Pela teimosa fresta do estore, que esperava pela reparação
num amanhã de há dois anos, percebia-se uma manhã cinzenta, ele acordara há
algum tempo, mas permanece ainda de olhos fechados, a fruir de uma imobilidade
em que o mundo não entra no pensar, ela ainda insistia pelos lados do sono,
apesar de já ouvir o aqui, por fim, ele levanta-se, o autoclismo ressoa pela
casa, regressa à cama, ela a desistir dos lados do sono e a recebê-lo com
satisfação no aqui, trocam umas frases codificadas, numa linguagem construída
por anos de diálogos sussurrados ou gritados, assim é a vida a dois, um ténue
equilíbrio entre faces encontradas ou nucas distantes, sob os lençóis,
reencontram, de forma desapaixonada, talvez até mais mecânica, a vertigem dos
sentidos, no entanto, o amadurecido compasso do sentir torna tudo mais
satisfatório, é a compreensão do presente, após acordar os filhos, têm um
casalinho, ele com dez, ela com oito, o pequeno-almoço, a limpeza da casa, o
almoço, ele já sintonizado com as notícias da bola, Hoje tenho de estar em casa, o mais tardar, às seis, ela Logo hoje que eu queria ir ver aqueles
cortinados! Essa porcaria não pode esperar? Ele prefere não responder, já
sabe por onde ela caminha, pelos territórios da provocação, não, não vai ceder,
de novo, pela segunda vez nesse dia, a compreensão do presente, é curioso, nem
há um par de anos, ter-lhe-ia respondido numa prontidão liminar, hoje vira-se
para o filho, como se nem sequer a tivesse ouvido, e questiona-o sobre a tarde
de escuteiros, de seguida, vira-se para a filha e pergunta-lhe se está a gostar
do almoço, a filha encolhe os ombros e responde-lhe Já tínhamos comido isto ontem ao jantar, ele retribui a
espontaneidade da criança com uma festa pelos seus cabelos, afinal, verdade e
crianças são velhos companheiros, e, de facto, os rissóis com arroz branco já
provinham da refeição vespertina, mas o mês já ia longo, e os preços das coisas
sempre a agigantar-se face aos vencimentos deles que permanecem numa estagnação
de charco há tanto, ela, felizmente, só tem de atravessar duas ruas para chegar
ao cabeleireiro, claro que sonha, um dia, abrir o seu, é curioso, nunca
partilhou isto com ninguém, nem com ele, como se houvesse qualquer coisa de
obsceno nesta coisa dos desejos, de impróprio, talvez os tempos ditem para que
os esqueçamos, como se fosse possível a um pássaro queimar as suas próprias
asas, é verdade que muitos se contentam em poder respirar, no entanto, ela
pertencia àquele diminuto número que, antes de mais, gosta de escolher a
direcção do seu olhar, ele, pelo contrário, tinha de atravessar grande parte da
cidade para chegar ao restaurante onde servia à mesa, a ideia de, algum dia,
abrir um restaurante seu, nunca se lhe deparou no caminho, não se pode dizer
que desgostasse do trabalho, o contrário também seria uma falsidade, em
verdade, cumpria com as suas obrigações profissionais num desencanto contido,
com uma aura de inevitabilidade, no fundo, respirava, só olhava onde podia
chegar e nunca onde ainda não chegou, por aí se faziam os seus dias, depois de
almoço o café, ficava mesmo por baixo da casa deles, um primeiro-andar alugado,
ela a sentir-se asfixiada entre aquelas paredes, sempre a queixar-se de ouvir o
autoclismo dos vizinhos de cima e do lado, e também do aspirador, por vezes, os
do lado em discussão, sobretudo aos fins-de-semana, a proximidade sempre a
aguçar arestas, a presença do outro, na demasia daqueles dois dias entre a
exiguidade de umas paredes, a despertar hostilidades desarrumadas, quando a
percebe pelos territórios do queixume, concentra-se ainda mais na bola, afinal,
nunca se apercebeu do autoclismo dos vizinhos de cima e do lado, nem do
aspirador, tão pouco da habitual discussão, aos fins-de-semana, dos vizinhos
laterias, e, se houvesse, não tinha nada que ver com isso, os miúdos
acompanhavam-nos para receber uma pastilha, era o suficiente para cada um
sorrir, a casa, a essa hora, já em sombras, as três janelas viradas a Norte, e
o edifício em frente, com o dobro da altura, a não permitir tréguas de luz para
aqueles lados, uma salita, dois quartos que mal dão para uma cama e um guarda-fatos,
uma casa-de-banho que mais parecia um depósito de humidade, aquela torneira do
lavatório sempre a pingar, quantas vezes ela lhe gritou (Quando é que te decides a arranjar a porcaria da torneira?), ele
sempre (Estou à espera que o Zé me
devolva a chave-inglesa… Não te preocupes que já a pedi de volta…), mas ela
a preocupar-se cada vez mais, porque a fresta do estore aguarda a reparação num
amanhã de há dois anos, e o Zé talvez venha a ser enterrado com a chave-inglesa
deles, as sombras àquela hora, depois do café, já inundavam toda a casa, ele já
de comando na mão, de olhinhos no sofá, antes que, ela numa tentativa salvífica
Não queres, ao menos, ir às compras?
Assim, já adiantava o almoço de amanhã… Contrariado, Tudo bem, mas vamos rápido, já sabes que… Nem ousa retorquir, ao
menos já se levantara, o filho, com o seu orgulhoso traje de escuteiro, a
despedir-se, ela a compor-lhe o lenço, num gesto a meio caminho entre o cansaço
e o automático, nem vale a pena perguntar-lhe (Não te sabes ver ao espelho? Lavaste a cara? E os dentes?), nada,
só quer dali fugir, antes que a bola comece, antes da gritaria, do rádio, da
televisão, dos dois ligados simultaneamente, de nem lá fora encontrar um
vestígio de sol, do sofá, daquele urro quando, três ou quatro horas depois, ele
se tenta reerguer, queixa-se do joelho, do sofá demasiado baixo, da ciática,
ela tão cansada daquela monocórdia, a filha contrariada em acompanhá-los (Não vamos demorar, pois não?), já sabia
que a questão ecoaria durante todo o caminho, acompanhada, como sempre, da
pressa dele pelo sofá, Vamos rápido, já
sabes que… Saem para as compras, antes o multibanco, outra melodia
extenuada, a contagem das possibilidades, mas amanhã, por esta hora, será ela a
não querer levantar-se do sofá, nem dá conta do autoclismo dos vizinhos de cima
e do lado, nem do aspirador, nem das discussões laterais, e talvez a casa tenha
a luz suficiente, afinal o Norte tem os seus encantos, se a casa-de-banho tem
humidade, ainda bem, é porque se toma por ali banho, quanto à torneira, o Zé
há-de devolver a chave-inglesa, tem de se ter paciência e não apressar o amigo,
e a fresta do estore, que saudades vai deixar, começa o olhar tudo do
promontório de uma saudade imensa, até se vira para ele e pergunta Quanto é que ficaram os resultados? Ele pacientemente responde-lhe, enquanto
pensa pois é, amanhã já é 2ª feira…
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