Dizem
que, com a idade, as pessoas mudam? Que grande mentira! Ela sempre assim foi,
que mais lhe posso dizer? Não, não sei a quem puxou, detectei-lhe isto cedo,
muito cedo, teria uns quatro anos, a irmã, mais nova dois anos, magoou-se, por
qualquer coisa, ela a um canto, num berreiro, dizia ter-se também magoado, não
me pergunte como, a verdade é que todos, logo ali, ficámos à sua volta, a irmã,
mais nova dois anos, acabou por se remeter ao silêncio, este foi, aos meus
olhos, o início do seu monopólio da dor, certa vez, em adolescente, já tínhamos,
nessa altura, as nossas acentuadas divergências, lembro-me bem de lhe dizer “Coitado
do homem que contigo casar! Então, se tiver a infelicidade de te amar, será um
fantoche nas tuas mãos!” Ela não respondeu, também não lhe admitia, ficou a
ruminar a minha observação, elucidativo, não acha? Pois, o seu silêncio dava-me
razão, e não é que encontrou um homem assim? O início de qualquer relação, como
deve saber, é pautado pela teatralização, não é necessária muita sabedoria para
aqui chegar, escondemo-nos para sermos aceites e do outro lado sucede o mesmo,
a questão é sempre a mesma: “Quem, na realidade, mais se esconde?” Bom,
como dizia, em teatralização ela era ímpar, nunca lhe vi igual, teria sido uma
actriz superlativa, não duvide, no dia-a-dia arrasava qualquer público
desprevenido com as suas cenas, ou porque entalou a mão numa porta, ou as
inevitáveis dores-de-cabeça, quando o pai se atrasava para jantar, só lhe
faltava ir ao cemitério, enfim, drama era a sua verdadeira especialidade, por
ser a via encontrada para o reconhecimento alheio, uns procuram as Artes,
outros o Desporto, há os que optam pela filantropia, os mais cinzentos anseiam
o reconhecimento pela profissão que abraçaram, também há os que querem ser
notados pela ausência, isso é para outras linhas, são escassos, mas talvez
sejam os que mais desejam o palco, assim que o vi, a seu lado, percebi: este
homem está perdido! No início da relação, ainda lhe dava alguma réplica, pouca,
é certo, porém marcava a sua posição, eu ria-me, claro, era uma questão de
tempo, como tudo debaixo do céu, o seu olhar, assim que ela aparecia, indiciava
tudo, criança em noite de luzes e concórdia a avistar o presente mais desejado,
“Estás perdido, rapazinho!”, pensei no silêncio de mim, “Estás perdido,
rapazinho!”, dois ou três meses de namoro e ela já caminhava à sua frente,
não por acaso só conheceu os pais dele seis ou sete meses depois, enquanto já
ele frequentava a nossa casa desde o primeiro dia, sabe, este aspecto é muito
interessante: a sua vida anterior parece ter sido subtraída, enquanto a dela se
manteve intacta; sempre liguei muito aos pormenores, às
nuances do acontecer, observo mais os gestos nos silêncios do que durante a
estéril gritaria, não me pergunte porquê, sempre assim fui, confesso, desde
que o conheci, ter logo simpatizado com o rapaz, talvez a compaixão sentida
contribuísse sobremaneira, era genuíno, não lhe pressenti maldade, coisa tão
rara, e bêbedo de amor por ela, tinha o fantoche nas mãos, o dom inato da
representação, só faltava subir o pano, diz-se que ninguém conhece melhor os
filhos que os pais, apenas estupidez, as divisões de uma casa têm porta para os
actores conseguirem pousar as máscaras, percebeu? De certeza? Ela, por exemplo,
também dominava o pai, fervoroso adepto da sua teatralidade, quantas discussões
não tivemos… Embora o meu verdadeiro temor habitasse mais à frente, já
projectava o devir, se tragicamente Deus lhe permitisse dar à luz, escolhi bem
as palavras, não se preocupe, o dom da maternidade jamais lhe fôra concedido,
uma mãe jamais procura o monopólio da dor, pelo contrário, procura a sombra
para que a luz ilumine quem caminhará sobre o palco do existir, logo esta
mulher desconhecia, na plenitude, o que é segurar nos braços o amanhã de si, no
entanto, por três vezes abriram-na para retirar os fetos, simbólico o facto de
não ter conseguido parir, pois, lá está, sempre liguei muito aos pormenores, às
nuances do acontecer, observo mais os gestos nos silêncios do que durante a
estéril gritaria, não me pergunte porquê, sempre assim fui, um não vingou, quiçá
o mais esclarecido, os outros dois não tiveram esse privilégio, sabe que, para
um rapaz, o amor da mãe é vital? Não é fácil crescer órfão desse sentir, em
pequeninos, se caíssem de bicicleta, por muito magoados estivessem, eram as
lágrimas dela o centro de tudo, o marido não corria para levantar o filho caído,
mas para a aquietar, “Estás perdido, rapazinho!”, “Estás perdido,
rapazinho!”, outras quedas, algumas desmesuradas, surgiriam, na memória de
todos só os ecos dos gritos dela, jamais alguém se abeirou do caído e lhe perguntou:
“Sobrevives a tal dor?” Se, por acaso, um dia, os filhos, basta um
deles, se aperceberem disto, creio que terão feito uma longa e invernosa
travessia, nesse ponto, ela já será uma estranha, não me espanta, ninguém
coloca um ser neste mundo para caminhar entre as sombras, simplesmente por no
seu peito não haver lugar para um amanhã de si.
Livros do Escritor
terça-feira, 3 de setembro de 2024
O monopólio da dor
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