Livros do Escritor

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terça-feira, 3 de setembro de 2024

O monopólio da dor


 

Dizem que, com a idade, as pessoas mudam? Que grande mentira! Ela sempre assim foi, que mais lhe posso dizer? Não, não sei a quem puxou, detectei-lhe isto cedo, muito cedo, teria uns quatro anos, a irmã, mais nova dois anos, magoou-se, por qualquer coisa, ela a um canto, num berreiro, dizia ter-se também magoado, não me pergunte como, a verdade é que todos, logo ali, ficámos à sua volta, a irmã, mais nova dois anos, acabou por se remeter ao silêncio, este foi, aos meus olhos, o início do seu monopólio da dor, certa vez, em adolescente, já tínhamos, nessa altura, as nossas acentuadas divergências, lembro-me bem de lhe dizer “Coitado do homem que contigo casar! Então, se tiver a infelicidade de te amar, será um fantoche nas tuas mãos!” Ela não respondeu, também não lhe admitia, ficou a ruminar a minha observação, elucidativo, não acha? Pois, o seu silêncio dava-me razão, e não é que encontrou um homem assim? O início de qualquer relação, como deve saber, é pautado pela teatralização, não é necessária muita sabedoria para aqui chegar, escondemo-nos para sermos aceites e do outro lado sucede o mesmo, a questão é sempre a mesma: “Quem, na realidade, mais se esconde?” Bom, como dizia, em teatralização ela era ímpar, nunca lhe vi igual, teria sido uma actriz superlativa, não duvide, no dia-a-dia arrasava qualquer público desprevenido com as suas cenas, ou porque entalou a mão numa porta, ou as inevitáveis dores-de-cabeça, quando o pai se atrasava para jantar, só lhe faltava ir ao cemitério, enfim, drama era a sua verdadeira especialidade, por ser a via encontrada para o reconhecimento alheio, uns procuram as Artes, outros o Desporto, há os que optam pela filantropia, os mais cinzentos anseiam o reconhecimento pela profissão que abraçaram, também há os que querem ser notados pela ausência, isso é para outras linhas, são escassos, mas talvez sejam os que mais desejam o palco, assim que o vi, a seu lado, percebi: este homem está perdido! No início da relação, ainda lhe dava alguma réplica, pouca, é certo, porém marcava a sua posição, eu ria-me, claro, era uma questão de tempo, como tudo debaixo do céu, o seu olhar, assim que ela aparecia, indiciava tudo, criança em noite de luzes e concórdia a avistar o presente mais desejado, “Estás perdido, rapazinho!”, pensei no silêncio de mim, “Estás perdido, rapazinho!”, dois ou três meses de namoro e ela já caminhava à sua frente, não por acaso só conheceu os pais dele seis ou sete meses depois, enquanto já ele frequentava a nossa casa desde o primeiro dia, sabe, este aspecto é muito interessante: a sua vida anterior parece ter sido subtraída, enquanto a dela se manteve intacta; sempre liguei muito aos pormenores, às nuances do acontecer, observo mais os gestos nos silêncios do que durante a estéril gritaria, não me pergunte porquê, sempre assim fui, confesso, desde que o conheci, ter logo simpatizado com o rapaz, talvez a compaixão sentida contribuísse sobremaneira, era genuíno, não lhe pressenti maldade, coisa tão rara, e bêbedo de amor por ela, tinha o fantoche nas mãos, o dom inato da representação, só faltava subir o pano, diz-se que ninguém conhece melhor os filhos que os pais, apenas estupidez, as divisões de uma casa têm porta para os actores conseguirem pousar as máscaras, percebeu? De certeza? Ela, por exemplo, também dominava o pai, fervoroso adepto da sua teatralidade, quantas discussões não tivemos… Embora o meu verdadeiro temor habitasse mais à frente, já projectava o devir, se tragicamente Deus lhe permitisse dar à luz, escolhi bem as palavras, não se preocupe, o dom da maternidade jamais lhe fôra concedido, uma mãe jamais procura o monopólio da dor, pelo contrário, procura a sombra para que a luz ilumine quem caminhará sobre o palco do existir, logo esta mulher desconhecia, na plenitude, o que é segurar nos braços o amanhã de si, no entanto, por três vezes abriram-na para retirar os fetos, simbólico o facto de não ter conseguido parir, pois, lá está, sempre liguei muito aos pormenores, às nuances do acontecer, observo mais os gestos nos silêncios do que durante a estéril gritaria, não me pergunte porquê, sempre assim fui, um não vingou, quiçá o mais esclarecido, os outros dois não tiveram esse privilégio, sabe que, para um rapaz, o amor da mãe é vital? Não é fácil crescer órfão desse sentir, em pequeninos, se caíssem de bicicleta, por muito magoados estivessem, eram as lágrimas dela o centro de tudo, o marido não corria para levantar o filho caído, mas para a aquietar, “Estás perdido, rapazinho!”, “Estás perdido, rapazinho!”, outras quedas, algumas desmesuradas, surgiriam, na memória de todos só os ecos dos gritos dela, jamais alguém se abeirou do caído e lhe perguntou: “Sobrevives a tal dor?” Se, por acaso, um dia, os filhos, basta um deles, se aperceberem disto, creio que terão feito uma longa e invernosa travessia, nesse ponto, ela já será uma estranha, não me espanta, ninguém coloca um ser neste mundo para caminhar entre as sombras, simplesmente por no seu peito não haver lugar para um amanhã de si.

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