Do que me lembro melhor, é do quarto, com as duas camas, a
da minha mãe do lado da janela, quase sempre com a cortina corrida, em verdade,
não me lembro, nem por uma só vez, de abrirmos a janela, só lá ia quando uma
ambulância acordava o mundo com a sua dor, de resto, permanecia fechada, quase
sempre com a cortina corrida, não sei por quanto tempo ali estive, talvez uns
dois anos, talvez uns três, ou mais, não posso precisar, mas foi há tanto, há
tanto que minha mãe ainda viva, sei que o prédio tinha três andares, ficava
numa dessas ruas de Lisboa que apenas conhecem a sombra, seja manhã ou tarde, o
elevador, que tinha uma armação metálica, com porta, bastante trabalhada, em
cada andar, nunca o vi funcionar, acho que adormecera entre o segundo e o
terceiro andares, restava-nos a escada, é curioso, a minha mãe jamais
questionou a senhora velhota, a quem pagava o quarto, pelo adormecimento do
elevador, acho que por, de vez em quando, se atrasar com as contas, a tal
senhora também não tinha um rosto que suscitasse esse tipo de reclamações,
ostentava, sempre, um avental próprio de quem se especializou em lides
domésticas, regra geral, sobre o ombro direito, um pano de flanela, nas mãos,
uma vassoura ou uma esfregona, assim que a minha mãe se aproximava, olhava de
lado num mutismo desconfiado, como se, desde logo, impossibilitasse quaisquer
pedidos, nem aquando do pagamento, a sua expressão se alterava, pegava nas
amarrotadas notas para logo as enfiar num saquito de plástico transparente, que
retirava, com sofreguidão, de um bolso que nunca percebi qual, a rapidez dos
seus gestos contrastante com o peso do seu olhar, era viúva, mas, curiosamente,
não sei bem porquê, percebia-se-lhe uma familiaridade com os gumes da vida,
pois, sempre o ontem teimosamente a entrar por cada fresta do hoje, neste caso,
talvez pelos gestos e por uma expressão para quem as vidas, nas margens dos
passeios, nada escondem, quem sabe se por ali tenha andado, não sei, quem sabe,
no entanto, hoje é dona de uma pensão, três andares, acho que uma dezena de
quartos por piso, percebo que os outros hóspedes também familiarizados com as
margens dos passeios, alguns vi por ali caídos, na altura pensei que dormissem,
a minha mãe e as outras mulheres só trabalhavam de noite, antes de sair todo um
ritual para se arranjar, quando o frio gritava por cobertores e aquecedor, eu
muito espantada por ela sair como se fosse encontrar Verão, parecia imune ao
correr das estações, as horas diante do espelho, os lábios e também o rosto com
um excesso de cor, num todo que ditava qualquer coisa de carnavalesco, nunca
lho disse, claro, aprendi a calar a voz que em mim pensava, os saltos dos
sapatos a apelar a equilíbrios, a saia a exibir-lhe as carnes, tudo num excesso
de ser, um ser caído, antes de sair, um cigarro nervoso, acredito que muitos
outros se seguiriam, só me dizia Não
demores a dormir, a tal voz que em mim pensava, embora aprendera a calar,
pedia-lhe que, pelo menos, me passasse a mão pelo rosto, para me saber viva,
mas tudo terminava com o baque irreversível da porta, só pedia a mão pelo
rosto, nada mais, anos depois, aprendi a ternura de um beijo maternal, a minha
face desconhecia tal coisa, e como ficou agradecida, porém, naquele quarto de
pensão, numa dessas ruas de Lisboa que apenas conhecem a sombra, seja manhã ou
tarde, bastava-me uma mão pelo rosto, era tudo o que tinha visto para traduzir
aquilo a que chamavam coração, às vezes, a minha mãe chegava magoada, cheguei a
ver-lhe a saia rasgada e os joelhos em sangue, tal como o rosto, de um dos
lados, inchado, quando isso acontecia, saía do quarto, custava-me muito vê-la
naquele estado, as pinturas carnavalescas deformadas pelas lágrimas
acentuavam-lhe a queda, e também a idade, nunca lhe perguntei quem a magoara,
talvez por, nessa altura, não lhe perguntar o que fazia, embora, numa zona de
mim, algo me sussurrasse que não fosse uma coisa muito correcta, saía de noite,
chegava de manhã, dormia o dia quase todo, após um copo de leite e umas
bolachas, eu saía do quarto, juntava-me aos filhos das colegas da minha mãe,
que também viviam na pensão, éramos, ao todo, uns seis, brincávamos o dia todo
na rua, à espera que elas acordassem, de vez em quando, uma velhota, dos
prédios em volta, chamava-nos para almoçar, achava curioso que não nos fazia
quaisquer perguntas sem ser Querem mais?
Está boa, a comida? Gostam? Antes de regressarmos aos nossos jogos na rua,
onde outros já nem a alma procuravam, enchia-nos os bolsos de rebuçados, e
dizia-nos Não os comam todos de uma vez…
Olhem os dentes! Para mim, tudo isto era uma novidade, creio que para os
outros também, da minha mãe, só ouvia Faz
pouco barulho! Vai brincar para a rua… Sempre naquele tom ensonado, a voz
arrastada, parecia, sinceramente, que arrastava móveis dentro de si, talvez se
soubesse demasiado desarrumada, certo dia, um gato desaguou à porta da pensão,
não sei porquê, mas aquele miar ecoou por mim, parecia pedir-me que lhe
estendesse a mão, levei-o para o quarto, dividi o meu leite do pequeno-almoço,
no fundo, a minha única refeição durante tantos e tantos dias, a minha mãe nem
deu pelo gato, lembro-me de que numa manhã, não sei se fazia frio, se fazia
calor, a sua cama, do lado da janela, vazia, não consigo explicar, mas dentro
de mim um Inverno irreprimível, mais tarde, nesse dia, a polícia, vozes
sussurradas e a compaixão a olhar-me, o calor do gato, ainda não lhe dera um
nome, que agarrava com as poucas forças que reunia, a segurar-me a este lado do
mundo, levaram-me para um sítio onde havia muitos miúdos da minha idade, nunca
me perguntaram se para ali queria ir, em verdade, nunca me perguntaram nada,
nem respostas me deram, a única coisa que lhes ouvi A tua mãe foi para o céu, ainda hoje não sei se foi para o céu, é
possível que lá não gostem de pinturas carnavalescas e de carnes à mostra, é
possível, antes de me levarem para o sítio onde havia muitos miúdos da minha
idade, disseram-me que tinha de me despedir do meu gato, fechei-me no quarto,
enchi-lhe o prato de leite, acho que ainda havia um resto, quando não nos
ensinam as coisas, esquecemo-nos de que elas existem, isso também acontece com
o comer, e abri-lhe a janela, após sorver pela última vez do prato, ele subiu
para o parapeito, virou a cabeça na minha direcção, e não me lembro de mais,
ainda hoje trago comigo aquele calor que me segurou a este lado do mundo, se
houver um céu, sei quem por lá deve andar a esta hora…
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