Retirou os três envelopes da caixa-de-correio e meteu-os no bolso direito do casaco. Entrou no elevador e carregou no número do seu andar. A idade avança numa proporcionalidade exacta à diminuição de certas faculdades. E, de facto, ele não se ajeitava com a modernice da actual chave, daí a campainha, numa demora bastante, para exorcizar a frustração com o insondável mecanismo da chave, o passo dela também se familiarizava com outras proporções, a abrir-lhe a porta e uma expressão silenciosa e elucidativa do seu desagrado face aos contínuos exorcismos de frustrações, ele a entrar, a percorrer-lhe o braço com a mão (e um gesto engole tantos dicionários!), a retirar do bolso apenas dois envelopes, coloca-os na mesa-de-entrada, ela Ainda nada? Mas já devia ter chegado…, nem se vira, limita-se a subir os ombros, já de costas para ela, mas sempre a insistência, agora eivada de um notório nervosismo, Tens a certeza de que ainda nada…?, após depositar o casaco nas costas de uma cadeira, na sala-de-jantar, encaminha-se para a cozinha, não lhe responde, ela numa distância de continentes em relação ao bolso direito do casaco, no fundo, não há maior distância que o desconhecimento, verifica os outros dois envelopes, são sempre os mesmos, todos os meses a verificarem se ainda estamos vivos, sim, aqueles que nos apelam ao bolso, da cozinha, neste momento, barulho de pratos, ele a pôr a mesa, apesar do tempo, e da extenuada repetição, ela sempre a enternecer-se com certos gestos, e ele que sempre os realizou com um ar desassombrado, desde muito cedo, como se cumprisse um acto natural do existir, observa-o da porta, repara que hoje, de uma forma muito particular, aquele sulco da testa mais profundo, como se por ali um longo e penoso inverno chegado, os movimentos distantes do pensar, como se na sombra de algo maior que o ocupasse, de novo, Tens a certeza de que ainda nada…?, ele a olhá-la, agora parado, quatro talheres na mão direita, a reconhecer-lhe aquela expressão apreensiva, sim, a maternidade pertence-lhes, sempre afirmara para quem o quisesse ouvir Nasci de uma mulher, e quero morrer nos braços de uma, tudo começou naquele dia de manhã, ou talvez não, quando é que de facto as coisas começam? É tão difícil determinar, mas, naquela manhã ida, recorda-se bem, o alívio da noite por cumprir, o que era tão espontâneo antes, agora com a distância, e a dor, como se fogo por ali, apesar disso, ele a puxar o autoclismo, como se algo, pelo menos em parte, em si se cumprisse, silenciou este peso durante uns dias, por fim, numa deslocação de carro, por talvez aí não a olhar de frente, partilhou com ela, logo a leveza a desceu sobre si, e uma questão óbvia levantou-se Não achas que me devias ter contado há mais tempo? Mas o medo, a vergonha, o tal exame ignominioso, a espera de um amanhã que cumprisse o alívio nocturno, tudo adicionou razões ao seu silêncio, mas a lógica dela nascia de outras regras, e subtraiu-lhe as razões antes do próximo semáforo, contrariado, embora rendido, obedeceu aos preceitos médicos, ainda argumentou com o tal exame ignominioso, mas na vida há cálices que temos de sorver de uma vez só, desde então, a espera por um resultado, ela vira-lhe costas, deixa a ombreira da porta e encaminha-se para a sala, ele segue-a, a mão dela desce sobre o bolso direito do casaco, os seus dedos encontram o envelope há tanto esperado, retira-o de lá, ele já a seu lado, com uma expressão de medo disfarçado, não o recrimina, jamais o faria, afinal, ele não mentiu, apenas não quis enfrentar uma sentença, quem o poderia censurar? Sentam-se no sofá. De novo, lado a lado. Ela pergunta-lhe Queres ser tu a abrir? Ele recusa. Apenas lhe pede que o abrace, não vá o relógio ter-se adiantado.
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