Livros do Escritor

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quarta-feira, 4 de outubro de 2023

O Tatázinho


 

A primeira vez que ali entrei, lembro-me bem, tinha uma idosa à minha frente, atrás do balcão, absorto num écran, completamente alheado da sua circunstância, lá estava ele, nem, por um segundo, se dignou a olhar-nos, eu com a pressa destes dias, a idosa, creio, foram as cansadas pernas a relembrar-lhe alguma urgência, porém, o olhar não se desvinculava do écran, por momentos, julguei que andasse às voltas com a contabilidade do estabelecimento, entretanto alguém chega em nosso auxílio, uma sujeita baixa, com um rosto vulgar, de onde se destacava um teimoso olho-fugidio, não me escapou a sua expressão de desdém na direcção do écran e questiona a velhota: “Ora boa-tarde! Então, o que vai ser?”, dado o mote, a idosa começa o seu rosário de infortúnios, desde a crescente assimetria entre a sua parca reforma e a galopante inflacção, a dor na anca a anunciar a chegada do tempo frio, a intermitente comunicação com os filhos, e, pasme-se, ainda não dissera ao que vinha, eu, de natureza impaciente, assistia a tudo, dois passos atrás da velhota, em silêncio, apenas por curiosidade de saber quem é e o que estava a fazer ao écran aquele sujeito, a temática entre a empregada do olho-fugidio e a velhota já ia no episódio dessa noite da novela, confesso, neste ponto, que a paciência ameaçava deixar-me, à minha frente duas sujeitas em amena conversa, não obstante sentir-me permanentemente vigiado por aquele olho-divergente, do lado direito um sujeito, sentado, completamente absorvido por um écran, quando, num repente, de forma inopinada, ouve-se um brutal e sonoro “PORRAAAA!!!”, todos olhámos simultaneamente na direcção do écran, parece que, por ali, algo não se encaixou, apesar do brutal e sonoro “PORRAAAA!!!”, persistiu alheado de nós, com toda aquela demora, confesso que nascia em mim a vontade de emitir um brutal e sonoro “PORRAAAA!!!”, pensava em virar costas, quando, também por detrás do balcão, surge um sujeito de óculos, com um anacrónico bigode, de pulôver (ainda hoje, não descobri se uma prenda da mãe ou da mulher, pois, há questões que levamos connosco para o túmulo…) e calças de ganga, a típica indumentária a meio-caminho, quer ser modernaço, mas o garrote do pulôver tudo trai, ainda temos a bigodaça e os óculos numa demasia envidraçada, antes de me atender, reparei no seu olhar a descer pelas costas da empregada do olho-fugidio, perguntou-me o que desejava, prontamente anunciei-lhe, nem uma palavra na direcção do écran, apenas resignação e um suspiro lamuriante, o olho-divergente também deixou o balcão, por fim, a velhota teria dito ao que vinha, assim que virou costas, não sei porquê, o meu olhar seguiu as pegadas do sujeito do pulôver (ainda hoje, não descobri se uma prenda da mãe ou da mulher, pois, há questões que levamos connosco para o túmulo…), confesso que valeu a pena a caminhada, longe, muito longe, de um rosto vulgar, onde se destacava um teimoso olho-fugidio, as idiossincrasias da existência sem dúvida, neste entretanto, de idas e vindas com os nossos pedidos, do lado do écran nem um movimento que não fosse proveniente de dedos no teclado, a curiosidade asfixiava-me, eram demasiadas emoções para tão curto espaço de tempo, sou devolvido à circunstância com “Ora aqui tem!”, enquanto puxo da carteira, tinha de saciar a minha curiosidade com a génese daquele gutural “PORRAAAA!!!”, sabia, há muito, do carácter extrovertido do pulôver, por detrás da demasia envidraçada e da bigodaça-anacrónica escondia-se uma autêntica porteira, o estabelecimento era seu e da mulher, só tinham aquela empregada do olho-divergente, daí a minha estranheza com aquele sujeito colado ao écran, lá me explicou, quase em surdina, ser um primo-direito, que ali estava a pedido dos seus tios, até então, a sua única actividade era descolorir copos madrugada adentro, em bares esconsos de reputação anoitecida, chegava a casa com o amanhecer do mundo, a exibir aquela gutural voz que, há pouco, emitira o extraordinário “PORRAAAA!!!”, mas, pelos vistos, trocara o vidro dos copos pelo do écran, e o álcool pelo jogo, olhei-o com respeito, de facto, estava com uma abnegação, quase religiosa, no jogo, afigurava-se ser de cartas, pois, há pouco, “PORRAAAA!!!”, parece que algo ali não se encaixou, eu, numa certa inocência, ainda questionei se os tios desejavam afastá-lo das más-companhias, o pulôver: “Sim, claro, mas veja bem a peça que aqui me puseram! Sabe, não diga a ninguém, fica só entre nós, há uns dias, estávamos quase a fechar, entraram aqui dois sujeitos a perguntar pelo Tatázinho… Eu respondi logo não conhecer nenhum Tatázinho! Só que depois lá disseram o nome da peça, foi aí que se me fez luz! Veja bem: o Tatázinho!” Achei indigno, chamar Tatázinho àquele vulto que vislumbra, com uma abnegação, quase religiosa, o jogo, no écran, a velhota ainda pediu mais uma ou duas coisas, sempre que o olho-divergente virava costas, o meu olhar e o do pulôver percorriam os mesmos passos costas abaixo da sujeita de rosto-vulgar, de facto, naquela perspectiva traseira nada havia de vulgar, muito pelo contrário, ainda por aqui a imagem de como as calças-de-ganga tão bem lhe assentavam, e nem toda a mulher se pode gabar de ter umas calças-de-ganga que parecem ter sido feitas só para si, por ali nada havia de fugidio ou divergente, talvez por esse motivo, volta e meia, a mulher do pulôver irrompesse para ver como iam as coisas, a única divergência ali permitida era o olhito da empregada, nada mais, denotava-se à distância quem ali mandava, na sua presença o pulôver quase emudecia, nesses momentos, creio, em verdade, que se escondia mesmo atrás das vidraças dos óculos, até a bigodaça diminuía, assim que ela entrou, reparei no seu olhar de desdém na direcção do écran, ouvi-a mesmo  rugir entredentes: “Tatázinho… Tatázinho… Tatázinho… Só me faltava este!”, achei redutor posicionar-se assim face àquele singular vulto que procurava, num écran, resolver os enigmas da humanidade (talvez, por fim, me revelasse se uma prenda da mãe ou da mulher, pois, há questões que não desejamos levar connosco para o túmulo), só teríamos, com um pouco de paciência, aguardar por um segundo “PORRAAAA!!!” – aí, sim, o mundo poderia repousar...

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