Livros do Escritor

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quinta-feira, 12 de outubro de 2023

O pároco e a alternadeira


 

Há demasiados anos que o pároco saturninos estava à frente dos destinos daquela paróquia, era um homenzito vulgar, nada tinha que destoasse, indumentária condizente com o estatuto de sacerdote, com o seu quê de naftalina e um vislumbre de moldura sobre um naperon, numa qualquer camilha, de uma tia velha, a única nota dissonante do pároco saturninos estava precisamente no rosto, as feições pareciam o resultado do cruzamento entre um sabujo e um velhaco, falava-se, amiúde, pelas ruas da freguesia, das suas fraquezas pelo feminino, longe, muito longe, dos ditames norteadores da cruz que representa, e, em verdade, nunca houve muita concorrência para aquela diocese, havia também uma característica, no pároco saturninos, que contribuía sobremaneira para que passasse incólume à maioria dos vendavais da existência, falava, com todos, num tom baixo, arrastado, que instava logo concentração e reverência, como se dele proviessem verdades do além, não nos esqueçamos: indumentária condizente com o estatuto de sacerdote, com o seu quê de naftalina e um vislumbre de moldura sobre um naperon, numa qualquer camilha, de uma tia velha; um dos principais atributos do tempo é tudo desarrumar em volta, aquela paróquia não escapou a esta regra, falava-se, há uns bons anos, em cada canto da freguesia, da paixão do pároco saturninos por uma alternadeira de Amarante, a diferença de idades ia muito para além de duas décadas, não obstante todo o falatório, ninguém colocou em causa o seu papel de guia-espiritual daquelas gentes, pois, há fenómenos muito estranhos debaixo do céu do mundo, quem sabe se uma indumentária condizente com o estatuto de sacerdote, com o seu quê de naftalina e um vislumbre de moldura sobre um naperon, numa qualquer camilha, de uma tia velha, ajudasse a serenar dúvidas e a refrear a maledicência, e como era possível, o pároco saturninos, com o seu tom baixo, arrastado, que instava logo concentração e reverência, como se dele proviessem verdades do além, desviar-se, mais de duas décadas, dos ditames norteadores da cruz que representa?! Há, de facto, fenómenos muito estranhos debaixo do céu do mundo, ninguém falava das óbvias fraquezas do pároco saturninos com o feminino, de estar envolvido com uma alternadeira de Amarante, não, nada disso, as conversas centravam-se na diferença de idades ir muito para além de duas décadas, como se o resto fosse aceitável, pouco demorou até que as gentes dali dessem de caras com a alternadeira à frente da tesouraria da paróquia, era uma sujeita baixa, de carnes muito, muito, fartas, um cabelo permanentemente de costas viradas para a escova, uma cara de suína que jamais conseguiria maquilhar um carácter boçal, esta transição do alterne de Amarante para a tesouraria de um edifício encabeçado pela sagrada-cruz ocorreu, para aquelas gentes, com toda a naturalidade, no fundo, como se sempre ali estivesse a boçal-sorridente, ostentava no focinho um omnipresente sorriso, talvez um conselho do pároco saturninos, para facilitar a sua integração por aqueles lados, a única nota dissonante estava no tom de voz, ao contrário do pároco saturninos, com o seu tom baixo, arrastado, que instava logo concentração e reverência, como se dele proviessem verdades do além, a alternadeira simplesmente berrava, por ali se detectava a sua génese, além da indumentária, claro, camisolas largas, de qualidade duvidosa, que apenas lhe acentuavam ainda mais a fartura de carnes, calças de ganga cujo efeito cénico era similar, e uns ténis de linha-branca que somente acentuavam o carácter confrangedor desta personagem, perante o olhar dos outros, jamais se viu uma intimidade entre o pároco saturninos e a alternadeira de Amarante, embora, de noite, ninguém a visse a abandonar a sacristia, nunca se levantou qualquer voz em contrário, as contas da paróquia lá se faziam, o pároco Saturninos também não caminhava para novo, ninguém caminha, precisava, nos Invernos, que alguém lhe aquecesse os pés, e, neste aspecto, a alternadeira de Amarante era de carnes muito, muito, fartas, e, sempre que alguém tinha uma crise espiritual, bastava bater à porta, lá surgia aquele rosto, parecia o resultado do cruzamento entre um sabujo e um velhaco, pronto a dar um conselho num tom baixo, arrastado, que instava logo concentração e reverência, como se dele proviessem verdades do além, se estivesse frio, não tardaria muito, do interior, a ouvir-se um berro: “Vem mas é para dentro que está frio!”

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