Estou a vê-lo, neste momento, a
estacionar o carro, no lugar do costume, debaixo do candeeiro, sempre com medo
dos roubos, não perdeu aquele hábito de retroceder, pelo menos uma vez, para
endireitar o carro, agora sai, pousa a carteira no tejadilho, acho-o mais
curvado, não sei porquê, afinal, não passou tanto tempo assim, vasculha o
interior com o olhar em busca de uma traição da memória, fecha a porta, guarda
a carteira, eu, do outro lado da rua, saio do meu carro, chamo-o, não muito
alto, ele naquele seu peculiar passo arrastado a caminho do prédio, talvez não
me tenha ouvido, resolvo gritar o seu nome, detém-se, por momentos, receio que
rosto vou encontrar, todavia, não abrando a passada, faltavam-me cerca de dois
metros, quando ele se vira, não sei porquê, mas opto por me imobilizar, o
discurso que havia elaborado, com toda uma sequência frásica, a diluir-se
perante aquela face, ou talvez pelo horizonte de passado que o seu olhar
derramou, eu… eu… bem, eu queria dizer-lhe tanto em tão pouco, geralmente é o
que procuramos, mas cansamo-nos tanto a correr atrás das palavras, que, na
maioria das vezes, socorremo-nos de uma ideia cansada ou de um gesto vazio, e
aquele olhar num gritante contraste com a curvatura pronunciada de há pouco,
uma energia alimentada por uma dor que eu bem sei, foi há uns três anos,
caminhávamos para onze de casamento, aquela fase em que sabemos a passagem dos
dias pela data, como se entre nós e o mundo sempre uma janela, ele trabalhava,
e ainda o faz, numa repartição pública, saía todos os dias à mesma hora,
chegava a casa, hora e meia de volta do aquário, nem dava pela minha chegada,
sempre depois, era balconista, e ainda sou, com muito orgulho, confesso, numa
casa de modas, não há chinês que lhe chegue, via-o absorto com aquelas cores
flutuantes, chegou mesmo a baptizá-las, nunca lhes quis saber os nomes, mas,
surdo para o meu desinteresse, debitava-mos de qualquer maneira, como as
diferenças de águas doce e salgada, nessa altura eu, felizmente, já com a
novela, e um bocejo aqui e acolá para o afastar, aos fins-de-semana, os miúdos
em casa, os pais dele também, de novo, em mim, aquela sensação de entre nós e o
mundo sempre uma janela, ele e o pai, nas tardes de Sábado, de volta daquela
caixa de vidro, cheia de água, nunca soube se doce ou salgada, com cores
flutuantes, ao Domingo, depois de almoço, iam para o café, ao fundo da rua,
porque tinha o canal da bola, durante uns tempos ainda me falou para metermos
isso cá em casa, mas rapidamente percebeu que, em certos lares, o mês demora mais
a passar, isto só sucede quando o porto está sempre um cabo adiante dos desejos
do navegador, enquanto isso, o perfume naftalinoso da minha sogra em cada divisão cá de casa, a
insolência dos miúdos crescia sob o manto indulgente dos avós, e eu perdia-me a
olhar as cores flutuantes na caixa de vidro, cheia de água, enquanto suplicava,
a um grito de mim, que se silenciasse, confesso que não sei quantos
fins-de-semana foram, sei que duraram anos e anos, talvez até à trombose do meu
sogro, aí mudámo-nos para o hospital, por esta altura, certa tarde, entra-me pela loja um antigo
colega de escola, reconheci-o de imediato, chegámos a trocar uns beijos atrás
do pavilhão, era atrevido com as mãos, também me reconheceu, mudara-se há pouco
para o bairro, vinha saber onde eram os correios, ofereci-me para o acompanhar,
era uma hora de pouco movimento da tarde, pedi à minha colega que olhasse pela
loja, lembro-me de cada palavra e olhar que trocámos, é curioso, parecia
reaprender a memória do tempo, quando dei por mim, após uns cafés, telefonemas,
estava deitada com ele no colchão, sobre o soalho, no quarto ainda despido de
móveis, o estore a meio permitia saber as horas, da primeira vez foi na pausa
de almoço, ele continuava atrevido com as mãos, eu gostava, e agradecia,
finalmente abria-se a janela que me separava do mundo, a certa altura, não
conseguia regressar àquele horizonte de costas debruçadas sobre uma caixa uma
caixa de vidro, cheia de água, com cores flutuantes lá dentro, apenas os miúdos
choraram a minha crescente ausência, a minha sogra, pelo telefone, ainda me
gritou um sinónimo corrente de rameira, de certa forma não me admirei desta sua
atitude, cheirava-me a naftalina, mas isto foi na altura, quanto a ele,
silêncio, a repartição pública, a saída sempre à mesma hora, as costas dobradas
sobre uma caixa de vidro, cheia de água, com cores a mover-se lá dentro, os
fins-de-semana agora apenas com a mãezinha, o pai, entretanto, partira, os
miúdos quiseram ficar com ele, eu compreendi, ao contrário de mim, ele tinha
gestos de lar, já não me lembro em que altura foi, mas percebi, muito a custo,
confesso, que as mãos eram atrevidas e demasiado irrequietas, certa tarde,
também à hora de almoço, em que era para estar na loja, no colchão, ainda sobre
o soalho, no ainda quarto despido de móveis, ele e a vizinha do quarto andar,
bem mais nova que eu, acho que fazia unhas numa dessas lojas a atirar para um
barroco tardio, não me perceberam, talvez pelos gemidos, saí tímida, para não
os interromper, tudo o que vestiu aquela
casa veio de mim, dos electrodomésticos aos poucos móveis da sala, ele sempre
refugiado na conversa de estar entre
projectos, à espera dele, pelo menos uma vez por semana, a senha do centro
de emprego, a certa altura, começou a falar mais alto (e como eu estava
habituada a silêncios!), entre nós, apenas a memória do colchão, sobre o
soalho, no quarto ainda despido de móveis, o estore a meio que permitia saber
as horas, as mãos, afinal, sempre pluralmente atrevidas, os beijos, noutra
vida, atrás do pavilhão, era pouco, talvez fosse nada, era isto que te queria
dizer, enquanto por ti, quem sabe, ainda haja a memória do teu nome escrito,
pela minha mão, por pedras à beira-mar, naquela praia do Norte, onde tanto
gostas de passar as férias grandes, à espera dos teus primos emigrados em
França, achava graça ao trejeito que fazias enquanto soletravas cada sílaba sob
a luz marítima de Agosto, se pudéssemos subir, e conversar um pouco, talvez eu
te ajude a limpar uma caixa de vidro, cheia de água, enquanto memorizo, para
sempre, o nome de cada cor flutuante.
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