Àquela hora a sala estava cheia. Afinal, era uma da
tarde. Ele ocupava a mesa de sempre. Olhos no prato. Não bem no prato. Em
qualquer outra coisa. No ar, múltiplas vozes numa só conversa, talvez, no
fundo, se trate de uma só voz, sempre demasiado alto, que se desdobra pelas
diversas mesas, num assunto oco, balizado entre o queixume e a projecção. E ele
a olhar para a comida, sem qualquer vestígio de apetite. Só sente sede. A sua
afinidade está com o copo. Tem sede de se esquecer (de si?)... Ainda não levara
o garfo à boca, e a garrafa em metade. Agora roda o copo, vazio por enquanto,
firme na mesa, com o médio e o polegar. Roda, e roda, e roda… E no copo, não se
consegue encontrar, nem agora, nem em momentos idos. Pega na garrafa. O copo,
desta feita, escarlate. Sim, agora vê-se um pouco. Um sorriso, embora de há
muito. Na mão, um saco transparente com pipocas. Ela ocupada com o algodão
doce. Cor-de-rosa, sim, lá está. E, na frente deles, um carrossel, num apelo,
sem lugar para não, a voltas e voltas… O copo, de novo, vazio. Agora, transparente.
Já não se reencontra. Novamente, o polegar e o médio a rodá-lo: uma, duas, três
vezes… E nada. A sua transparência apenas lhe devolve vazio. Se ao menos o
pintasse de escarlate, uma vez mais, talvez reencontrasse o carrossel, o
algodão doce cor-de-rosa, o saco transparente cheio de pipocas… Mas a garrafa
não o permite. E a carteira ainda menos. Olha o empregado. Este, numa imaculada
pedagogia, assente no mais sábio compêndio do mundo (intitulado: Vida), sorri-lhe, aproxima-se, empurra-lhe o prato, já morno, para a
frente, pega na garrafa vazia, e sussurra-lhe ao ouvido: Alimente-se, homem. Já chega deste fel! E ele vê a garrafa a
afastar-se, sem direito a um adeus, e com ela a diluírem-se um sorriso, um
carrossel, a elegância de um algodão doce cor-de-rosa, e o gosto esforçado das
pipocas de um saquito de plástico transparente. Agora, só lhe resta o prato.
Olha a comida. Mas há muito que desconhece o paradeiro do apetite. Procura com
o olhar o empregado. Encontra-o, após o tempo necessário. Este apenas um
sorriso. Um sorriso que encerra um universo: Não, já chega. Pelo menos, por agora. Você não pode ter outra queda,
como esta última. De certeza, que não lhe sobrevive. À noite, bebe mais um
tragozinho. Mas com calma. Alimente-se, homem! Que se há-de fazer?! É a vida!
Não lhe podemos fugir… Por fim, ele levanta-se, mãos apoiadas na mesa. Com
ele, erguem-se as décadas de vida acumuladas, os dias de sol, as longas
borrascas, as certezas idas, e as dúvidas inesgotáveis… Encaminha-se para a
porta. Numa mesa, gritos de crianças chamam-lhe a atenção. Crianças, o futuro!
Que grande disparate, pensa ele. Criança é, e será sempre, sinónimo de passado.
Este pensamento ocupava-o quando, apoiado numa parede, toma o caminho de casa.
Sabe que, da porta do restaurante, os seus titubeantes passos são vigiados pelo
empregado. Pára. Olha para trás. Lá está ele, à porta, com o seu sorriso de
universo. Que se há-de fazer?! É a vida!
Não lhe podemos fugir…
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