Via-se,
agora, diante de si, pelo vidro anoitecido, à sua volta vultos e vultos, alguns de pé, um cheiro a condensação em volta, do seu lado esquerdo, o barulho do saco-de-plástico
ininterrupto, prefere nem olhar, a audição já é suficiente para o iminente
liquidar da paciência, uma senhora hirta à sua frente, olhar nos sapatos,
caminhava pela idade dos desencantos, a compreensão do adeus aos sonhos, no
feminino é sempre mais doloroso, não fossem as fadas mulheres, olhou-a e
reparou no anelar despido, só a marca se lhe gravara, e talvez não se diluísse,
a biografia reflectida nos dedos, o saco-de-plástico sem dar tréguas, opta por
um sonoro suspiro, mas insuficiente para a volumetria do barulho, nisto o regresso de um apelo, por tão familiar voz, “Não vás para lá! Ouve, vais arrepender-te! E a segurança,
homem, e a segurança… Um vai-e-vem constante, a falta de espaço… Vais
arrepender-te! Mas a decisão é tua!”, como tudo na vida, luz e sombras
sucedem-se, de outro modo, agora, aqui, dá razão à tão familiar voz, há dois
fins-de-semana, visitou essa e outras vozes, mais de duzentos quilómetros de
ida, outros tantos de volta, chegaram por volta da hora de almoço, ela sempre
com um pé-atrás na presença da sogra, parecia inato, tal como o ar inquiridor
da velha, as crianças, dois rapazinhos, prontamente correram para os braços da
avó, ela contemplou a cena ainda dentro do carro, ele já com um pé de fora,
antes de cumprimentar a mãe, olhou em volta e inspirou, mas sempre uma tristeza
a turvar-lhe a expressão, num canto de si tinha a esperança de se reencontrar,
algures, por ali, em correrias, jogos, brincadeiras, a paisagem permanecia inalterada,
apenas o ele de ontem fora subtraído, baixou o olhar consciente da derrota,
talvez o mundo não sinta tanto assim a nossa falta, já com os dois pés fora do
carro, encaminha-se para cumprimentar a mãe, ela com os dois pés ainda dentro
do carro, por fim, abre a porta com parcimónia, a velhota mantinha-se de braços-abertos
à espera do filho, só os baixou quando viu a nora dirigir-se-lhe, há
hostilidades impronunciáveis e de fonte-incógnita, embora perdurem, e com o
tempo recrudesçam, “E o pai, onde está?”, “Onde queres que esteja? No lugar
do costume, lá em baixo, a tratar das hortas,” a
frase ainda não lhe ressoava “… lá em baixo, a tratar das hortas,” com
um gesto apontou-lhe para a lonjura, quando, neste momento, via-se, diante de si, pelo vidro anoitecido, à sua volta
vultos e vultos, o saco-de-plástico, do seu lado esquerdo, acaba de proclamar
tréguas, com as luzes exteriores, o seu rosto dilui-se
do horizonte, um som demasiado artificial,
portas abrem-se, uns saem numa pressa desmedida, outros entram para os
seus lugares, numa cadência similar, o som demasiado artificial repete-se, as
portas fecham-se, as luzes exteriores ficam para trás, de novo, , diante de si,
pelo vidro anoitecido, o seu rosto, “Vou lá ter com ele!”, “Não queres
comer nada antes? Entra, primeiro, um pouco, comes qualquer coisa e já vais ter
com o teu pai…”, “Os miúdos entram contigo, devem ter fome, eu vou lá…”, “Eu
vou contigo!”, o tom sem permissão para réplicas, a sogra olhou-a de lado,
nada verbalizou, ele, de certa forma, aguardava esta frase, lá foram, pelo
caminho detiveram-se na figueira onde, certa tarde, de um ontem, celebraram o
seu amor, era Verão, a sombra afigurou-se-lhes convidativa, “Lembras-te de
que foi aqui…”, “Sim, claro, mas não me arrependo de…”, “Não há um dia, em que
não regresse…”, “Não vale a pena
falarmos, uma vez mais, dessa conversa”, “Porquê? Era imperativo irmos viver
para a cidade?”, “Não quero discutir!”, “Ninguém está a discutir! Dialogar,
para ti, é discutir? Uma boa forma de fugires da questão…”, “Repeti-te, até à
exaustão, o único motivo para aqui ficares, era por não conseguires
emancipar-te dos teus paizinhos! Repara: sempre que férias, feriados, vimos
para aqui a correr! Não conhecemos outra coisa…”, “Sabes bem como está a saúde
do meu pai, depois da trombose não foi o mesmo”, “Se não fosse isso,
arranjarias outra desculpa”, “Não te bastou termos, por fim, mudado as nossas
vidas para a cidade?”, “Eu mudei, tu não! Pensas que não reparo nos teus
silêncios nocturnos à janela, que baixas o olhar para não cumprimentar os
vizinhos, na expressão de rafeiro-abandonado quando sais e regressas do
trabalho? Só alegria pela tua face quando para aqui vimos… Esta aldeola
horrorosa perdida no meio do nada!”, olhou com saudade a sombra da figueira,
ela não reparou, mas tinha razão num aspecto, o vidro-anoitecido, agora,
devolvia-lhe a expressão de um rafeiro-abandonado, embora um tremeluzir no
olhar indiciasse saber a direcção do lar, “Só daqui estar mais de uma hora,
sinto-me a sufocar… Não há nada para fazer! Isto é um horror! Só moscas,
casebres, galinhas, dejectos pelo chão, não compreendo, de todo, como podes
achar alguma graça a isto…”, o pai reparou neles à distância, descansou a
enxada entre as mãos, secou a testa com o lenço que trazia no bolso, e
aguardou-os, ela acenou de uma distância segura, a terra revolvida
desaconselhava a sua progressão com os saltos, o filho nem reparou, foi
prontamente ao encontro do pai, “Estás infeliz,
rapaz!”, nem ousou resposta, também não a conseguia construir, “Estás
infeliz, rapaz!”, uma evidência diante de si, pelo vidro anoitecido, “Lembra-te:
não foi por falta de aviso! Hoje desaprendeu-se de reparar na direcção do olhar
do outro. E como é importante! Quando não se olha na mesma direcção… Chegaste
aqui sozinho, e poucos passos faltavam…”, ela permanecia nas faldas daquele
reencontro, nenhuma sílaba lhe chegava, também não se importava muito,
limitara-se a um breve acenar para o sogro, as suas mãos não largaram a enxada,
felizmente ali ainda tinha rede, foi-se recriando com as futilidades
potenciadas pelo amo do hoje, o seu rosto dilui-se do horizonte, um som
demasiado artificial, portas abrem-se, chegou a sua estação, uns saem numa
pressa desmedida, junta-se ao cortejo, nisto o regresso de um conselho, por tão
familiar voz, “Se há muito a perder? Sim, sem dúvida, mas nunca te esqueças
do essencial: não te percas a ti! Quanto àqueles dois, enquanto tiverem um colo
para correr, o mundo será uma Primavera.”
Pedro de Sá
(31/10/23)
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