atenção que tinha hectares e hectares na província, por fim, à noite, regressava ao seu sofá cama para recuperar os poderes desgastados… Quantos se podem gabar de uma vida assim? Adrenalina a cada canto? Se um dia se lembrasse, antes de sair de casa, ainda podia colocar umas tampas, de caneta, no bolso do casaco, creio que, aí, o sistema solar seria pequeno para ele.
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