Livros do Escritor

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sexta-feira, 17 de março de 2023

Quem mata o sonho, mata a esperança

 



Subiu os cinco ou seis degraus com avidez, a porta encontrava-se aberta, no patamar desaguava aquela luz insípida, prenúncio de auroras distantes, mesmo assim, entrou resoluto, era uma divisão rectangular, uma mesa, ao centro, coberta de revistas anacrónicas, cercada por cadeiras, quase todas ocupadas, por homens e mulheres de idades próximas da sua, também munidos de uma pasta similar à que ele trazia, receberam-no com a indiferença da invisibilidade, como se, de alguma forma, ali não estivesse, é tão estranho, por momentos, ele próprio em dúvidas de ali estar de facto, opta por se sentar, durante uns minutos, receia que um movimento seu quebre a indiferença a que fora votado, como se ousasse romper um veredicto há muito ratificado, à sua volta, apenas incómodo, por si, por todos, por ser, por estar, pelas pastas, pela luz insípida, pela porta que permanece obstinadamente fechada, mas percebe-se gente no interior, timidamente passeia a vista em volta, consigo contou quatorze sentados, seis mulheres, apenas três se abeiraram da mesa por uma revista, quatro olham para a máquina do hoje numa cadência de polegares, dois perdem-se a contemplar a obstinação da porta encerrada, com uma esperança intermitente, os restantes deambulam entre o tecto, as pastas alheias, os passos que ali os conduziram, mas nunca com o amanhã, talvez carreguem demasiado ontem, de vez em quando, um suspiro controlado, uma tosse refreada, até que, de repente, se abre a porta, uma mulher sai, também de pasta na mão, passos rápidos, mas não resolutos, todos os olhares da sala naquela figura que apenas ambiciona sair e respirar fundo, assim que ela sai, as atenções viram-se, de novo, para aquela outra divisão, agora de porta aberta, lá de dentro, uma voz, masculina por sinal, grita um nome, uma das pastas levanta-se, entra, a porta, uma vez mais, a mostrar-lhes o seu rosto, tudo se repete, até que ele ouve um nome que o representa neste mundo dos aparentes vivos, levanta-se, entra, fecha a porta atrás de si, senta-se diante de uma secretária, do outro lado, um sujeito não muito mais velho que ele, de fatinho, impecavelmente engomado, óculos em consonância com os tempos, tudo numa sintonia exasperante, com a excepção de não se lhe notar sulcos de suor no rosto para compreender destinos, muito menos tê-los na mão, à questão Então, mostre lá o seu currículo, a resposta a brotar-lhe por cada poro, E qual é o seu? Para se sentar, na almofada da arrogância, diante de mim? Quem foi a mão conhecida que o conduziu até aí? Tenho a certeza, que nem numa pasta pegou, ao mesmo tempo, olhou a porta, pensou abri-la, sair, não, era demais, para aquilo que pensava do mundo, afinal o seu, o único de onde nunca partimos, mostrar aquelas noites sem travesseiro, as múltiplas páginas, transformadas em volumes, que recitava de tanto as beber, as madrugadas a atravessar a cidade, nos bancos ainda frios dos transportes, por vezes a pé, o tempo que sobrava em trabalhos de ocasião, tudo em nome de um rolo que sempre lhe disseram abrir portas, num último instante, abre a pasta e estende um conjunto de folhas impressas, o fatinho, impecavelmente engomado, recebe-as e começa a analisá-las com um ar superiormente entendido, tudo elaborado numa aura de prestidigitador, enquanto isso, a sua memória a despertar para a primeira tarde de circo, levado pela mão tranquila da Avó, sim, essa mão conhecia bem as madrugadas e os frios deste mundo, e quantas noites não terá passado sem travesseiro, não para decorar múltiplas páginas, mas para compreender que na vida tudo vem de baixo, daí a curvatura que sempre lhe conheceu, talvez por ter atendido à humildade das coisas, ora na lavoura, ora nas vindimas, a acorrer às súplicas febris dos filhos, dos netos, a doença do avô nos últimos tempos, nem por um instante a viu fora da sua cabeceira, compreendeu que a Avó nunca se familiarizou com o travesseiro, a vida não lho permitiu, em verdade, foi a sua consciência, aquilo que pensava do mundo, afinal o seu, o único de onde nunca partimos, a ditar essa escolha, se uma mão como a dela lhe pedisse Então, mostre lá o seu currículo, ele teria pudor em estender um conjunto de folhas impressas.

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