Por fim, chegou o Domingo. Apesar
disso, o despertador tocou como se de uma segunda-feira se tratasse. Mas,
naquela casa, não se ouviram protestos, ninguém se virou para o outro lado na
cama, nada, todos se levantaram em leveza, apesar do cheiro a fritos da
véspera, a mãe, quase até à meia-noite, dividida entre dois horizontes, a
novela e o fogão, rissóis, croquetes, o marido a protestar pelo cheiro, ela a
responder-lhe Quero ver se, quando te der
a fome, não te vais chegar a eles, não houve gestos apressados, corridas
pela única casa de banho da casa, olhares furtivos para o relógio, pelo
contrário, reinou a parcimónia entre eles, pai e filho encarregaram-se de levar
tudo para o carro, o guarda-sol, um pequeno frigorífico, bem abastecido de
cervejas e refrigerantes, um saco com os inevitáveis tupperwares onde se
acondicionavam, entre outros, fatias de bolo, os fritos da véspera, sandes, em
pão de forma, de fiambre, queijo, e doce, bolachas, pêssego em calda, um tacho
de arroz, noutro saco, espelhos, escovas, cremes, protectores, e demais
utensílios requeridos pela beira-mar, raquetas, bola, o rádio para ouvir música
e acompanhar o relato, duas cadeiras de armar, a bagageira já estava bem
composta, o pai, agora, impaciente, a tamborilar os dedos no tejadilho do
carro, enquanto olhava incessantemente para a entrada do prédio, percebia-se o
destino pela indumentária, um boné desbotado enfiado até à testa, com marcas
bem impressas, algures entre suor e sal, camisa de manga curta desabotoada
quanto baste para exibir a fé, na forma de um medalhão litúrgico, perdido
algures entre a vasta pilosidade, prova cabal e indesmentível de masculinidade,
seguia-se uma tanga azul-choque, a evidenciar a morfologia da intimidade
masculina, nos pés, uns chinelos plásticos, brancos, com uma tira larga a
esconder o peito do pé, mas não aquela unha encravada, já amarelecida, no dedo
grande do pé direito, que soavam histeria a cada passo, o filho, em termos de
indumentária, não ficava aquém do paradigma paterno, adicionava um brinco reluzente
no lóbulo esquerdo e uma poupa alicerçada a bisnagas de gel, por fim, o trinco
da porta soou, o pai, de novo, em sorrisos, a mulher saiu, secundada pela
filha, vinha com o seu chapéu de palha, gasto nalguns pontos por Verões
anteriores, os óculos-escuros que havia comprado a um marroquino na Praça da
Figueira, embora, para as amigas, proclamasse bem alto Perdi a cabeça por eles. Nem te digo o preço, para não te sentires mal,
e bastaram-lhe algumas moedas, uma camisola demasiado justa para o relevo
da zona abdominal, e uns calções, desajustados tanto para a idade como para a
forma física, que faziam sobressair os efeitos da gravidade naquele corpo, e
cada passada trazia à memória um anúncio televisivo das gelatinas royal, a
filha, por seu lado, apenas discrição, como se quisesse permanecer nas faldas
daquele quadro, assim que entraram no carro, o pai ligou o rádio, mãe e filho
em sorrisos, a filha com a janela, rumaram para a Costa, ainda tinham a ponte,
o crucifixo no retrovisor era garantia de segurança, para os bancos da frente,
o pai adquirira, há umas semanas, a um amigo, umas capas com umas esferas que
eram garantia de bem-estar para a coluna, os bancos traseiros estavam
protegidos com uma colcha, e, no vidro traseiro, o miúdo havia colado um autocolante
com o dito Não me siga, estou perdido,
a princípio, o pai renitente, mas lá acabou por achar a sua graça, antes de
chegarem à ponte, o rádio ainda mais alto, o pai maldizia o trânsito, a mãe
ajeitava a maquilhagem, o filho repetia incessantemente a mesma questão (Ainda falta muito?), a filha sempre com
a janela, elegera-a para sua companheira de viagem, talvez há muito, nem olhava
o irmão, um continente separava-os, era cinco anos mais novo, volvida hora e
meia, o estacionamento de terra, a distribuição dos sacos, a mãe à frente, a
brancura publicitava ainda mais o efeito gelatina, seguia-se o pai, o
azul-choque da tanga a contrastar com a alvura descarnada dos membros
inferiores, o irmão aos saltos com a bola e mais qualquer coisa, a uns quantos
passos atrás, a irmã, sempre nas faldas deste quadro, a olhar como se de uma
janela, demoraram o seu tempo a instalar-se, após o guarda-sol, as toalhas,
abrir as cadeiras, ligar o rádio, pô-lo audível em relação às ondas, fechar os
sacos onde havia comida por causa da areia, ele deliciado a pôr protector nas
costas da mulher, ela nem precisou de o verbalizar, já a aguardava de frasco na
mão, o filho entretinha-se a jogar raquetas com um vizinho de um guarda-sol
próximo, só a rapariga da janela se encaminhou para a água, assim que uma onda
lhe cobriu os pés, respirou fundo, avançou mais uns passos, achou curioso, o
único som advinha das águas, olhou para trás, parecia tudo tão longe…
Livros do Escritor
domingo, 12 de março de 2023
Um dia de praia
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