Para quem quiser ler,
Vim
passar um período a casa do meu filho mais novo, chegados a esta fase da vida é
assim, deambulamos pelas casas dos filhos, ora num, ora noutro, embora eu
prefira estar na casa da minha filha, mais velha dos três, talvez por estar
mais próxima da minha, onde começa o Norte deste outrora país, estava a
terminar o jantar, e, de repente, o meu neto mais novo sai
da mesa, a minha incredulidade perante a cena emudeceu-me, as palavras
demoraram a nascer, virei-me para o meu filho, jamais para a minha nora, lá irei a seu tempo, e “Meu
filho, o meu neto sai da mesa sem pedir com licença?”
Ficou tolhido a olhar o prato, só me trouxe ao hoje a imagem da criança que
ainda vislumbro, volta e meia, na memória, encolhido, sem encontrar uma
justificação para o sucedido, parecia ter sido ele o autor da ofensa, “Deixe
lá, minha mãe, deixe lá… São crianças…”, fiquei incrédula perante a
atamancada justificação, não me passou despercebido o
resvalar da sua atenção para a minha nora, lá irei a seu tempo, estava de
pé, atrás de nós, com a louça da janta, numa sonoridade de movimentos para nos
culpabilizar de ainda permanecermos sentados, lá irei a seu tempo, como se não
fosse eu, que já somo oitenta e quatro anos de desilusões, a fazer o jantar e a
pôr a mesa, enfim, lá irei a seu tempo, como dizia, não me passou despercebido
o resvalar da sua atenção para a minha nora, receava não ter a sua anuência em
qualquer possível resposta, insisti “Meu filho, não foi assim que te
eduquei. Como é possível que um miudito saia da mesa sem pedir licença?”, o
olhar dele não descolava do prato, não tinha justificação, nisto a voz dela
trovoou “Aqui em casa, as regras são outras! Se o miúdo saiu da mesa, sem
nada pedir, é porque sabe que o pode fazer. Acho que há coisas bem mais graves
no mundo, não concorda?”, quando não se tem argumentos, tende-se a
universalizar as questões, numa efémera tentativa de as esvaziar, desta feita,
não me contive “O respeito pelos mais velhos semeia-se desde muito cedo!
Uma criança sem referências é um adulto perdido!”, meu filho cada vez mais
de encontro à mesa, parecia assistir à materialização de um profundíssimo
receio, a verdade é que nunca suportei aquela mulher: fútil,
vaidosa, superficial, embirrenta, mimada, em termos de ideias pouco além ia da
sola-do-sapato; este casamento, confesso, constituiu um enormíssimo
desgosto, como se vê, até os filhos usava para me atentar, da minha outra nora,
do meu filho-do-meio, também não era apreciadora, mas esta conseguia ser bem
pior, por uma simples razão: o meu filho era um capacho nas suas mãos, enquanto
o seu irmão lá se conseguia, volta e meia, impôr: uma substancial diferença! Se
narrasse alguns dos deploráveis episódios a que assisti ou me chegaram ao
conhecimento, em vez de uma singela carta, escreveria um romance! Não augurava
grande futuro para este meu neto, nem para o seu silencioso irmão, é triste uma
mãe assistir ao capitular dos valores, transmitidos a um filho, por uma mulher,
só a idade tem o dom de nos ensinar a arte de observar, o primeiro passo é o
silêncio, foi assim que, com ligeireza, inferi o facto de os meus dois outros
filhos não suportarem aquela mulher fútil, vaidosa, superficial, embirrenta,
mimada, em termos de ideias pouco além ia da sola-do-sapato, só o irmão, mesmo
assim escassas vezes, os fazia aproximar, havia sempre uma picardia, um
mal-entendido, uma dissimulada e irónica provocação, quantas vezes, enquanto
ali estava, não orei para que o tempo acelerasse, eu pensei que a face
comprometida dos filhos, sob o nosso olhar, ficasse na infância por uma travessura
descoberta, e ali estava, no seu rosto, a mesma expressão comprometida, só que já
era pai de dois filhos, dobrara os cinquenta, embora, para uma mãe, um filho,
em verdade, nunca abandona o berço, gosto de diariamente visitar a casa que nos
relembra os passos Daquele que veio pelos perdidos e
não pelos honrados,
ao Domingo, enquanto ali estou, na casa do meu filho mais novo, tenho de
os acompanhar, e eu que tanto gosto de estar sozinha, entre aquelas
paredes, perdida nas minhas orações, apesar das minhas frágeis e tão cansadas
pernas, sei que chegam para estas pequenas caminhadas, enfim, com o avançar da
idade há vontades que nos vão sendo vedadas, é uma aprendizagem da vida, quando
somarem oitenta e quatro anos de desilusões digam depois se estava errada, como
dizia, ao Domingo, enquanto ali estou, na casa do meu filho mais novo, tenho de
os acompanhar, ela faz parte do coro, bem à frente do altar, pasme-se, muito
direita, missal na mão, demasiado pintalgada, a juba cimentada a toneladas de
laca, e a soltar aquele vozeirão, questionava qual o critério de selecção para
tais sofríveis dissonâncias, o meu filho, mais atrás, na extremidade de uma
fila, sereno, concentrado nas suas orações, como lhe ensinei, ainda não partira
dele por completo, a seu lado, pasme-se uma vez mais, o meu neto mais novo,
pois, o tal que saiu da mesa sem pedir com licença, observei o miudito, olhava
fixamente, numa humildade respeitosa, a imagem, à direita do altar, Daquele que
veio pelos perdidos e não pelos honrados, pela segunda vez, desde que ali
entrara, sorrio, vislumbro esperança de que, no amanhã, haja menos um adulto
perdido.
Pedro
de Sá
(21/09/24)
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