Quando se apercebeu, já se debruçava
sobre o filho, no berço, a seu lado, com esta, talvez a quarta ou quinta vez
que, esta noite, o socorria de uma febrezita, quem sabe um dente, os braços
dela longos, como ramos a sombrear o viajante que se sabe esgotado, naquele
socorro espontâneo, por uma luz que só ela via, talvez por a saber sua, a
colher de xarope, o choro, ela numa vertigem de cansaço, pelo canto do olho a
procurar as horas no despertador, os números, vermelhos, naquela frieza de uma
indiferença surda, passavam uns minutos das quatro da manhã, lá fora, percebeu
a camioneta do lixo, as tampas abertas e fechadas como se dia, o pára e arranca
da viatura, o esforço metálico de içar o caixote, os urros dos homens, tudo
numa sequência orquestral, ela a questionar-se do porquê daquela hora, no
fundo, aprendera a familiarizar-se com os sons da madrugada, o xarope
silenciara a criança, por quanto tempo, questiona ela, daí a pouco mais de duas
horas teria de se levantar, desliga o candeeiro, de novo, um pensamento caminha
por si, quando se vira para o lado esquerdo da cama, ainda estende a mão, como
que para comprovar o frio dos lençóis, deixa-se estar, assim, já se apercebera
de que o sono lhe fugira, talvez fugisse daquele frio irreparável, ainda há uns
meses, ele orgulhoso com a barriga dela, fotos e mais fotos, calcorreou todos
os clichés possíveis, alguns de gosto duvidoso, desde o clássico beijo na
barriga, a fotografar a sombra curvilínea, no relvado ao fundo da rua, tudo
irradiava um entusiasmo nascido do excesso, contudo, o excesso habita longe da
experiência, ele a procurá-la de noite, ela a afastá-lo numa indiferença
mineral, mas ele não lidava bem com o não,
talvez por ainda ocupar alguns guarda-fatos da casa paterna, nesta altura, um
chorrilho de questões precipitava-se de si (Já
não me amas? Sabes há quanto tempo é que não fazemos nada? Mas o que é que se
passa? Foi para isto que quiseste ter um filho? E eu? Onde é que fico no meio
disto tudo?), ela desejava apenas que não se cumprisse um vómito, daí a
súplica pelo silêncio dele, pela pacificação da barriga, que a manhã se
apressasse, ouviu-o levantar-se, sair e atirar com a porta do quarto, apesar
de, lá fora, a camioneta do lixo, as tampas abertas e fechadas como se dia, o
pára e arranca da viatura, o esforço metálico de içar o caixote, os urros dos
homens, tudo numa sequência orquestral, numa tradução de fúria, desde aí,
sempre que se vira para o lado esquerdo da cama, ainda estende a mão, como que
para comprovar o frio dos lençóis, na manhã seguinte, encontrou os lençóis e o
cobertor dele dobrados no sofá, trabalhava com o pai na venda de automóveis
usados, basicamente tinham o dom da subtracção, qualquer carro que adquirissem,
por exemplo, com uns 200.000km passava, miraculosamente, a ostentar pouco mais
de 90.000, havia quem os apelidasse de
taumaturgos, é possível, o negócio lá ia, ela conheceu-o no aniversário de uma
amiga, há tanta coisa que nos demora os gestos em certos momentos, porém, ela
só teve um motivo para ali aportar, esta festa foi há mais de dois anos, hoje,
àquela hora da madrugada, virada para o lado esquerdo da cama, ainda estende a
mão, como que para comprovar o frio dos lençóis, tem a certeza de que se iria,
de novo, demorar nos gestos naquele momento do aniversário, afinal, ela só
tinha um motivo para ali aportar, ainda não se familiarizara com os sons da
madrugada, com colheres de xarope, e já se ouvia no bairro conversas acerca da
nova secretária, também ela perita na arte da subtracção, mais de vestuário que
de quilómetros, desde aquela noite que ele não abandonou o sofá, de manhã, os
lençóis e o cobertor imaculadamente dobrados, ela fingiu não se importar, se
ele um pouco mais de paciência, apesar do vómito, da súplica pelo silêncio, do
incómodo da barriga, da pressa pela manhã,
talvez arranjasse disposição para, mas não, optou por um atalho, não é de
estranhar, afinal, ainda ocupava alguns guarda-fatos da casa paterna, talvez
tenha adormecido com a mão num lugar frio, é possível, ou talvez o cansaço a
traísse, como certeza apenas uma respiração penosa a seu lado e um choro em
crescendo, levanta-se uma vez mais, estende os seus braços, longos como ramos a
sombrear o viajante que se sabe esgotado, naquele socorro espontâneo, por uma
luz que só ela vê, talvez por a saber sua, há quem veja a sua luz como o
despojo de uma derrota, para esses apenas a nuca, nada mais, compreendera, há
pouco tempo, que o destino são as sombras ou luz que o passado derrama no hoje.
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