Há lugares que, sem sabermos muito
bem como, se tornam nossos parentes, talvez por, enquanto caminhamos por essas
ruas, uma voz, sussurrante ao ouvido, nos aquietasse angústias, ao mesmo tempo
nos relembra que, ao menos, por ali, já desejámos amanhãs, ele, neste momento,
encontra-se num desses sítios, sentado a uma mesa, suficientemente afastada da
entrada, pelo menos o sol não chega e a lua não relembra lar, sabe que inclina
a garrafa pela segunda vez, mas não se lembra da primeira, é curioso, a
convicção sem a memória, não olha à sua volta, apenas o copo, e a garrafa,
apesar da perspectiva geral da sala, desta vez, o copo mais lentamente, quer
saborear aquele gosto crescente da distância das coisas, algo em si se aquieta,
subitamente, repara no seu olhar aparecido no fundo, não é a primeira vez que
se olha, e se estranha, mas, hoje, há uma qualquer diferença, antes evitava
olhar-se, mesmo ao espelho nunca, em verdade, se olhou, afinal, observar não é
olhar (o que vê ele, após o desvelo do líquido escarlate?), talvez alguém caído
num desamparo de beco, sob uma noite sem auroras profetizadas, não se importa,
está naquele momento da vida em que, certas palavras, caem do bolso da sua
linguagem, e não se preocupa nada com isso, pelo contrário, tudo resumido a um encolher
de ombros, afinal, hoje sabe-se mais rico, pelo menos no léxico, aprendeu que
certas palavras sabem a universo, pousa o copo, o seu olhar desvanece-se sob o
horizonte reaparecido da sala, baixa o rosto e procura-se de novo naquele vazio
envidraçado, roda e roda e roda, numa abnegação autista, aquele agora nada, um
náufrago conhecido aproxima-se, não de si, mas da bóia da garrafa, depois dos
cumprimentos, os tentáculos do social são demasiado longos, senta-se sem
convite, da entrada, um latido, como sempre, o cão acompanhara-o até ao
possível, perscruta o interior sentado, à porta, no tapete, o náufrago
conhecido levanta-se numa contrariedade evidente, é compreensível, a bóia ao
alcance da mão e, de repente, forçado a afastar-se, da entrada, agora, apenas
os ganidos do cão, uma cena recorrente, o animal a esquivar-se, passeio fora,
aos pontapés, por fim, regressa, ofegante, uma boa desculpa para haver gesto
sem verbo, senta-se e enche um copo, entretanto desviado do balcão, o outro
continua, numa abnegação autista, a rodar e rodar e rodar, ambos naquela praia
desolada, apenas despojos a toda à volta, o náufrago conhecido avança para o
segundo copo, a garrafa quase um também vazio envidraçado, cada qual naufraga
por motivos distintos, e nem sempre são os que levaram a embarcar, entre eles,
tirando os tentáculos do social, apenas vozes emudecidas, é o suficiente,
aquele não é um lugar de excessos, para isso, basta-lhes contemplar a vastidão
de despojos circundantes, as vagas ameaçam tragá-los, não sabem se seria bom,
talvez fosse, esquecerem-se, de vez, de si mesmos, de repente, pára de rodar o
copo e, num gesto altruísta, manda vir mais uma garrafa, o náufrago conhecido
acompanha-lhe o gesto com feições de uma alegria contida, da entrada, uma vez
mais, um latido, o tapete, de novo, ocupado, a garrafa pousa na mesa pela mão
da empregada, opta por encher, primeiro, o copo do náufrago conhecido, segue-se
o seu, finalmente, face àquele cansado e incessante marulhar, o verbo solta-se,
e, cada um, relembra os porquês de
ter embarcado, certo dia, naquele navio, ou, quem sabe, talvez por lá
deambulasse quando procurou por esses porquês,
e, a uma mesa, suficientemente afastada da entrada, onde pelo menos o sol
não chega e a lua não relembra lar, ouviram-se duas histórias, de quem ousou
olhar o longe, mas, por isto ou aquilo, não encontrou o caminho para lá chegar…
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