Perdi o tempo da viagem, talvez por encontrar o outro tempo,
enquanto o retrovisor me espelha curvas, copas e mais copas, muito fugidiamente
um vulto, debruçado sobre a terra a semear amanhãs, casas, terras, daquelas que
apenas sabemos o nome por ali passarmos, numa inevitabilidade da viagem, mas,
em verdade, as terras são todas iguais, olhares que se cruzam, corações que se
sorriem, caminhos que se desviam, vozes que se emudecem, costas em vez de
rostos, e, sempre, no fim de tudo, uma pedra erguida do chão no lugar de sonhos
caminhantes, pouco mais há, uma praça, uma fonte, um miradouro, isto é do ver,
o antes é pertença do sentir, e é isto que me faz estar ao volante há horas
esquecidas, ela, a meu lado, porém, não sei em que tempo ela, continua a falar-me,
desde a primeira curva, há demasiadas horas atrás, ainda não cessou, amiúde,
uma frase suspende-se Já viste a alegria
da tua mãe com um netinho nos braços… E a minha, coitada, com medo de partir
deste mundo, sem esse sonho se cumprir… Nem uma observação para a
satisfazer, mantinha aquele ar compenetrado, de quem leva a condução muito a
sério, afinal, na estrada, e noutros lados, a segurança é um valor vizinho da
existência, fascinava-me a facilidade com que encontrava temáticas, eu sempre
falei mais comigo, neste momento, em que regresso a uma outra idade, é curioso,
há lugares onde somos sempre plurais, tristes são os lugares onde somos o
singular, nesses nem uma janela para se abrir, as sombras das árvores
espreguiçam-se, como se quisessem abraçar o momento, no céu, aqui e ali,
acende-se um fogo longínquo, como se nos relembrasse que a noite caiu para
todos, olho-a para lhe dizer que certamente já não chegamos hoje, de vez em
quando, perco aquele ar compenetrado, talvez já me demore a sair de mim, as horas
demasiadas a pesar sobre os ombros das pálpebras, ela a sugerir aquele hotel
onde, também há muito, nós, certa noite, de novo, uma frase suspende-se, Já viste a alegria da tua mãe com um netinho
nos braços… E a minha, coitada, com medo de partir deste mundo, sem esse sonho
se cumprir… Sem o escudo do ar compenetrado, da estrada levada a sério,
encosto naquele lugar, onde, antes, nós, ela contava-me sonhos, eu sempre na
serenidade de uma sombra de Verão, compreendia-lhe os anseios e lançava-os para
o futuro, de certa forma, ela agradecia-me o gesto, mas nunca se esqueceu de os
recolher à medida que caminhamos juntos, daí a partida para aquele Norte
distante, onde o Inverno parece devorar as outras estações, lembro-me, na hora
da partida, de sussurrar a meus pais, Compreendam,
dizemos adeus ao desemprego, meu pai cansado de tantas compreensões, a sua
boca numa horizontalidade calada face ao hoje dos seus filhos, minha mãe, a seu
lado, procura, através de gestos vazios, incentivar-nos à estrada, e isto já
foi há tanto, mas, para mim, continua a ser há tão pouco, uma vez mais, naquele
lugar, onde, antes, nós, ela contava-me sonhos, eu sempre na serenidade de uma
sombra de Verão, compreendia-lhe os anseios e lançava-os para o futuro, ela
insiste em recolher algo do caminho através de uma frase que se suspende, Já viste a alegria da tua mãe com um netinho
nos braços… E a minha, coitada, com medo de partir deste mundo, sem esse sonho
se cumprir… Das primeiras vezes, relembrei-lhe o Inverno devorador de
outras estações, a incerteza com que levávamos o pão à mesa, o meu bolso
alargado pelo dicionário, e o dela também, todavia, hoje, nada tenho para lhe
relembrar, no meu rosto vislumbro a linha de uma horizontalidade calada, e eu,
ao contrário de meu pai, ainda não me cansei de compreender, naquele lugar,
onde, antes, nós, ela contava-me sonhos, eu sempre na serenidade de uma sombra
de Verão, compreendia-lhe os anseios e lançava-os para o futuro, repousa o
rosto no meu ombro, é verdade, há lugares onde somos sempre plurais, ela
recolheu futuro e trouxe-mo na forma de um gesto feito desejo, acompanho o seu
olhar às alturas, aqui e ali, acende-se um fogo longínquo, como se nos
relembrasse que a noite caiu para todos, talvez não, neste momento, caminhamos
por sorrisos, sob um sol de Verão, em busca de uma sombra repousada.
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.