Ia, de bola na mão, ao encontro dos
outros miúdos da minha rua, após o almoço, tínhamo-nos mudado há pouco para o
bairro, esta devia ser a terceira ou quarta vez que jogava à bola com eles, já
tinha uma ideia do que eles faziam com uma bola nos pés, há coisas, na vida,
que basta olhar, com a bola é assim, soube que tinha de regressar pela voz da
minha mãe, que me chamava da janela, já os candeeiros nos lembravam que sempre
ali estiveram, e eu com vontade de continuar o jogo, os outros também, um aroma
a jantar descia pelas janelas abertas, de facto, o tempo da infância obedece a
outros ponteiros, do almoço ao jantar apenas uns pontapés na bola, antes de um
último remate, percebi que se combinava um jogo com os miúdos da praceta de
baixo, pelo tom moderado das vozes, compreendi que era coisa séria, de facto,
poucas coisas superam em relevância um jogo entre as selecções de duas
pracetas, claro que me aproximei daquelas vozes contidas, procurei assumir
igualmente uma expressão compenetrada, mas o olhar dos outros foi inequívoco,
afinal, mudara-me há pouco, fingi-me distraído e deixei-me estar, falava-se de
tácticas, a certa altura, lanço a questão Mas
quem vai escolher a equipa?, percebi, de novo, pelos olhares, a minha
condição de recém-chegado, só mais tarde, já a caminho de casa, depois de ouvir
o meu nome mais duas vezes, agora num tom mais agreste, pela voz de minha mãe,
é que o meu vizinho da frente, também ele um selecionável, me explicou que era
o rapaz do 5º frente, do lote 12, a tratar de tudo, talvez o facto de ser
quatro anos mais velho que a maioria contribuísse para esse estatuto, não sei,
mas algo em mim insistia nessa tese, antes de nos despedirmos, ele vira-se para
mim, e timidamente diz-me, quase a título de conselho, Se ainda hoje fores falar com ele, pode ser que, apesar do pode ser que, eu agradeci-lhe em
sorrisos, afinal, a intenção era boazinha, e tratava-se do meu vizinho da
frente, e os meus pais sempre inflexíveis com essa coisa da educação (Cumprimentaste? Agradeceste? Disseste
bom-dia? Não seguras a porta? Pediste se faz favor? E com licença, não se usa?),
mas quantas vozes nos acompanham os passos?, e uma delas, assim que fecho a
porta, antes de me sentar à mesa, Só pode
estar a gozar contigo! Depois da aula que lhes deste hoje à tarde de bola, teres
de pedir para jogar! A um tipo só por ser mais velho! E, certamente, ainda deve
tropeçar mais na bola do que estes… Esquece isso! Sabes o que vales…,
nisto, soou a reprimenda maternal, o atraso, quantas vezes tem de me chamar,
inadmissível, para a próxima fico de castigo, do lado do meu pai, apenas duas
questões Quantos golos marcaste? Já tens
muitos amigos?, respondi-lhe de pronto, mas curiosamente não partilhei o
dilema que me atomizava, não sei bem porquê, ou talvez saiba, compreendia, numa
fundura de mim, que aquela decisão há muito me aguardava, não sei bem porquê,
mas algo me dizia isso, daí em diante, um trajecto ficaria por cumprir, eu só
esperava que fosse o mais desinteressante, acordei, no dia seguinte, com a
decisão tomada, achei esse facto curioso, sem reflexão, sem angústia, nada,
apenas o sono, e talvez o sonho, como é natural, não pedi a ninguém para jogar,
soube, depois, que perderam, ainda por alguns, com a praceta de baixo, não me
admirei, a bola era-lhes ainda um objecto estranho, anos depois, percebi porque
caminho enveredara, por causa de uma nota escolar, não compreendia o porquê de
duas colegas, com média inferior nas avaliações, terem melhor nota na pauta,
alguém me dizia, Devias conversar mais
com a professora, eu ficava tolhido, a pensar que não me apetecia falar com
a professora, já me chegava a voz dela na sala de aula, durante horas que se me
afiguravam meses, desta vez, socorri-me dos conselhos paternos, afinal, há
muito escolhera o caminho, só me queria certificar que o mais desinteressante
ficaria por cumprir, meu pai Deixa-te
estar, filho. Não nasceste para engraxador, mas logo minha mãe Um sorriso, de vez em quando, não fica mal a
ninguém. Mas não te ponhas com contestações com a professora, eu não queria
contestar, apenas perceber as coisas, mas ficava cada vez mais confuso, um
sorrisinho de ocasião superava três meses de trabalho, começava a achar que
escolhera mal, talvez se tivesse falado com o rapaz do 5º frente, do lote 12,
sempre era quatro anos mais velho, a idade sempre é um posto, hoje teria
aprendido a demorar-me com a professora, nos intervalos, em sorrisos, assim,
quem sabe, os meus três meses de trabalho valeriam por seis, na faculdade, uma
vez mais, o espectro do rapaz do 5º frente, do lote 12, a acompanhar-me, as
repetidas noites de páginas, esferográfica, alimentadas a cafés, sempre aquém
de risinhos, pálpebras saltitantes, nos movimentados corredores do edifício que
proclama enaltecer méritos e trabalho, meu pai já não me perguntava por golos,
talvez por se cansar em demasia da cozinha à sala, no entanto, aconselhava-me Vai com calma. Sê prudente! Vais entrar na
selva que é o mundo do trabalho, compreendi, pelas suas palavras, que tinha
consciência da decisão que eu tomara na manhã da vida, minha mãe, por seu lado,
Juizinho, meu filho. Deixa-te de
devaneios. Cumpre com o que te mandam, e não olhes para os lados, não vou
falar do destino das médias expostas naquele edifício que devia enaltecer
méritos e trabalho, ainda insatisfeito com os factos do lugar onde se nasce,
concorri, com um projecto, a um prémio da área onde me formara, arquitectura,
foram meses para criar uma habitação que respeitasse aqueles desígnios, área
inferior a 200 m2, 60% de luz natural, no máximo dois pisos, etc, mostrei-o a
alguns colegas e entendidos da área, o aplauso foi unânime, despendi os parcos
tostões no banco em maquetas, material informático, tudo para cumprir as
directrizes do concurso, um mês depois, fui visitado pelo rapaz do 5º frente,
do lote 12, o prémio foi para uma rapariga que, soube-se depois, nem o curso
terminara, anos mais tarde, via-a na televisão a falar em nome de pardacenta
cor política, de facto, no lugar onde nasci, há contextos onde não se pode
falar em cores, há muito que tudo se desbotou, certas noites custa-me a
adormecer, talvez seja quando o rapaz do 5º frente, do lote 12, se vem sentar,
diante mim, à espera que lhe peça para jogar, noites como esta, mas hoje
resolvo olhá-lo, desta feita com um sorriso, pego na bola e digo-lhe Vamos. Ainda vais a tempo de aprender a
jogar…
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.