Livros do Escritor

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sábado, 21 de setembro de 2024

Oração


 

Para quem quiser ler,

Vim passar um período a casa do meu filho mais novo, chegados a esta fase da vida é assim, deambulamos pelas casas dos filhos, ora num, ora noutro, embora eu prefira estar na casa da minha filha, mais velha dos três, talvez por estar mais próxima da minha, onde começa o Norte deste outrora país, estava a terminar o jantar, e, de repente, o meu neto mais novo sai da mesa, a minha incredulidade perante a cena emudeceu-me, as palavras demoraram a nascer, virei-me para o meu filho, jamais para a minha nora, lá irei a seu tempo, e “Meu filho, o meu neto sai da mesa sem pedir com licença?” Ficou tolhido a olhar o prato, só me trouxe ao hoje a imagem da criança que ainda vislumbro, volta e meia, na memória, encolhido, sem encontrar uma justificação para o sucedido, parecia ter sido ele o autor da ofensa, “Deixe lá, minha mãe, deixe lá… São crianças…”, fiquei incrédula perante a atamancada justificação, não me passou despercebido o resvalar da sua atenção para a minha nora, lá irei a seu tempo, estava de pé, atrás de nós, com a louça da janta, numa sonoridade de movimentos para nos culpabilizar de ainda permanecermos sentados, lá irei a seu tempo, como se não fosse eu, que já somo oitenta e quatro anos de desilusões, a fazer o jantar e a pôr a mesa, enfim, lá irei a seu tempo, como dizia, não me passou despercebido o resvalar da sua atenção para a minha nora, receava não ter a sua anuência em qualquer possível resposta, insisti “Meu filho, não foi assim que te eduquei. Como é possível que um miudito saia da mesa sem pedir licença?”, o olhar dele não descolava do prato, não tinha justificação, nisto a voz dela trovoou “Aqui em casa, as regras são outras! Se o miúdo saiu da mesa, sem nada pedir, é porque sabe que o pode fazer. Acho que há coisas bem mais graves no mundo, não concorda?”, quando não se tem argumentos, tende-se a universalizar as questões, numa efémera tentativa de as esvaziar, desta feita, não me contive “O respeito pelos mais velhos semeia-se desde muito cedo! Uma criança sem referências é um adulto perdido!”, meu filho cada vez mais de encontro à mesa, parecia assistir à materialização de um profundíssimo receio, a verdade é que nunca suportei aquela mulher: fútil, vaidosa, superficial, embirrenta, mimada, em termos de ideias pouco além ia da sola-do-sapato; este casamento, confesso, constituiu um enormíssimo desgosto, como se vê, até os filhos usava para me atentar, da minha outra nora, do meu filho-do-meio, também não era apreciadora, mas esta conseguia ser bem pior, por uma simples razão: o meu filho era um capacho nas suas mãos, enquanto o seu irmão lá se conseguia, volta e meia, impôr: uma substancial diferença! Se narrasse alguns dos deploráveis episódios a que assisti ou me chegaram ao conhecimento, em vez de uma singela carta, escreveria um romance! Não augurava grande futuro para este meu neto, nem para o seu silencioso irmão, é triste uma mãe assistir ao capitular dos valores, transmitidos a um filho, por uma mulher, só a idade tem o dom de nos ensinar a arte de observar, o primeiro passo é o silêncio, foi assim que, com ligeireza, inferi o facto de os meus dois outros filhos não suportarem aquela mulher fútil, vaidosa, superficial, embirrenta, mimada, em termos de ideias pouco além ia da sola-do-sapato, só o irmão, mesmo assim escassas vezes, os fazia aproximar, havia sempre uma picardia, um mal-entendido, uma dissimulada e irónica provocação, quantas vezes, enquanto ali estava, não orei para que o tempo acelerasse, eu pensei que a face comprometida dos filhos, sob o nosso olhar, ficasse na infância por uma travessura descoberta, e ali estava, no seu rosto, a mesma expressão comprometida, só que já era pai de dois filhos, dobrara os cinquenta, embora, para uma mãe, um filho, em verdade, nunca abandona o berço, gosto de diariamente visitar a casa que nos relembra os passos Daquele que veio pelos perdidos e não pelos honrados, ao Domingo, enquanto ali estou, na casa do meu filho mais novo, tenho de os acompanhar, e eu que tanto gosto de estar sozinha, entre aquelas paredes, perdida nas minhas orações, apesar das minhas frágeis e tão cansadas pernas, sei que chegam para estas pequenas caminhadas, enfim, com o avançar da idade há vontades que nos vão sendo vedadas, é uma aprendizagem da vida, quando somarem oitenta e quatro anos de desilusões digam depois se estava errada, como dizia, ao Domingo, enquanto ali estou, na casa do meu filho mais novo, tenho de os acompanhar, ela faz parte do coro, bem à frente do altar, pasme-se, muito direita, missal na mão, demasiado pintalgada, a juba cimentada a toneladas de laca, e a soltar aquele vozeirão, questionava qual o critério de selecção para tais sofríveis dissonâncias, o meu filho, mais atrás, na extremidade de uma fila, sereno, concentrado nas suas orações, como lhe ensinei, ainda não partira dele por completo, a seu lado, pasme-se uma vez mais, o meu neto mais novo, pois, o tal que saiu da mesa sem pedir com licença, observei o miudito, olhava fixamente, numa humildade respeitosa, a imagem, à direita do altar, Daquele que veio pelos perdidos e não pelos honrados, pela segunda vez, desde que ali entrara, sorrio, vislumbro esperança de que, no amanhã, haja menos um adulto perdido.

Pedro de Sá

(21/09/24)

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