Livros do Escritor

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sábado, 1 de abril de 2023

A emoção espera sempre pelo pensar

 


Quando se apercebeu, já se debruçava sobre o filho, no berço, a seu lado, com esta, talvez a quarta ou quinta vez que, esta noite, o socorria de uma febrezita, quem sabe um dente, os braços dela longos, como ramos a sombrear o viajante que se sabe esgotado, naquele socorro espontâneo, por uma luz que só ela via, talvez por a saber sua, a colher de xarope, o choro, ela numa vertigem de cansaço, pelo canto do olho a procurar as horas no despertador, os números, vermelhos, naquela frieza de uma indiferença surda, passavam uns minutos das quatro da manhã, lá fora, percebeu a camioneta do lixo, as tampas abertas e fechadas como se dia, o pára e arranca da viatura, o esforço metálico de içar o caixote, os urros dos homens, tudo numa sequência orquestral, ela a questionar-se do porquê daquela hora, no fundo, aprendera a familiarizar-se com os sons da madrugada, o xarope silenciara a criança, por quanto tempo, questiona ela, daí a pouco mais de duas horas teria de se levantar, desliga o candeeiro, de novo, um pensamento caminha por si, quando se vira para o lado esquerdo da cama, ainda estende a mão, como que para comprovar o frio dos lençóis, deixa-se estar, assim, já se apercebera de que o sono lhe fugira, talvez fugisse daquele frio irreparável, ainda há uns meses, ele orgulhoso com a barriga dela, fotos e mais fotos, calcorreou todos os clichés possíveis, alguns de gosto duvidoso, desde o clássico beijo na barriga, a fotografar a sombra curvilínea, no relvado ao fundo da rua, tudo irradiava um entusiasmo nascido do excesso, contudo, o excesso habita longe da experiência, ele a procurá-la de noite, ela a afastá-lo numa indiferença mineral, mas ele não lidava bem com o não, talvez por ainda ocupar alguns guarda-fatos da casa paterna, nesta altura, um chorrilho de questões precipitava-se de si (Já não me amas? Sabes há quanto tempo é que não fazemos nada? Mas o que é que se passa? Foi para isto que quiseste ter um filho? E eu? Onde é que fico no meio disto tudo?), ela desejava apenas que não se cumprisse um vómito, daí a súplica pelo silêncio dele, pela pacificação da barriga, que a manhã se apressasse, ouviu-o levantar-se, sair e atirar com a porta do quarto, apesar de, lá fora, a camioneta do lixo, as tampas abertas e fechadas como se dia, o pára e arranca da viatura, o esforço metálico de içar o caixote, os urros dos homens, tudo numa sequência orquestral, numa tradução de fúria, desde aí, sempre que se vira para o lado esquerdo da cama, ainda estende a mão, como que para comprovar o frio dos lençóis, na manhã seguinte, encontrou os lençóis e o cobertor dele dobrados no sofá, trabalhava com o pai na venda de automóveis usados, basicamente tinham o dom da subtracção, qualquer carro que adquirissem, por exemplo, com uns 200.000km passava, miraculosamente, a ostentar pouco mais de 90.000,  havia quem os apelidasse de taumaturgos, é possível, o negócio lá ia, ela conheceu-o no aniversário de uma amiga, há tanta coisa que nos demora os gestos em certos momentos, porém, ela só teve um motivo para ali aportar, esta festa foi há mais de dois anos, hoje, àquela hora da madrugada, virada para o lado esquerdo da cama, ainda estende a mão, como que para comprovar o frio dos lençóis, tem a certeza de que se iria, de novo, demorar nos gestos naquele momento do aniversário, afinal, ela só tinha um motivo para ali aportar, ainda não se familiarizara com os sons da madrugada, com colheres de xarope, e já se ouvia no bairro conversas acerca da nova secretária, também ela perita na arte da subtracção, mais de vestuário que de quilómetros, desde aquela noite que ele não abandonou o sofá, de manhã, os lençóis e o cobertor imaculadamente dobrados, ela fingiu não se importar, se ele um pouco mais de paciência, apesar do vómito, da súplica pelo silêncio, do incómodo da barriga, da pressa  pela manhã, talvez arranjasse disposição para, mas não, optou por um atalho, não é de estranhar, afinal, ainda ocupava alguns guarda-fatos da casa paterna, talvez tenha adormecido com a mão num lugar frio, é possível, ou talvez o cansaço a traísse, como certeza apenas uma respiração penosa a seu lado e um choro em crescendo, levanta-se uma vez mais, estende os seus braços, longos como ramos a sombrear o viajante que se sabe esgotado, naquele socorro espontâneo, por uma luz que só ela vê, talvez por a saber sua, há quem veja a sua luz como o despojo de uma derrota, para esses apenas a nuca, nada mais, compreendera, há pouco tempo, que o destino são as sombras ou luz que o passado derrama no hoje.


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