O quarto cheira a solidão. Sim,
aquele quarto em particular. Será um quarto? Bom, trata-se de uma divisão da
casa. Mas a que não deram a finalidade de quarto. Deram-lhe uma outra. Tem uma
secretária e livros, livros, e mais livros… Na secretária, papéis agora
arrumados. Quem ocupa esta divisão? E de quem é a casa? Sombras, agora sombras.
Regressemos a esta divisão específica. À secretária com os papéis arrumados,
aos livros, ao estore corrido, às luzes apagadas (sobretudo a do candeeirozito
da secretária, que dava aquela tonalidade esverdeada), a cadeira arrumada que
proclama, no desconforto de um grito, o vazio desolador de uma partida. Quem
partiu? Quem ali vivia? De quem era aquela casa? Não nos interessa a casa.
Somente aquela divisão. A dos livros, a da secretária. Mas a casa… Não!
Interessa-nos, apenas, onde vivem as ideias. E uma casa sem livros é uma casa
sem ideias. E de pobreza, estamos conversados.
Será tarde, lá fora? Sim, talvez
entardeça, anunciam as escassas frestas dos estores, que, numa obstinação
guerreira, resistem ao hermetismo. A secretária silenciosa, os livros calados,
as luzes sem luz. Fechemos os olhos, ombro na parede, mãos nos bolsos… E sim,
de repente, ouve-se um som. Uma caneta rabisca algo num papel. Parece música! A
caneta pára, volta a andar, pára de novo, e sentimos luz enquanto a caneta
estática, apesar dos olhos fechados, uma luz povoa o quarto… De onde provém? A
caneta avança de novo, a luz esmorece, agora interrompe a marcha, a luz… Sim,
claro, já percebemos, a centelha que alumia a mão… A cadeira arrasta-se. Alguém
se levanta. Música. Sim, música pela casa. Um nocturno (Chopin?) preenche todo
o espaço. Afinal, entardece lá fora. De novo, a caneta. Sim, percebemos agora,
esta divisão pertence a um escritor. Abrimos os olhos. Ali está ele, à sua
secretária, parece-nos a encosta e a folha o vale, no olhar sonhos por sonhar,
e a mão numa férrea vontade de os agarrar. E os sonhos a fugirem-lhe, e a mão,
dirigida pelo olhar, sempre no seu encalço, com a ajuda de uma caneta e de uma
folha de papel. Sim, e da música. Porque música e sonhos habitam o mesmo
espaço. Um espaço além palavras. Onde esta se torna supérflua. E o escritor sabe
disto. Qualquer escritor, digno de usar este epíteto, conhece esta limitação do
verbo. Todavia, a quem o mundo não basta, é filho de D. Quixote. E só lhe resta
o galopar de sílaba em sílaba, descansar, para recobrar forças, à sombra de uma
vírgula, armado de uma caneta, e investir de novo contra a brancura desafiante
do papel, para tentar, aí, aprisionar o resquício esvoaçante de um sonho (…)
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