Vi-os, pela primeira vez, numa tarde
de sol, do quarto que alugara, num segundo andar, naquela travessa da cidade,
não sei porquê, mas sustive-me perante um quadro familiar a céu aberto, ela
ladeada dos filhos, um em cada mão, a rapariga aí pelos dez, o rapaz mais novo
dois ou três anos, é curioso, pareciam familiarizados com o trajecto, a sua
vista fresca não se detinha em lateralidades, pelo contrário, seguiam o
compasso materno numa devoção incondicional, percebi-lhe, apesar do segundo
andar, do passo ligeiro, uma nuvem a caminhar pela face, até que uma esquina os
subtraiu do possível que eu já não olho, fiquei suspenso do há pouco, havia
nela qualquer coisa que me fazia lembrar de mim, e os miúdos, passos de meninice
guiados por uma nuvem sobre uma face, há coisas que não pedem licença para
entrar na nossa atenção, geralmente é o que nos falta, apesar do sol na rua
convidar a mundos, persisto na compreensão de uma nuvem que se detém sobre uma
face, regresso ao leito de onde me levantara não há assim tanto, de novo, a
ideia de que havia nela qualquer coisa que me fazia lembrar de mim, olho-me em
vez de olhar, é o mais frequente, mas nós sempre na desatenção de nos fugirmos,
eu a remar pelo inverso, a procurar a memória que ela me despertara, talvez aí
chegado aporte na compreensão de qualquer coisa, voltei a vê-los uns dias
depois, uma vez mais, numa tarde de sol, do quarto que alugara, num segundo
andar, naquela travessa da cidade, peguei no casaco e desci, porém, assim que
um pé no passeio, nem vestígios de um quadro familiar a céu aberto, à minha
volta apenas passos anónimos, nada mais, soube, mais tarde, a génese daquela
nuvem que insistia em caminhar por uma face, há sempre uma voz à procura de um
ouvido atento, nem tive de ir assim tão longe, bastou-me a minha senhoria,
pródiga em enredos de paredes alheias, talvez julgue que, desse modo, silencie
os seus, em verdade, uma prática cansada, certo dia, uma jovem que trabalhava
como criada numa pensão, percebeu amanhãs diferentes quando se cruzou, na
escada, com um jovem embarcadiço, de sotaque espanholado, ele também não ficou
indiferente aquela candura que aprendia a soletrar amor, começaram por um
gelado na praça, uma matiné num Domingo, o primeiro aproximar de lábios, dias
depois, ela a acompanhá-lo ao porto, a assistir esmagada à sua partida, ele a
sossegá-la, oito semanas passam rápido, para ela, soaram a eternidade, num
Sábado de manhã, uma hora antes do previsto, já ela contemplava o zénite
marítimo, nem se apercebeu do lento regresso do cargueiro, de o procurar com
avidez no meio daquela rudeza que suspirava por terra, de correr para ele, de o
abraçar, daquele sotaque espanholado lhe segredar que a amava, de facto, os
amanhãs seriam irremediavelmente diferentes, quando regressou a si, estava no
quarto que ele geralmente ocupava na pensão, as portadas semi-fechadas
conferiam uma recatada luminosidade, conheceram-se por inteiro nessa tarde, já
suspiros ecoavam pelo quarto e ela em lágrimas ao destino no pânico de o perder,
muitas vezes regressou ela ao cais, o único sal que conheceu advinha-lhe do
sentir e desenhava-se-lhe no rosto, até que, muito tempo depois, numa tarde, no
meio daquela rudeza que suspirava por terra, ele a não aparecer, ela gritou,
gritou, e gritou o seu nome, como eco, no fim de tudo, apenas o marulhar das
águas e o aviso salgado das gaivotas, ela ladeada dos filhos, um em cada mão, a
rapariga aí pelos seis, o rapaz mais novo dois ou três anos, a olhar as luzes
da cidade numa forma líquida, diante de si, o cais, agora, já deserto, antes de
regressar, ainda perguntou na portaria por uma carta, um recado, percebeu, pela
expressão do homem, atrás dos vidros, que aquela era uma pergunta, por aqueles
lados, extenuada, o sujeito limitou-se a um movimento horizontal do rosto
acompanhado por um longo suspiro, à vista daqueles rostos que a ladeavam, cedo
se lhes apresentou a noite, claro que, findo o relato, a minha senhoria
procurou saber do meu interesse, esquivei-me como pude, posso apenas adiantar
que, neste momento, ela vem ao meu encontro, ladeada dos filhos, um em cada
mão, a rapariga aí pelos doze, o rapaz mais novo dois ou três anos, cada um já
escreve o seu nome com o meu apelido, aguardo-os à entrada da nossa casa, numa
vila do interior, é verdade, escolhemos um lugar onde não houvesse cais, o
aviso salgado das gaivotas, e onde nuvens não caminhem pela face.
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