A primeira vez que nos cruzámos foi
num dia demasiado chuvoso, logo pela manhã, estava eu de saída para o trabalho.
Como sempre, saía em cima da hora. Estranho hábito este da lusitanidade: o de
nunca se adiantar; como se as coisas do mundo, de uma forma sublimada,
aguardassem por aquele que há-de chegar. Mas voltando a essa manhã, em
particular. Não foi necessário abrir os estores, para compreender o uso de
gabardina e de guarda-chuva. O barulho foi-me suficiente. Mas, assim que abri o
estore do meu quarto, apercebi-me da aflição pintada de cinzento, de quem
procurava, àquela hora, mobilizar-se entre ruas de rios, passeios cobertos de
copas negras, filas metálicas pintadas de luzes, tudo sob o compasso da
incessante água em queda e de uma contínua oscilação surda nos vidros das
viaturas. Ao deixar a janela, deparo-me com a minha cama, ainda quente, ainda
desfeita, que me lança um grito ensurdecedor, de sereia abandonada, e eu
prestes a naufragar, talvez devido ao temporal avistado, mas, num último
momento, totalmente sem saber como, consigo virar o leme do navio, e encontrar
a porta de saída do quarto, e evitar aquele tépido adamastor. Claro que esta
manobra salvífica, e consequente arrependimento, moldaram o meu humor para
aquele dia. Assim como para muitos outros. Começar um dia arrependido: um
degrau para a salvação… Se os contabilizar, já estarei para além do sistema
solar há muito! Mas desse dia em particular, que insiste, ainda hoje, em
regressar com uma nitidez cinematográfica à minha mente, guardo o meu primeiro
encontro com ele.
Estava já à porta do prédio, entre o
abotoar de mais um botão da gabardina (caso sempre desnecessário), sacudir o
guarda-chuva (para quê, se ainda estava seco?), olhar de novo a rua numa
expressão de cordeiro sacrificial, no fundo, tudo provinha do sapiente instinto
de sobrevivência que me sussurrava inclementemente ao ouvido: És mesmo um parvalhão, vai mas é ter com a
sereia, antes que naufragues algures entre copas negras, ruas de rios, ou
paradas metálicas uivantes.
Mas assim que abro a pesada porta
metálica do prédio, o meu olhar tropeça nele. Estava encostado à porta,
aproveitava aquele exíguo espaço a salvo das águas, ainda assim molhado,
emanava o cansaço inato de um viajante, levantou a cabeça e olhou-me. Assim que
me apercebo do seu olhar, compreendi a importância daqueles álbuns de
fotografias da nossa infância, que, num orgulho sempre fugidio, as nossas mães
mostravam às amigas em tardes de sábado balizadas entre chá e bolachas de
manteiga. Não reagi logo. Talvez quisesse saborear, algures em mim, não sei
muito bem em que zona do meu espírito, aquele olhar que, numa limpidez
desarmante, apenas proclamava compreensão. Baixei-me. Ele, numa deferência
irrepreensível, logo se levantou para me cumprimentar, apesar do cansaço,
apesar (talvez) da ausência de um pequeno-almoço (quem sabe de um jantar?),
apesar de uma possível noite em branco… E eu que sempre fui sensível aos
requisitos da educação. Jamais em ser humano algum, eu vira tal esforço, para
cumprir os requisitos da etiqueta, em circunstâncias tão adversas. E agora, que
fazer? Só podia convidá-lo a entrar. Também tinha de me mostrar à altura da sua
educação. Assim o fiz. Ele, sempre renitente, num passo hesitante entre a
timidez e o indisfarçável cansaço, lá aceitou entrar. Ofereci-lhe o que tinha.
Não era muita coisa. Apenas a fome lhe traiu a etiqueta. Mas a fome trai tudo,
não é verdade? Finda a refeição, inclinou-se a um canto do sofá, e com o olhar
pediu-me uns instantes de descanso. Claro que o coloquei à vontade. Nesse dia,
cheguei atrasado. Não houve problema. Afinal, em dias de guarda-chuva todos
chegam atrasados.
No regresso, preocupei-me com a visita, e demorei-me
mais no supermercado. Nessa noite, a nossa amizade viu a luz do dia. Uma
amizade sem exigências: no fundo, a verdadeira. Minto, ele apenas me pedia que
o levasse a passear duas vezes por dia. De manhã, para me mostrar a leveza do
ar e a nitidez das coisas; e à noite, para me ensinar a distância das estrelas
e sentir a respiração da terra...
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