De onde vinham? Àquela hora tardia? Afinal, que
horas eram ao certo? Não se sabe. De facto, não se consegue perceber que horas
marca o mostrador do carro, naquela peculiar tonalidade a atirar para o
alaranjado. A cidade sob um manto de silêncio. Do rio, emerge uma neblina com
auspícios de conquista. No ar, um temor de ecos. O carro procura a jusante de
um lar (feliz?). São raros os faróis circulantes. Apenas, e por uma vez, o eco
demasiado metálico, pontuado por assobios cansados de tanto os repetirem, de um
camião de recolha dos excessos. À passagem do digno centro da cidade (todo o
centro reveste-se de uma dignidade indizível), vislumbram-se sombras (muitas)
sob arcadas graníticas, que ora se expõem, num canto doloroso de sereia
naufragada, ora se recolhem no corar inoportuno de uma menina esquecida (ainda
terão a memória desta?). Na rua contígua às arcadas, algum trânsito, apesar da
hora. Viaturas com único tripulante, de olhar fixo nas trémulas sombras, talvez
outros naufrágios… Agora, sedentos e famintos, procuram, a esta hora esquecida,
naquelas trémulas sombras, o resquício de um calor ido (para onde fora?)… Do
outro lado da praça, também sob arcadas, cartões sobre linhas antropomórficas.
Um sobe e desce de respiração. De vez em quando, um halo ilumina-se pela graça
de um candeeiro. Todos numa respeitosa fila horizontal, encostada a uma parede.
De dentro do carro, afigura-se uma parada de cartões. Nem uma laje se avista.
Apenas, um chão cartonado. Ela ainda procura um rosto naquele estranho universo
de pedra e cartão. Um rosto que lhe permitisse a compreensão. No entanto, nada
vislumbrou. Todos velados por mangas sujas e coçadas de casacos, e por gorros
esticados num imperativo de pudor. Abandono, foi a única palavra que nasceu em
si. E por largos instantes, a única que a povoou. Ele olhava as fachadas
históricas e iluminadas dos edifícios. Embora a lentidão da marcha, indiciasse
um peso acumulado por lajes, mangas coçadas e gorros de pudor. Mas eles nada
tinham que lhes cobrisse o rosto. Dentro do carro, não se formavam halos.
Afinal, os candeeiros piedosos estão no exterior húmido e gelado. O único
desconforto ali sentido, deriva da música do rádio. A canção de uma outra vida.
Sim, todos vivemos várias vidas. Porque também morremos muitas vezes. E nenhum
deles ousa desligar o rádio. Sim, o pudor acaba por encontrar uma forma de
entrar no conforto tépido deste carro. Através de um gesto: o não desligar
de um rádio. É sempre mais suave que uma manga coçada a cobrir um rosto. E
o carro continua a rolar, a caminho de um lar (também naufragado?)… Agora
atravessam a ponte. Lá em baixo, luzes e luzes, o mais, apenas um véu de
distância…
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