Andava no seu quotidiano, entre
mesas, a servir, recolher moedas, devolver as necessárias para que boas contas,
quando, de repente, ouve um arrastado e quase suplicante “A… V… C…”, olha o sujeito, sentado, camisa aberta até ao umbigo, de onde saía uma
demasiada proeminência abdominal, numa palidez excessiva, sem saber bem porquê,
o seu olhar no umbigo dilatado, tão similar ao da sua mulher,
nos últimos meses de gravidez, uma circunferência onde
cabia perfeitamente a moeda de maior valor em circulação, daquele exacto
ponto não se distinguia se uma gravidez, se descuido alimentar, o arrastado e
quase suplicante “A… V… C…”
repetiu-se, a aflição tomou conta de si e foi lesto em aproximar-se do indivíduo,
“Está tudo bem consigo? Quer que chame uma ambulância? Olhe para mim!
Responda, por favor…”, neste ponto, o pânico ameaçava dominá-lo, só lhe
faltava mesmo, no seu turno, um cliente falecer, o sujeito repetiu “A… V… C…
Tive há uns anos…”, no mesmo tom arrastado e quase suplicante, olhou-o
com alívio, chegou a respirar fundo, embora a sua expressão não conseguisse
maquilhar, por inteiro, a raiva que o susto lhe causara, tanto quanto a sua
memória alcançava, seria a primeira vez que, ao tentarem passar-lhe uma
informação, tamanho pânico lhe causaram, recuou um passo, olhou, com maior
atenção, o indivíduo, já entrara no Inverno da existência, não obstante a camisa desabotoada até ao umbigo, denotava-se ter
caminhado, durante anos, talvez décadas, pelas ex-colónias, há uma coloração,
nas vestes de quem por lá respirou, muito própria, denotava-se um desmazelo
generalizado, das roupas à aparência, a barba de dias, uma boina desbotada em
desequilíbrios na cabeça, a camisa desabotoada até ao
umbigo transparecia o desarranjo interior, contudo, um olhar mais atento
compreenderia que havia sido outro, com laivos de galã, pois, a eterna
incógnita do amanhã, temor de deuses e de homens, quem diria que este sujeito,
sentado diante dele, de aspecto andrajoso, camisa desabotoada até ao umbigo, a
emitir um arrastado e quase suplicante “A… V… C…”, rematado, há
pouco, para seu alívio, com “A… V… C… Tive há uns anos…”, tivera
ambições de galã? No dia seguinte, à mesma hora, lá entra ele, desta vez, o seu
olhar acompanhou-lhe cada passo, compreensível, após o susto vespertino,
apoiava-se numa bengala, só agora se apercebia de tal, senta-se numa mesa
disponível, e, de imediato, começa a desabotoar a camisa, ele ainda olha interrogativamente
para uma colega, que estava ao balcão, como resposta apenas um encolher de
ombros, pois, para quê gastar verbo, de repente, entre o desabotoar, solta um EEEEEEEEiiiiiiiiiiiii, só dois ou três clientes
olharam na direcção daquela mesa, ele na dúvida se ria ou lá fosse pedir
contenção, o barrigão, nesta altura, já começava a despontar, entre o esforço
dos botões, uma vez mais ecoa EEEEEEEEiiiiiiiiiiiii,
achou que teria de refrear o entusiasmo, dirige-se para lá, a boina desbotada já
sobre a mesa, “Ora boa-tarde! Então, é o habitual cafezinho?”, como se
ali sozinho estivesse, solta um novo EEEEEEEEiiiiiiiiiiiii,
levanta o olhar e diz-lhe: “Você hoje vai dar-me boleia para casa! Sabe,
estou muito cansado,” não obstante estas palavras, olhou o indefinido e novo
EEEEEEEEiiiiiiiiiiiii, neste ponto, o umbigo já era
banhado pela luz do dia, uma vez mais, diante dele, aquela circunferência onde
cabia perfeitamente a moeda de maior valor em circulação, tão similar à da sua mulher,
nos últimos meses de gravidez, lá teve de anuir ao pedido de boleia, não lhe fosse
chegar um arrastado e quase suplicante “A… V… C…”, havia uma questão que
não pôde silenciar, “Mora aqui perto?”, presumia que sim, pelo sim, pelo
não, os seus cálculos estavam no número de EEEEEEEEiiiiiiiiiiiii, que teria de
ouvir até deixá-lo em casa.
Pedro de Sá
(22/10/23)
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