Livros do Escritor

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quinta-feira, 26 de setembro de 2024

Deste lado de cá do existir

 


Lá íamos nós, num Sábado à tarde, por aquela estrada que eu já nem olhava, talvez por um cansaço demasiado de tanto a percorrer, ou por uma familiaridade indesejada, desde há oito meses que, todos os fins-de-semana, impreterivelmente, percorremos aquela dúzia de quilómetros, para lá, depois de regresso, oito meses disto, nem ousei contestar quando ele insistiu para que a mãe viesse para ao pé de nós, não incentivei, confesso, nem tinha de o fazer, afinal, a mãe é dele, mas também não lhe coloquei quaisquer óbices, remeti-me a um cómodo e impassível silêncio, tratou da papelada toda sem me pedir ajuda, algo raro nele, que nunca saía de casa sem gritar, nem que fosse por uma vez, o meu nome por algo que sempre se lhe escapava, enfim, tenho de reconhecer que é a mãe dele, apenas e só, nunca a tratei por sogra, em verdade, ela nunca soube ir além de ser mãe dele, há coisas fascinantes, parece que nascemos com uma forma e é tão difícil daí sair, a nossa relação sempre se pautou por princípios de cordialidade, porém, havia entrelinhas caladas que eram tão perceptíveis, ainda me lembro, quando a íamos visitar, nos primeiros passos do nosso casamento, antes de lhe bater à porta, já a mão dele partia da minha numa fuga envergonhada e por mim até hoje incompreendida, as questões, que, no fundo, são o alimento de qualquer conversa, saíam dela para o centro da sua atenção, e percebia o quanto ele exultava com isso, apesar da contenção exterior, por vezes, dava por mim a observá-lo com uma crescente apreensão, e questionava se ele, de facto, alguma vez deixara os braços maternos, nesses momentos, levantava-me e vinha, cá para fora, socorrer-me de um cigarro nervoso, sempre achei curioso como dias há tanto idos, de súbito, irrompem no nosso caminho, como se nunca dali tivessem partido, hoje, ela perdeu esses dias, e muitos outros, porém, continuo a questionar se ele, de facto, alguma vez partira dos braços maternos, tal a abnegação silenciosa com que segue os passos do lar, infelizmente, nesta tarde, sob a forma de uma ruína personificada numa velha abandonada pela memória, é uma casa térrea, com uma artificialidade no ar que, há mínima contradição, ameaça desmoronar, a velha está entre velhos, tão longe das certezas e convicções doutrora, assim que me abeiro da entrada do salão, pejado de velhos que se afiguram a rochas descobertas por uma inclemente vazante, confesso a minha dificuldade em encontrá-la, no entanto, ele, pelo contrário, avança sem contemplações, ao perceber-lhe os passos destemidos, compreendo que se trata mais de um regresso, é tão estranho, tantas rochas similares naquela vazante e ele aporta sem hesitações na de sempre, sem dúvida, é um regresso, está sentada num canto da sala, a cabeça inclinada para a frente, pela boca entreaberta esvai-se-lhe o resto de dignidade, inclina-se, de imediato, para ela, num misto de respeito e de devoção, pousa o saco com doces e demais iguarias que relembram um mundo deixado, como se nela ainda uma memória, a voz dele sôfrega Então, minha mãe… Como está? Pela cabeça da velha nem um vislumbre de gesto, permanece inclinada para a frente, a boca entreaberta, a esvair-se-lhe o resto de dignidade, numa lentidão condoída, já não o ouve, ele sabe-o, contudo, uma qualquer forma de fé ignora-o, prossegue com o monólogo visto da distância, dali de perto, se lhe perguntassem, diria que sim, que a velha lhe responde, por fim, ladeio-o, é curioso, ele nem se apercebe da minha chegada, ou talvez seja uma impressão minha, é possível, talvez seja isso, permanece absorto naquela mecânica de gestos e palavras consagrados à velha, chega a ajoelhar-se para lhe endireitar o rosto, permaneço nas faldas deste meu lado de cá das coisas, não sei porquê, mas algo me dita para por aqui ficar, a velha está entre velhos, tão longe das certezas e convicções doutrora, como sempre acontece, enterneço-me com aqueles joelhos no chão, o monólogo visto da distância, dali de perto, se lhe perguntassem, diria que sim, que a velha lhe responde, a deferência dos gestos, a almofadinha de que nunca se esquecia para lhe endireitar a cabeça na cadeira, assim se estancava a fuga da dignidade, à minha volta, tantas rochas descobertas por uma inclemente vazante, num abandono ímpar, suspiram por uma maré que se aproxima e que, por fim, as abrace, até que nada delas reste, nem a memória de um dia terem sido o horizonte de alguém.

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