Livros do Escritor

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sábado, 21 de outubro de 2023

A angústia de se saber que amanhã é 2ª feira

 



Pela teimosa fresta do estore, que esperava pela reparação num amanhã de há dois anos, percebia-se uma manhã cinzenta, ele acordara há algum tempo, mas permanece ainda de olhos fechados, a fruir de uma imobilidade em que o mundo não entra no pensar, ela ainda insistia pelos lados do sono, apesar de já ouvir o aqui, por fim, ele levanta-se, o autoclismo ressoa pela casa, regressa à cama, ela a desistir dos lados do sono e a recebê-lo com satisfação no aqui, trocam umas frases codificadas, numa linguagem construída por anos de diálogos sussurrados ou gritados, assim é a vida a dois, um ténue equilíbrio entre faces encontradas ou nucas distantes, sob os lençóis, reencontram, de forma desapaixonada, talvez até mais mecânica, a vertigem dos sentidos, no entanto, o amadurecido compasso do sentir torna tudo mais satisfatório, é a compreensão do presente, após acordar os filhos, têm um casalinho, ele com dez, ela com oito, o pequeno-almoço, a limpeza da casa, o almoço, ele já sintonizado com as notícias da bola, Hoje tenho de estar em casa, o mais tardar, às seis, ela Logo hoje que eu queria ir ver aqueles cortinados! Essa porcaria não pode esperar? Ele prefere não responder, já sabe por onde ela caminha, pelos territórios da provocação, não, não vai ceder, de novo, pela segunda vez nesse dia, a compreensão do presente, é curioso, nem há um par de anos, ter-lhe-ia respondido numa prontidão liminar, hoje vira-se para o filho, como se nem sequer a tivesse ouvido, e questiona-o sobre a tarde de escuteiros, de seguida, vira-se para a filha e pergunta-lhe se está a gostar do almoço, a filha encolhe os ombros e responde-lhe Já tínhamos comido isto ontem ao jantar, ele retribui a espontaneidade da criança com uma festa pelos seus cabelos, afinal, verdade e crianças são velhos companheiros, e, de facto, os rissóis com arroz branco já provinham da refeição vespertina, mas o mês já ia longo, e os preços das coisas sempre a agigantar-se face aos vencimentos deles que permanecem numa estagnação de charco há tanto, ela, felizmente, só tem de atravessar duas ruas para chegar ao cabeleireiro, claro que sonha, um dia, abrir o seu, é curioso, nunca partilhou isto com ninguém, nem com ele, como se houvesse qualquer coisa de obsceno nesta coisa dos desejos, de impróprio, talvez os tempos ditem para que os esqueçamos, como se fosse possível a um pássaro queimar as suas próprias asas, é verdade que muitos se contentam em poder respirar, no entanto, ela pertencia àquele diminuto número que, antes de mais, gosta de escolher a direcção do seu olhar, ele, pelo contrário, tinha de atravessar grande parte da cidade para chegar ao restaurante onde servia à mesa, a ideia de, algum dia, abrir um restaurante seu, nunca se lhe deparou no caminho, não se pode dizer que desgostasse do trabalho, o contrário também seria uma falsidade, em verdade, cumpria com as suas obrigações profissionais num desencanto contido, com uma aura de inevitabilidade, no fundo, respirava, só olhava onde podia chegar e nunca onde ainda não chegou, por aí se faziam os seus dias, depois de almoço o café, ficava mesmo por baixo da casa deles, um primeiro-andar alugado, ela a sentir-se asfixiada entre aquelas paredes, sempre a queixar-se de ouvir o autoclismo dos vizinhos de cima e do lado, e também do aspirador, por vezes, os do lado em discussão, sobretudo aos fins-de-semana, a proximidade sempre a aguçar arestas, a presença do outro, na demasia daqueles dois dias entre a exiguidade de umas paredes, a despertar hostilidades desarrumadas, quando a percebe pelos territórios do queixume, concentra-se ainda mais na bola, afinal, nunca se apercebeu do autoclismo dos vizinhos de cima e do lado, nem do aspirador, tão pouco da habitual discussão, aos fins-de-semana, dos vizinhos laterias, e, se houvesse, não tinha nada que ver com isso, os miúdos acompanhavam-nos para receber uma pastilha, era o suficiente para cada um sorrir, a casa, a essa hora, já em sombras, as três janelas viradas a Norte, e o edifício em frente, com o dobro da altura, a não permitir tréguas de luz para aqueles lados, uma salita, dois quartos que mal dão para uma cama e um guarda-fatos, uma casa-de-banho que mais parecia um depósito de humidade, aquela torneira do lavatório sempre a pingar, quantas vezes ela lhe gritou (Quando é que te decides a arranjar a porcaria da torneira?), ele sempre (Estou à espera que o Zé me devolva a chave-inglesa… Não te preocupes que já a pedi de volta…), mas ela a preocupar-se cada vez mais, porque a fresta do estore aguarda a reparação num amanhã de há dois anos, e o Zé talvez venha a ser enterrado com a chave-inglesa deles, as sombras àquela hora, depois do café, já inundavam toda a casa, ele já de comando na mão, de olhinhos no sofá, antes que, ela numa tentativa salvífica Não queres, ao menos, ir às compras? Assim, já adiantava o almoço de amanhã… Contrariado, Tudo bem, mas vamos rápido, já sabes que… Nem ousa retorquir, ao menos já se levantara, o filho, com o seu orgulhoso traje de escuteiro, a despedir-se, ela a compor-lhe o lenço, num gesto a meio caminho entre o cansaço e o automático, nem vale a pena perguntar-lhe (Não te sabes ver ao espelho? Lavaste a cara? E os dentes?), nada, só quer dali fugir, antes que a bola comece, antes da gritaria, do rádio, da televisão, dos dois ligados simultaneamente, de nem lá fora encontrar um vestígio de sol, do sofá, daquele urro quando, três ou quatro horas depois, ele se tenta reerguer, queixa-se do joelho, do sofá demasiado baixo, da ciática, ela tão cansada daquela monocórdia, a filha contrariada em acompanhá-los (Não vamos demorar, pois não?), já sabia que a questão ecoaria durante todo o caminho, acompanhada, como sempre, da pressa dele pelo sofá, Vamos rápido, já sabes que… Saem para as compras, antes o multibanco, outra melodia extenuada, a contagem das possibilidades, mas amanhã, por esta hora, será ela a não querer levantar-se do sofá, nem dá conta do autoclismo dos vizinhos de cima e do lado, nem do aspirador, nem das discussões laterais, e talvez a casa tenha a luz suficiente, afinal o Norte tem os seus encantos, se a casa-de-banho tem humidade, ainda bem, é porque se toma por ali banho, quanto à torneira, o Zé há-de devolver a chave-inglesa, tem de se ter paciência e não apressar o amigo, e a fresta do estore, que saudades vai deixar, começa o olhar tudo do promontório de uma saudade imensa, até se vira para ele e pergunta Quanto é que ficaram os resultados? Ele pacientemente responde-lhe, enquanto pensa pois é, amanhã já é 2ª feira…


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