Livros do Escritor

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sábado, 4 de novembro de 2023

O sentido das coisas

 



Há perguntas que sempre o irritaram. Mas nenhuma supera aquela que o obriga a pensar-se (se está bem, como anda, o que tem feito), talvez porque obrigue a regressar, numa demasiada rapidez, ao agora, exactamente de onde ele parte sempre que possível, todos os dias, antes de regressar a casa, de mãos nos bolsos, passeio fora, lá vai, naquela passada que proclama um indisfarçável fastio pelas coisas do mundo, aquela frase que lhe ouviu há tanto, há tanto que lhe parece numa outra vida, e nós que tantas vezes morremos nesta para regressarmos sempre tão subtraídos, embora uns afirmem que regressamos sempre fortalecidos, tolos, apenas isso, a frase dela Eu não durmo com amigos, tão reveladora, lúcida, transparente, porém, na altura, ele aquém destas inferências, a levar as coisas para bem longe, sinal de que ela era séria, de confiança, responsável, felizmente com princípios e valores, isso é bom, muito bom, Eu não durmo com amigos, ainda hoje ressoa por ele, mas se, por um acaso, tivesse concedido o devido tempo à reflexão, talvez as coisas fossem numa outra direcção, como quase sempre acontece, aquela mania de pintarmos o mundo com as cores do nosso pensar, é possível que o Eu não durmo com amigos, em vez da colecção de qualidades que lhe procurou atribuir, significasse simplesmente que ele lhe provocava o sentir morno da amizade, apenas e só, longe em demasia dos mares encapelados e trovoados da paixão, apesar disso insistiu, Tudo bem. Eu compreendo…Mas podemos sair como amigos, certo? Se me deres tempo, talvez… Ela cedeu-lhe o tempo, e ele percebeu o alcance das palavras, de facto, só podiam provir de uma náufraga de mares deveras encapelados, naquela fase da vida em que, num repente, viramos costas à criança do ontem, para sermos uma qualquer coisa ainda por definir, ela depositou o seu coração nas mãos que lhe seguravam o olhar, quatro a cinco anos de namoro, lá por casa os pais encantados, rapaz de boas famílias, cursava Direito, o futuro à distância de uma esquina, casaram, ela com vinte anos, ele com mais quatro, percebia-se-lhes a chama em cada gesto, curiosamente, nas fotos desse dia sempre singular a harmonia ainda não encontrara uma porta, é compreensível, afinal é a passageira do tempo, dois anos depois, uma filha, as sombras, em redor da chama, a esmorecer, em verdade, a harmonia, por ali, nunca encontrou uma porta de entrada, o tempo a passar, ele sempre precisou de uma chama que lhe alimentasse os gestos, quando ela se apercebeu dessa faceta, já ele fins-de-semana sucessivos ausentes, alugara uma casa, nem sequer muito longe do lar original, ela recém-formada, também nos labirintos da justiça, como não podia deixar de ser, apesar da filha, teria nesta altura cerca de quatro anos, da casa, de toda uma forma de ver o mundo ao lado dele, de o seu nome lhe nascer nos lábios contrariando o pensar, avançou com o divórcio, para sua surpresa, foram os pais que a conduziram nessas diligências, sem muitas palavras direccionaram-lhe o olhar para o amanhã, de facto, resgataram-na para a vida, mas algo ficara soterrado para sempre nos escombros do ido, ela nunca partilhou isto, fez questão de guardar para si esta ideia que pairava no seu espírito à espera de uma forma, no fundo, é aquilo a que nós chamamos certeza, jamais voltaria a depositar o seu coração em quaisquer mãos, por muito que lhe tentassem segurar o olhar, em verdade, ela aprendera a olhar o amanhã, mas o seu coração jazia, para sempre, numa estrada poeirenta do ontem, foram uns amigos comuns que os apresentaram, desde então, ela sentou-se-lhe no pensar, dali não queria sair, nem ele queria que saísse, não se pode falar de uma simpatia à primeira vista, antes de um respeito, primeiro, por posições antagónicas face ao redor, ele de raízes profundas, ela conhecedora dos caprichos do vento, de certa forma, ele compreendeu-lhe o cansaço na face, soube-lhe, depois, a causa, a princípio, amigos, como quase sempre acontece, embora, para ele, fosse o início de um trajecto, após certa tarde de cinema, Não quer vir jantar a minha casa? Ela estacou, olhou-o demoradamente, o cansaço pela face tão visível àquela tão jovem hora nocturna, e a resposta Eu não durmo com amigos, lacónica, sem lugar a réplica, nesse momento, ele percebeu que o coração de uma mulher tem um lugar que só é ocupado uma vez, mesmo assim, não desistiu, ele estava a ficar fora de prazo, achava graça àquelas ideias que ela debitava tão contrárias às suas, soube ser paciente, a idade ensinara-lhe o tempo, certa manhã, surpreendera-a preenchendo-lhe o anelar, emudecida, beijou-lhe carinhosamente a face e pediu tempo, por esta altura, a filha perto da faculdade, o espelho cada vez mais uma sombra cinzenta, os passos mais desenhados, meses depois, aceitou, desta vez, a harmonia entrou pela porta da frente em cada fotografia, nem sinal de um resquício flamejante, de mãos nos bolsos, passeio fora, lá vai, naquela passada que proclama um indisfarçável fastio pelas coisas do mundo, a matutar naquela ideia: o coração de uma mulher tem um lugar que só é ocupado uma vez, sabia disso, mas insistiu, talvez consiga, no espaço que lhe coube, que ela, um dia, por lá se sente a seu lado a ver o mundo…

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