A primeira vez que ali entrei, lembro-me bem, tinha
uma idosa à minha frente, atrás do balcão, absorto num écran, completamente
alheado da sua circunstância, lá estava ele, nem, por um segundo, se dignou a
olhar-nos, eu com a pressa destes dias, a idosa, creio, foram as cansadas
pernas a relembrar-lhe alguma urgência, porém, o olhar não se desvinculava do
écran, por momentos, julguei que andasse às voltas com a contabilidade do
estabelecimento, entretanto alguém chega em nosso auxílio, uma sujeita baixa, com
um rosto vulgar, de onde se destacava um teimoso olho-fugidio,
não me escapou a sua expressão de desdém na direcção do écran e questiona a
velhota: “Ora
boa-tarde! Então, o que vai ser?”, dado o mote, a idosa começa o seu rosário
de infortúnios, desde a crescente assimetria entre a sua parca reforma e a
galopante inflacção, a dor na anca a anunciar a chegada do tempo frio, a
intermitente comunicação com os filhos, e, pasme-se, ainda não dissera ao que
vinha, eu, de natureza impaciente, assistia a tudo, dois passos atrás da
velhota, em silêncio, apenas por curiosidade de saber quem é e o que estava a
fazer ao écran aquele sujeito, a temática entre a
empregada do olho-fugidio e a velhota já ia no episódio dessa noite da
novela, confesso, neste ponto, que a paciência ameaçava deixar-me, à minha
frente duas sujeitas em amena conversa, não obstante sentir-me permanentemente
vigiado por aquele olho-divergente, do lado direito um sujeito, sentado,
completamente absorvido por um écran, quando, num repente, de forma inopinada,
ouve-se um brutal e sonoro “PORRAAAA!!!”, todos olhámos simultaneamente na direcção do écran,
parece que, por ali, algo não se encaixou, apesar do brutal e sonoro “PORRAAAA!!!”,
persistiu alheado de nós, com toda aquela demora,
confesso que nascia em mim a vontade de emitir um brutal e sonoro “PORRAAAA!!!”, pensava em virar costas, quando,
também por detrás do balcão, surge um sujeito de óculos, com um anacrónico
bigode, de pulôver (ainda hoje, não descobri se uma prenda da
mãe ou da mulher, pois, há questões que levamos connosco para o túmulo…) e calças de ganga, a típica
indumentária a meio-caminho, quer ser modernaço, mas o garrote do pulôver tudo
trai, ainda temos a bigodaça e os óculos numa demasia envidraçada, antes de me
atender, reparei no seu olhar a descer pelas costas da empregada do olho-fugidio,
perguntou-me o que desejava, prontamente anunciei-lhe, nem uma palavra na
direcção do écran, apenas resignação e um suspiro lamuriante, o olho-divergente
também deixou o balcão, por fim, a velhota teria dito ao que vinha, assim que
virou costas, não sei porquê, o meu olhar seguiu as pegadas do sujeito do
pulôver (ainda hoje, não descobri se uma prenda da mãe ou da mulher, pois, há
questões que levamos connosco para o túmulo…), confesso que valeu a pena a
caminhada, longe, muito longe, de um rosto vulgar, onde se destacava um teimoso
olho-fugidio, as idiossincrasias da existência sem dúvida, neste entretanto, de
idas e vindas com os nossos pedidos, do lado do écran nem um movimento que não
fosse proveniente de dedos no teclado, a curiosidade asfixiava-me, eram
demasiadas emoções para tão curto espaço de tempo, sou devolvido à
circunstância com “Ora aqui tem!”, enquanto puxo da carteira, tinha de
saciar a minha curiosidade com a génese daquele gutural “PORRAAAA!!!”, sabia,
há muito, do carácter extrovertido do pulôver, por detrás da demasia
envidraçada e da bigodaça-anacrónica escondia-se uma autêntica porteira, o
estabelecimento era seu e da mulher, só tinham aquela empregada do
olho-divergente, daí a minha estranheza com aquele sujeito colado ao écran, lá
me explicou, quase em surdina, ser um primo-direito, que ali estava a pedido
dos seus tios, até então, a sua única actividade era descolorir copos madrugada
adentro, em bares esconsos de reputação anoitecida, chegava a casa com o
amanhecer do mundo, a exibir aquela gutural voz que, há pouco, emitira o extraordinário
“PORRAAAA!!!”, mas, pelos vistos, trocara o vidro dos copos pelo do
écran, e o álcool pelo jogo, olhei-o com respeito, de facto, estava com uma abnegação, quase religiosa, no jogo, afigurava-se
ser de cartas, pois, há pouco, “PORRAAAA!!!”, parece
que algo ali não se encaixou, eu, numa certa inocência, ainda questionei se os
tios desejavam afastá-lo das más-companhias, o pulôver: “Sim, claro, mas veja
bem a peça que aqui me puseram! Sabe, não diga a ninguém, fica só entre nós, há
uns dias, estávamos quase a fechar, entraram aqui dois sujeitos a perguntar
pelo Tatázinho… Eu respondi logo não conhecer nenhum
Tatázinho! Só que depois lá disseram o nome da peça, foi aí que se me fez luz!
Veja bem: o Tatázinho!” Achei indigno, chamar Tatázinho àquele vulto que
vislumbra, com uma abnegação, quase religiosa, o jogo, no écran, a velhota
ainda pediu mais uma ou duas coisas, sempre que o olho-divergente virava
costas, o meu olhar e o do pulôver percorriam os mesmos passos costas abaixo da
sujeita de rosto-vulgar, de facto, naquela perspectiva traseira nada havia de
vulgar, muito pelo contrário, ainda por aqui a imagem de como as
calças-de-ganga tão bem lhe assentavam, e nem toda a mulher se pode gabar de
ter umas calças-de-ganga que parecem ter sido feitas só para si, por ali nada
havia de fugidio ou divergente, talvez por esse motivo, volta e meia, a mulher
do pulôver irrompesse para ver como iam as coisas, a única divergência ali
permitida era o olhito da empregada, nada mais, denotava-se à distância quem
ali mandava, na sua presença o pulôver quase emudecia, nesses momentos, creio,
em verdade, que se escondia mesmo atrás das vidraças dos óculos, até a bigodaça
diminuía, assim que ela entrou, reparei no seu olhar de desdém na direcção do
écran, ouvi-a mesmo rugir entredentes: “Tatázinho…
Tatázinho… Tatázinho… Só me faltava este!”, achei redutor posicionar-se
assim face àquele singular vulto que procurava, num écran, resolver os enigmas
da humanidade (talvez, por fim, me revelasse se uma prenda da mãe ou da mulher,
pois, há questões que não desejamos levar connosco para o túmulo), só teríamos,
com um pouco de paciência, aguardar por um segundo “PORRAAAA!!!” – aí, sim,
o mundo poderia repousar...
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