Há muito que não passava por aquela janela, sem saber muito
bem como, hoje fui lá dar, ali fiquei, parado, a olhá-la, por não sei quanto,
ainda bem, gosto de desaprender o tempo, cada vez mais, talvez não seja bem
isso, porque só se desaprende o tempo quando pousamos a mala do existir, e a
janela, hoje, não sei porquê, parece-me mais longe, embora eu no mesmo ponto de
antes, a olhá-la, por não sei quanto, de fora, tudo igual, ou talvez não, mas
por dentro, de certeza que diferente da minha memória, a janela também hoje uma
outra, porque o olhar, de antes, já tão longe, e a distância fê-lo outro, nem
sei em que ponto se perdeu, sempre que nos apeamos no caminho, lá vem,
despercebidamente, aquela questão, como se os seus passos sob o silêncio de
sombras (E se tudo uma outra coisa?),
é uma pergunta recorrente (E se tudo uma outra
coisa?), não lhe sei responder, persisto na janela, nisto, um candeeiro da
rua relembra-me noite, a janela, no entanto, ainda por iluminar, de repente, o
lar chama-me por um dos bolsos, deixo-o tocar, aquele toque monocromático soou
mais uma vez, mas eu, agora, só com a janela, e há quanto aqui não vinha,
lentamente cedo aos apelos da memória, que começa a submergir-me naquele caudal
caprichoso, de facto, há lugares onde regressamos para um pouco de calor, de
uma outra forma, é bom quando olhamos as coisas com saudade, pelo menos,
soubemo-nos vivos, sei que ela casou e, algum tempo depois, se divorciou, não
estranhei o divórcio, no fundo, alegrei-me com isso, quando me contaram, claro
que me revesti daquela expressão séria e condoída, é isso que esperam de nós,
confesso que aprendi a representar tarde, mas agora, cá me vou arranjando com a
principal ferramenta da vida em sociedade, ao contrário de mim, ela teve o
engenho de não ter filhos, nunca a imaginei a protagonizar o difícil papel de
mãe, há mulheres assim, como se pairassem sobre o nosso pensar, sei que, neste
momento, vive sozinha, não é de espantar que saiba tanto, é o bom de encontrar
rostos do tempo, falamos sempre virados para o que foi, se encontramos rostos
do agora, falamos do amanhã, acho que é tão raro falar-se do momento, sempre
preferi falar do que passou, talvez por não gostar de errar muito, é curioso,
agora que penso nisso, lembro-me de que, numa certa madrugada, ela, num tom
sonhador, a dizer-me que gostaria de não
cair no vazio da monotonia, eu ouvia-a enquanto os meus dedos se perdiam
pelos seus cabelos, quase a percebo aqui a meu lado a dizer-me, de novo, que gostaria de não cair no vazio da
monotonia, se a tivesse percebido, talvez o hoje um outro, como é flagrante
a nossa surdez e cegueira quando podemos escolher a direcção, parece que,
teimosamente, deixamos que as correntes decidam a direcção do leme, sempre a
cobardia de assumir um destino, daí que, bem mais tarde, regressemos a lugares
como este, para levantar memórias com sabor a se, eu que também nunca gostei do vazio da monotonia, no entanto,
quando ela, num tom sonhador, numa madrugada de Verão sem o ser, disse gostaria de não cair no vazio da monotonia, eu
aquém do sentido, tantos passos atrás, lembro-me bem, não lhe respondi,
continuei a perder-me com os seus cabelos, ela levantou-se, devagar, e foi até
à madrugada, abriu a janela e inspirou, observei-a num espanto calado, por ela,
pelo momento, pela madrugada que se insinuava no enlevo das cortinas, por,
muito subterraneamente, saber que nos despedíamos, naquele instante, ela
apresentara-me o futuro, eu, ignorante, permaneci nas faldas do conhecido,
hoje, naquela janela, já não há cortinas enlevadas que permitem a passagem da
madrugada, em verdade, nem sei quem lá mora, ela partiu anos depois daquela
madrugada de Verão sem o ser, o suicídio do pai precipitou as coisas, os ventos
dos negócios sopraram noutras direcções, a mãe teve de se despedir de coisas
para viver com uma dignidade possível, mesmo assim, providenciou-lhe universidade,
ela, sabiamente, nada desperdiçou, admiro-a por isso, e por muito mais, de
repente, a noite entrou-lhe na vida e ela teve a paciência de esperar a manhã,
talvez nisto resida o saber da existência, mas acredito que algo permaneça
desarrumado em si, de novo, aquele toque monocromático, desta vez, atendo, Sim, filho, estou um pouco atrasado. Não,
não esperem por mim para jantar. Diz à mãe que estou só a terminar aqui uma
coisa… Tudo bem! Até já! Suspiro assim que as luzes do aparelho se diluem,
como dizia, acredito que algo permaneça desarrumado nela, duvido que alguém
tenha respondido àquela questão da madrugada gostaria de não cair no vazio da monotonia, um desejo
impronunciável (ou seria um temor?), que ela verbalizou, num tom de sonho, pela
madrugada que se insinuava no enlevo das cortinas, ligo o carro, ainda a
janela, desço um pouco os vidros, sempre gostei do cheiro da noite, relembra-me
que há sonhos pelo ar, retomo o caminho de casa, e se, ali chegado, dissesse à
minha mulher gostaria de não cair no
vazio da monotonia, disparate, seria ridículo, há pensamentos que pertencem
a certas vozes, resta-me um se que se
iluminará a cada madrugada, e eu, num espanto calado, limito-me a regressar a
uma cansada questão: E se tudo uma outra
coisa?
Livros do Escritor
quarta-feira, 22 de novembro de 2023
Gostaria de não cair no vazio da monotonia
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.