Livros do Escritor

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domingo, 8 de março de 2020

A Solidão de uma Música Partilhada



De onde vinham? Àquela hora tardia? Afinal, que horas eram ao certo? Não se sabe. De facto, não se consegue perceber que horas marca o mostrador do carro, naquela peculiar tonalidade a atirar para o alaranjado. A cidade sob um manto de silêncio. Do rio, emerge uma neblina com auspícios de conquista. No ar, um temor de ecos. O carro procura a jusante de um lar (feliz?). São raros os faróis circulantes. Apenas, e por uma vez, o eco demasiado metálico, pontuado por assobios cansados de tanto os repetirem, de um camião de recolha dos excessos. À passagem do digno centro da cidade (todo o centro reveste-se de uma dignidade indizível), vislumbram-se sombras (muitas) sob arcadas graníticas, que ora se expõem, num canto doloroso de sereia naufragada, ora se recolhem no corar inoportuno de uma menina esquecida (ainda terão a memória desta?). Na rua contígua às arcadas, algum trânsito, apesar da hora. Viaturas com único tripulante, de olhar fixo nas trémulas sombras, talvez outros naufrágios… Agora, sedentos e famintos, procuram, a esta hora esquecida, naquelas trémulas sombras, o resquício de um calor ido (para onde fora?)… Do outro lado da praça, também sob arcadas, cartões sobre linhas antropomórficas. Um sobe e desce de respiração. De vez em quando, um halo ilumina-se pela graça de um candeeiro. Todos numa respeitosa fila horizontal, encostada a uma parede. De dentro do carro, afigura-se uma parada de cartões. Nem uma laje se avista. Apenas, um chão cartonado. Ela ainda procura um rosto naquele estranho universo de pedra e cartão. Um rosto que lhe permitisse a compreensão. No entanto, nada vislumbrou. Todos velados por mangas sujas e coçadas de casacos, e por gorros esticados num imperativo de pudor. Abandono, foi a única palavra que nasceu em si. E por largos instantes, a única que a povoou. Ele olhava as fachadas históricas e iluminadas dos edifícios. Embora a lentidão da marcha, indiciasse um peso acumulado por lajes, mangas coçadas e gorros de pudor. Mas eles nada tinham que lhes cobrisse o rosto. Dentro do carro, não se formavam halos. Afinal, os candeeiros piedosos estão no exterior húmido e gelado. O único desconforto ali sentido, deriva da música do rádio. A canção de uma outra vida. Sim, todos vivemos várias vidas. Porque também morremos muitas vezes. E nenhum deles ousa desligar o rádio. Sim, o pudor acaba por encontrar uma forma de entrar no conforto tépido deste carro. Através de um gesto: o não desligar de um rádio. É sempre mais suave que uma manga coçada a cobrir um rosto. E o carro continua a rolar, a caminho de um lar (também naufragado?)… Agora atravessam a ponte. Lá em baixo, luzes e luzes, o mais, apenas um véu de distância…

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