Livros do Escritor

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sexta-feira, 6 de setembro de 2024

Pequenos nadas



De repente, não sabe de onde, aquela frase diante de si, como se nunca tivesse partido, Realmente, és tão diferente do teu irmão! Não tens nada a ver, nem pareces saído de mim, ouve-a, primeiro, depois, olha-a, com uma nitidez solar, Realmente, és tão diferente do teu irmão! Não tens nada a ver, nem pareces saído de mim, sabia que ela tinha prazer nestas palavras, percebia-se-lhe o gosto, apesar da sua precoce idade, no entanto, dizia-lhe estas coisas sempre a sós, assegurava-se de que ninguém os ouvisse, nessa altura, atribuiu as palavras ao facto de se concentrar em demasia nos jogos de bola, tanto na escola como, na rua, com os vizinhos, enquanto o irmão debruçado sobre livros, concentrado, ponderado nas suas análises sempre que o solicitavam, prestimoso nas lides domésticas, de facto, nada a apontar, talvez fosse início de tarde, era um dia de Inverno, um cinzento constante de manhã à noite, até as sombras se tornavam indistintas no seu duplicar agora entristecido, olha a janela chovida, observa os veios desenhados pela água caída das alturas, são lágrimas alongadas por uma dor anterior ao sentir, pensava ele, da sua secretária, enquanto fingia olhar para o écran, mas aquela melodia de tarde cinzenta, em que o céu regressa à terra, leva-o para longe daquelas conta-correntes, que tremeluzem diante de si, afasta um pouco a cadeira da secretária, cansado de ver insaciáveis subtracções para tão esquálidos créditos, orçamentos familiares que, durante trinta dias, percorrem uma tormenta num fascinante equilíbrio de velho malabarista, através dos veios desenhados pela água caída das alturas, na indistinta tarde do perpassado cinzento matinal, aquela voz ecoa, como se nunca tivesse partido, Realmente, és tão diferente do teu irmão! Não tens nada a ver, nem pareces saído de mim, porém, a voz partira, foi, talvez nesse momento, que iniciou a compreensão de melodias de tardes cinzentas, em que o céu regressa à terra, lembra-se, em particular, do esforço em manter o guarda-chuva direito, o rectângulo de terra aberto a seus pés, o irmão do outro lado, mais uns vultos, indistintos àquela hora de regressos, que não perfaziam as duas dezenas, sentiu-se um espectador, nada mais, um espectador impassível, como um convidado que assiste a um indesejado espectáculo simplesmente por mera cortesia, a terra molhada a pesar o dobro, as pás a moverem-se numa lentidão esforçada, como se cada gesto um cântico à memória, olhou o irmão, do outro lado, muito direito, alguém, a seu lado, segurava-lhe, também em esforço, o guarda-chuva, apesar do incessante regresso da água das alturas à terra, percebia-se-lhe a concentração, a ponderação das suas análises sempre que o solicitavam, o carácter prestimoso nas lides domésticas, de facto, nada a apontar, as pás a ocultar o rectângulo de terra, assim começa uma memória. Por fim, o regresso de cada um ao seu mundo, àqueles dissabores quotidianos superados apenas por uma qualquer coisa indistinta, a que dão muitos nomes, até que somos também o início de uma memória… Tantas certezas, sempre muito direita, até ao fim, já as mãos fossilizavam, mas as costas estoicamente aguentavam o peso do existir, fazia questão disso, gostava de dar conselhos, até elevava a voz para que se soubesse, nas mesas vizinhas, que o fazia, as amigas coravam, mas ela irradiava aquela segurança, tinha gáudio nisso, antes de acompanhar as águas das alturas no regresso à terra, sublinhou a sua vontade de ficar perto de casa, ele e o irmão, espantados, questionaram o porquê, afinal, o pai repousava na província, comprara-se um talhão com esse propósito, e afinal… A resposta, como sempre, a não tardar Já o aturei que chegue em vida! Ao menos, que tenha sossego do outro lado, depois de tanto, ninguém se espantou, só aqueles escassos vultos, indistintos àquela hora de regressos, que não perfaziam as duas dezenas, ainda o deixam inquieto, tantas convicções, certezas e mais certezas, concorridíssimas tardes de chás e cafés pelo bairro, as quintas-feiras de canasta, aqueles ditames sibilados sempre a sós, assegurava-se de que ninguém os ouvisse, Realmente, és tão diferente do teu irmão! Não tens nada a ver, nem pareces saído de mim, hoje, a olhar aquela janela chovida, dá-lhe a sua razão, afinal, diante daquele rectângulo de terra aberto a seus pés, ao iniciar a compreensão de melodias de tardes cinzentas, em que o céu regressa à terra, lembra-se, em particular, do esforço para manter o guarda-chuva direito.


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