Livros do Escritor

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domingo, 22 de outubro de 2023

EEEEEEEEiiiiiiiiiiiii


 

Andava no seu quotidiano, entre mesas, a servir, recolher moedas, devolver as necessárias para que boas contas, quando, de repente, ouve um arrastado e quase suplicante A… V… C…, olha o sujeito, sentado, camisa aberta até ao umbigo, de onde saía uma demasiada proeminência abdominal, numa palidez excessiva, sem saber bem porquê, o seu olhar no umbigo dilatado, tão similar ao da sua mulher, nos últimos meses de gravidez, uma circunferência onde cabia perfeitamente a moeda de maior valor em circulação, daquele exacto ponto não se distinguia se uma gravidez, se descuido alimentar, o arrastado e quase suplicante A… V… C… repetiu-se, a aflição tomou conta de si e foi lesto em aproximar-se do indivíduo, “Está tudo bem consigo? Quer que chame uma ambulância? Olhe para mim! Responda, por favor…”, neste ponto, o pânico ameaçava dominá-lo, só lhe faltava mesmo, no seu turno, um cliente falecer, o sujeito repetiu A… V… C… Tive há uns anos…”, no mesmo tom arrastado e quase suplicante, olhou-o com alívio, chegou a respirar fundo, embora a sua expressão não conseguisse maquilhar, por inteiro, a raiva que o susto lhe causara, tanto quanto a sua memória alcançava, seria a primeira vez que, ao tentarem passar-lhe uma informação, tamanho pânico lhe causaram, recuou um passo, olhou, com maior atenção, o indivíduo, já entrara no Inverno da existência, não obstante a camisa desabotoada até ao umbigo, denotava-se ter caminhado, durante anos, talvez décadas, pelas ex-colónias, há uma coloração, nas vestes de quem por lá respirou, muito própria, denotava-se um desmazelo generalizado, das roupas à aparência, a barba de dias, uma boina desbotada em desequilíbrios na cabeça, a camisa desabotoada até ao umbigo transparecia o desarranjo interior, contudo, um olhar mais atento compreenderia que havia sido outro, com laivos de galã, pois, a eterna incógnita do amanhã, temor de deuses e de homens, quem diria que este sujeito, sentado diante dele, de aspecto andrajoso, camisa desabotoada até ao umbigo, a emitir um arrastado e quase suplicante “A… V… C…”, rematado, há pouco, para seu alívio, com “A… V… C… Tive há uns anos…”, tivera ambições de galã? No dia seguinte, à mesma hora, lá entra ele, desta vez, o seu olhar acompanhou-lhe cada passo, compreensível, após o susto vespertino, apoiava-se numa bengala, só agora se apercebia de tal, senta-se numa mesa disponível, e, de imediato, começa a desabotoar a camisa, ele ainda olha interrogativamente para uma colega, que estava ao balcão, como resposta apenas um encolher de ombros, pois, para quê gastar verbo, de repente, entre o desabotoar, solta um EEEEEEEEiiiiiiiiiiiii, só dois ou três clientes olharam na direcção daquela mesa, ele na dúvida se ria ou lá fosse pedir contenção, o barrigão, nesta altura, já começava a despontar, entre o esforço dos botões, uma vez mais ecoa EEEEEEEEiiiiiiiiiiiii, achou que teria de refrear o entusiasmo, dirige-se para lá, a boina desbotada já sobre a mesa, “Ora boa-tarde! Então, é o habitual cafezinho?”, como se ali sozinho estivesse, solta um novo EEEEEEEEiiiiiiiiiiiii, levanta o olhar e diz-lhe: “Você hoje vai dar-me boleia para casa! Sabe, estou muito cansado,” não obstante estas palavras, olhou o indefinido e novo EEEEEEEEiiiiiiiiiiiii, neste ponto, o umbigo já era banhado pela luz do dia, uma vez mais, diante dele, aquela circunferência onde cabia perfeitamente a moeda de maior valor em circulação, tão similar à da sua mulher, nos últimos meses de gravidez, lá teve de anuir ao pedido de boleia, não lhe fosse chegar um arrastado e quase suplicante “A… V… C…”, havia uma questão que não pôde silenciar, “Mora aqui perto?”, presumia que sim, pelo sim, pelo não, os seus cálculos estavam no número de EEEEEEEEiiiiiiiiiiiii, que teria de ouvir até deixá-lo em casa.

Pedro de Sá

(22/10/23)

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