Livros do Escritor

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sábado, 14 de setembro de 2024

IC-19

 


Deixei de ir à janela, porquê? Só a parede do prédio em frente, nada mais vejo, se estou arrependida? Como não? Atenção: estou arrependida de para aqui ter vindo, não dele, claro que tem os seus defeitos, só nos cemitérios deixamos de os ter, como bem devias saber, bom, mas falávamos dele, continua uma criança, e isso enternece-me, sai para a rua praticamente mascarado: boné – às vezes, em casa, já discuti para o retirar, é já uma extensão de si –, a camisola.de-alças, de onde sobressaem aqueles bracinhos pálidos e descarnados, parecem uns ramos invernosos, ao pescoço, claro, um colar, como não podia deixar de ser a um habitante deste lugar, não te indignes, não vale a pena, é um facto: há toda uma indumentária a cumprir para os habitantes deste lugar! E o colar faz parte sim, quanto mais volumoso e brilhante, melhor, nunca pensaste viver para ouvir isto? Pois, eu também não, muito menos ter-me juntado a um sujeito assim, claro que tem os seus defeitos, só nos cemitérios deixamos de os ter, como bem devias saber, mas falávamos dele, continua uma criança, e isso enternece-me, uns calções de basquetebolista, são aqueles mais largos e compridos, ainda bem, assim só se vê um bocadito daqueles caniços, também muito esbranquiçados, por fim, uns ténis de gosto muito duvidoso, mais para a bota, confere-lhe um ar de rato Mickey, não me perguntes o porquê, e assim está pronto para um novo dia, se já assentou num trabalho? Achas? Felizmente há trabalhos onde a etiqueta jamais permitiria que sujeitos assim vestidos se aproximassem, por que continuo com ele? Não há uma resposta, são múltiplas razões, não, por favor, não me venhas falar do… Já sei que está formado, com uma carreira em ascensão, neste momento podia ser sua mulher, a partilhar a liderança na clínica, que, num certo momento, virei costas a tudo, ao curso, a uma carreira promissora, às investidas amorosas do meu colega, por me ter encantado por um sujeito de boné, camisola-de-alças, colar, calções de basquetebolista e botas-.ténis, que lhe conferem um ar de rato Mickey, imagino as alegrias de que privei os meus pais, em todos estes anos foste a única a bater-me à porta, não os censuro pela ausência, investiram tanto no meu curso, só o microscópio… Eu sei que se hipotecaram, minha mãe tão feliz quando lhe apresentei o meu colega de faculdade, não, não vale a pena trazer o seu nome ao presente, diligente, atencioso, educadíssimo, dos melhores alunos da universidade, enchia-me de atenções, provinha de uma família com posses, o marido ideal, segundo os meus pais, gostava da sua companhia, diligente, atencioso, educadíssimo, acreditas que nunca me fez rir? Como me poderia incendiar o coração? Também nunca aceitaste que virasse costas ao curso, não é? Não tanto ao colega de faculdade, diligente, atencioso, educadíssimo, pois, como te hei-de explicar…? Não vivia, cumpria um guião escrito para outra personagem, será que assim me faço perceber? Tudo estava delineado, à espera de alguém que não eu… Certa noite, quando me ia deitar, desejei tanto que o amanhã não viesse… Há algo pior que isto: não desejar o amanhã? Isto aterrorizou-me, e bastante, pousei a cabeça na almofada e senti-me literalmente a afundar no negrume da minha infelicidade, nada em mim era espontâneo, pois, cumpria um guião escrito para outra personagem, as conversas dele aborrecidíssimas, pouco variavam das que ouvia por casa – Verões no Sul, Invernos na neve, tudo esquemático –, até que, como bem sabes, um pneu furado, ele à minha frente “Estou a ver que estás bem enrascada,” já buzinas se multiplicavam atrás, não se conteve para as buzinas “Oh, vamos fazer pouco barulhinho, ouviram, pouco barulhinho,” certo foi o cessar do barulho, “Primeiro temos de encostar o carro aqui ao passeio e deixar estes palhaços passar,” dos gestos às expressões senti-me transportada para uma outra realidade, enérgico, espontâneo, brincalhão, tinha qualquer coisa de criança a correr atrás de uma bola, era a sensação que me dava, e eu já sorria, o resto conheces, chamou o reboque, mandou, com o meu consentimento, o carro para a oficina de um amigo, onde fazia umas horas, levou-me a casa no seu, denotava-se-lhe um indesmentível orgulho naquela viatura toda transformada, engraçado ser da mesma marca que a do pai, embora tão distinta, rebaixada, parecia colada ao chão, tive que me esforçar tanto para me erguer, acreditas? E aquela coisa atrás conferia-lhe um ar de nave-espacial, cheia de luzes no interior, parecia que o Natal dali nunca partia, até os cintos-de-segurança num vermelho demasiado, o que ri, pois, tão para além do guião que me haviam estabelecido, no dia seguinte estava à minha espera, quando fui à oficina levantar o carro, com um sorriso infantil “Antes de ires, não queres ir ali tomar nada?” apontou na direcção do que me pareceu um café, “Vamos!”, não me recordo de ter processado a resposta, quando me regressei, estava sentada, lado-a-lado, com ele ao balcão de um café rústico, repara: sentada, lado-a-lado, com ele, ao balcão: tão distante de mesas com toalhas, serviço cerimonioso, talheres-reluzentes, tudo numa lentidão exasperante; olhei a porta aberta para uma outra realidade, onde me vi a rir desassombradamente, sem vestígios de esquemas-rígidos, com o rato Mickey à minha frente, como pude resistir? Até a fumar me pôs, queres melhor? É um apartamentozito acanhado? E, para mais, rés-do-chão! Não tem vista e o sol desconhece o caminho para as suas janelas? Pois, são factos… Está uma boca a caminho para alimentar? Mais um facto. Trabalha em vários lados, embora nenhum seja certo? Outro facto. Se é isto que quero para o futuro? Sei o que não quero: pousar a cabeça na almofada e sentir-me literalmente a afundar no negrume da minha infelicidade, foi isso que senti na casa da tua filha, pois, cumpria um guião escrito para outra personagem, há tanta coisa por resolver que me esqueci do amanhã, tens de nos visitar, sabes, até podemos dar uma volta no carro dele, cheio de luzes no interior, parece que o Natal dali nunca parte.

(13/09/24)

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