Alguém só nos morre, por inteiro, quando deixa de habitar na memória, nem por acaso, hoje iluminou-se-me, nesse espaço que traz o ontem ao hoje, um vulto singular que, do seu jeito, deixou uma marca indelével sob a forma de uma frase, mais concretamente de uma interrogação, mas já lá vamos, conheci-o por frequentarmos o mesmo ginásio, quando alguém entra num espaço, pela primeira vez, de forma natural suscita curiosidade, neste caso foi amplificada por características deveras particulares, entrou com um ar desconfiado, semblante carregado, a olhar os próprios passos, um gorro na cabeça que lhe conferia uma aura simultaneamente anacrónica e descontextualizada, como se, algures no seu caminho, perdesse a direcção, um presídio norte-americano ou uma plataforma no Alasca ser-lhe-ia o destino indicado, porém, ali estava ele, à minha frente, a tirar o supracitado gorro, um sobretudo que se arrastava pelo chão, deixou-os a um canto da sala, como se não houvesse balneários para o efeito, talvez nem conhecesse o conceito, também não era eu a explicar-lhe, ali só o treino me interessava, nem sabia se falava Português, ou qualquer outro idioma, os demais presentes também se mantiveram focados nos exercícios, ninguém interrompeu a sua actividade por causa de um gorro e sobretudo a mais na sala, reparei que o rabo-de-cavalo, naquele caso, talvez pela baixa-estatura, tez morena, lhe conferia aspecto de médio-Oriente, sim, algures por aí, um Aladino rebelde que resolveu alistar-se nos talibã, olhou à sua volta com familiaridade, apesar dos passos-arrastados, postura-curvada, a olhar o chão, ia decidido para uma máquina, ao passar por mim, proferiu, quase em surdina, sob a forma de um nítido cumprimento, uma frase que iria alterar, irreversivelmente, a minha mundividência, foi, para mim, como se uma epifania, estava quase a ladear-me, repito, no seu passo arrastado, a olhar o chão, quando ouço, como se um eco vindo de uma galeria cavernosa, “Como é que é, Brother?”, de início, repito, pareceu-me um longínquo eco, proveniente de um qualquer subterrâneo, demorei a processar a informação, até porque não tinha um rosto a olhar-me para devolver o inusitado cumprimento, contudo, a frase continuava, nesse momento, a ecoar em todos os cantos do meu ser “Como é que é, Brother?”, pois, o emissor só podia ser o recém-chegado, o imperativo da educação obrigava-me a devolver o cumprimento, olhei-o, apesar do passo-arrastado, só apanhei as costas, não obstante este facto, devolvi a saudação “Como é que é?”, deixei cair o anglicismo, neste ponto outros valores levantaram-se-me, felizmente ainda perduram, assim teve início a nossa comunicação, de forma lenta, desconfiada, contida, mas nenhuma grande história começa com fogo-de-artifício, não é verdade? Vinha sempre à mesma hora, a postura não se lhe alterou um milímetro, passo-arrastado, olhar centrado no chão, semblante desconfiado, porém, sempre que se aproximava, “Como é que é, Brother?”, nem todos se podem gabar, nesta vida, de receber uma saudação vinda de uma galeria cavernosa, foi mais ou menos por volta da terceira semana desta intensa troca de informações que me colocou, de forma original, uma das mais antigas questões da humanidade, aqui ressalve-se o seu espírito-criativo, nesse princípio de tarde, ao contrário do habitual, denotei-lhe os gestos ligeiramente mais nervosos, olhou-me, após o inevitável e tão desejado “Como é que é, Brother?”, prontamente acrescentou “Conheces alguma fêmea?”, é sabido que a Filosofia nasce do espanto, talvez esteja aqui a génese do meu percurso académico nesta nobre área, logo uma resposta formou-se-me para aquietar a questão suspensa “Conheces alguma fêmea?”, “Não me digas que estás na época do cio?!”, a verdade é que esta figura se esfumou do meu horizonte, ressalvo a minha mágoa, o ar não ficava mais pesado com a sua presença, isso é bom, muito bom, dizem as más-línguas, não sei se é verdade ou mentira, que, certa tarde, se sentiu mal e quase teve de ser reanimado, devido ao seu estado, acharam por bem tirar-lhe a camisola, mas havia mais uma, e outra, outra ainda, e, afinal, restava uma, não, duas, perceberam não estar perante um homem, mas sim uma autêntica cebola, este episódio potenciou a maledicência, conceberam-se as mais rebuscadas teses para explanar o sucedido, que usava muitas camisolas para parecer maior, que era para suar mais e assim ficar seco rapidamente, teses paradoxais, enfim, também houve quem proclamasse bem-alto que a causa do seu mal-estar se deveu a alguma substância que ingeria para obter resultados de forma célere, o certo é que não mais apareceu, nos dias seguintes ainda olhei para aquele canto-da-sala a ver se por lá estavam depositados um gorro e um sobretudo, tudo em vão, nada, dele só restou a inusitada saudação “Como é que é, Brother?”, peço-vos que a divulguem em sua homenagem, quem sabe se, este nosso “Brother”, no dia seguinte ao episódio da cebola, conheceu a fêmea da sua vida, talvez seja esse o motivo da sua ausência até hoje – conhecem razão melhor?
(29/08/22)
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