São sete da manhã. Ele permanece
ainda deitado. Chegara a dormir? O estore corrido não consegue travar o anúncio
de dia. Levanta-se, numa dificuldade crescente do acumular dos dias. Mas, sim,
levanta-se. Após arranjar-se, e antes que o silêncio da casa lhe ensurdeça a
razão, senta-se num banquito de madeira para comer um copo de leite e um bocado
de pão com marmelada. É uma casa pequena. Da cozinha avista a cama por fazer, e
os bibelôs empoeirados por cima da televisão. Primeiro, sorve um pouco de
leite. Não sabe porquê, mas sempre se habituou em jejum a ingerir primeiro
líquidos. Talvez por ser mais digerível. Só depois vem o pão da véspera
acompanhado com um poucochinho de marmelada. Mastiga, também, com a dificuldade
do tempo acrescido, no ensurdecedor crescente silêncio da casa. Por fim,
embrulha tudo e repõe nos sítios. Ao abrir o frigorífico, sempre se espantou
com o excesso inato de prateleiras. Afinal, o dele emanava a brancura do vazio.
Sempre foi assim. Até em anos de necessidade calórica. Ele apenas um sorriso
conformado interior. A sabedoria, no fundo, talvez seja a aceitação de que há
coisas que trazemos para o mundo e connosco partem. Antes de sair, ajeita os
fios de prata que lhe emolduram o rosto acinzentado pelas desilusões do tempo.
Pega no pente preto, aqui e ali com umas pontas partidas, e de olhos fechados
procede ao rito que antecede a saída. Após fechar a porta e rodar a chave
quatro vezes, antes ainda de chamar o elevador, procede a uma derradeira reconfirmação
de chaves e fechaduras. Sai para o mundo, num passo estugado para a idade, que,
visto de longe, proclama uma pressa de destino. E este não é assim tão longe da
porta do prédio. Àquela hora ainda poucos na paragem. Passados cerca de sete
minutos, ouve o som familiar de uma campainha. Vira-se para esquerda, e hoje,
sem saber muito bem porquê, afigura-se-lhe ainda mais familiar do que em dias
idos. Deixa sempre a pressa passar adiante. Afinal, há muito compreendeu o
malogro da sua fuga. De si, vai para onde? De novo a campainha, e a marcha
metálica tem início.
Viaja à janela – hábitos de meninice
que o tempo não apagou –, por ora o banco só para si. A cidade primeiro
espreguiça-se (o trânsito começa a avolumar-se, bancas que se montam, a vida
regressa-lhe…), de seguida lava a cara (persianas que se levantam, montras que
se renovam…), por fim perfuma-se (ora cheira a café, ora a bolos, ora a
flores…).
Para ele, o mundo há muito que está a
preto e branco. Os únicos movimentos que se lhe vêem, devem-se ao constante
pára e arranca. Sobejam um rosto e uma janela. As mãos seguram o nada. Talvez
uma ausência. Talvez demasiadas ausências. E o mundo sempre num preto e branco
dorido. Alguém se sentou a seu lado? Ele não sabe. Não terá reparado. O rosto
sempre na janela. Que contempla? Talvez o próprio movimento, e uma réstia
ilusória esperança de fugir de si (...)
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