Há perguntas que sempre o irritaram. Mas nenhuma supera
aquela que o obriga a pensar-se (se está
bem, como anda, o que tem feito), talvez porque obrigue a regressar, numa
demasiada rapidez, ao agora, exactamente de onde ele parte sempre que possível,
todos os dias, antes de regressar a casa, de mãos nos bolsos, passeio fora, lá
vai, naquela passada que proclama um indisfarçável fastio pelas coisas do
mundo, aquela frase que lhe ouviu há tanto, há tanto que lhe parece numa outra
vida, e nós que tantas vezes morremos nesta para regressarmos sempre tão
subtraídos, embora uns afirmem que regressamos sempre fortalecidos, tolos, apenas
isso, a frase dela Eu não durmo com
amigos, tão reveladora, lúcida, transparente, porém, na altura, ele aquém
destas inferências, a levar as coisas para bem longe, sinal de que ela era
séria, de confiança, responsável, felizmente com princípios e valores, isso é
bom, muito bom, Eu não durmo com amigos,
ainda hoje ressoa por ele, mas se, por um acaso, tivesse concedido o devido
tempo à reflexão, talvez as coisas fossem numa outra direcção, como quase
sempre acontece, aquela mania de pintarmos o mundo com as cores do nosso
pensar, é possível que o Eu não durmo com
amigos, em vez da colecção de qualidades que lhe procurou atribuir,
significasse simplesmente que ele lhe provocava o sentir morno da amizade,
apenas e só, longe em demasia dos mares encapelados e trovoados da paixão,
apesar disso insistiu, Tudo bem. Eu
compreendo…Mas podemos sair como amigos, certo? Se me deres tempo, talvez… Ela
cedeu-lhe o tempo, e ele percebeu o alcance das palavras, de facto, só podiam
provir de uma náufraga de mares deveras encapelados, naquela fase da vida em
que, num repente, viramos costas à criança do ontem, para sermos uma qualquer
coisa ainda por definir, ela depositou o seu coração nas mãos que lhe seguravam
o olhar, quatro a cinco anos de namoro, lá por casa os pais encantados, rapaz
de boas famílias, cursava Direito, o futuro à distância de uma esquina,
casaram, ela com vinte anos, ele com mais quatro, percebia-se-lhes a chama em
cada gesto, curiosamente, nas fotos desse dia sempre singular a harmonia ainda
não encontrara uma porta, é compreensível, afinal é a passageira do tempo, dois
anos depois, uma filha, as sombras, em redor da chama, a esmorecer, em verdade,
a harmonia, por ali, nunca encontrou uma porta de entrada, o tempo a passar,
ele sempre precisou de uma chama que lhe alimentasse os gestos, quando ela se
apercebeu dessa faceta, já ele fins-de-semana sucessivos ausentes, alugara uma
casa, nem sequer muito longe do lar original, ela recém-formada, também nos
labirintos da justiça, como não podia deixar de ser, apesar da filha, teria
nesta altura cerca de quatro anos, da casa, de toda uma forma de ver o mundo ao
lado dele, de o seu nome lhe nascer nos lábios contrariando o pensar, avançou
com o divórcio, para sua surpresa, foram os pais que a conduziram nessas diligências,
sem muitas palavras direccionaram-lhe o olhar para o amanhã, de facto,
resgataram-na para a vida, mas algo ficara soterrado para sempre nos escombros
do ido, ela nunca partilhou isto, fez questão de guardar para si esta ideia que
pairava no seu espírito à espera de uma forma, no fundo, é aquilo a que nós
chamamos certeza, jamais voltaria a depositar o seu coração em quaisquer mãos,
por muito que lhe tentassem segurar o olhar, em verdade, ela aprendera a olhar
o amanhã, mas o seu coração jazia, para sempre, numa estrada poeirenta do
ontem, foram uns amigos comuns que os apresentaram, desde então, ela
sentou-se-lhe no pensar, dali não queria sair, nem ele queria que saísse, não
se pode falar de uma simpatia à primeira vista, antes de um respeito, primeiro,
por posições antagónicas face ao redor, ele de raízes profundas, ela
conhecedora dos caprichos do vento, de certa forma, ele compreendeu-lhe o
cansaço na face, soube-lhe, depois, a causa, a princípio, amigos, como quase
sempre acontece, embora, para ele, fosse o início de um trajecto, após certa
tarde de cinema, Não quer vir jantar a
minha casa? Ela estacou, olhou-o demoradamente, o cansaço pela face tão
visível àquela tão jovem hora nocturna, e a resposta Eu não durmo com amigos, lacónica, sem lugar a réplica, nesse
momento, ele percebeu que o coração de uma mulher tem um lugar que só é ocupado
uma vez, mesmo assim, não desistiu, ele estava a ficar fora de prazo, achava
graça àquelas ideias que ela debitava tão contrárias às suas, soube ser paciente,
a idade ensinara-lhe o tempo, certa manhã, surpreendera-a preenchendo-lhe o
anelar, emudecida, beijou-lhe carinhosamente a face e pediu tempo, por esta
altura, a filha perto da faculdade, o espelho cada vez mais uma sombra
cinzenta, os passos mais desenhados, meses depois, aceitou, desta vez, a
harmonia entrou pela porta da frente em cada fotografia, nem sinal de um
resquício flamejante, de mãos nos bolsos, passeio fora, lá vai, naquela passada
que proclama um indisfarçável fastio pelas coisas do mundo, a matutar naquela
ideia: o coração de uma mulher tem um lugar que só é ocupado uma vez, sabia
disso, mas insistiu, talvez consiga, no espaço que lhe coube, que ela, um dia,
por lá se sente a seu lado a ver o mundo…
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