Mas, mas… O olhar inflexível fulminava quaisquer adversativas, apenas um Atenção ao tempo! E ele, de caneta hesitante, a olhar aquele rectângulo de mundo envidraçado, a folha, em cima da mesa, numa obscenidade demasiado branca, como se daí adviesse um insulto desafiante, sim, qualquer coisa que periga a honra, porém, a caneta agora entredentes, um Atenção ao tempo sussurrado agora já noutro canto da sala, ampliado pelo silêncio demasiado artificial para aquela hora do dia, e a questão, que renascia para logo se evolar no sem sentido de si, a inquietá-lo, de novo, vira costas ao mundo com um descair de pálpebras, apenas um eco plástico a tamborilar-lhe nos dentes a relembrá-lo da sua circunstância. O eco, neste momento, a afastar-se, como se permanecesse num qualquer lugar de partida, neste mundo de viagens, ele a olhá-lo da sua carruagem, cada vez mais longe, num galope crescente, para onde vai? Não sabe, ao princípio tudo difuso, vai ao sabor do acaso de si, por dias solares, encontros duradouros, aqueles onde se regressa para um sentido das coisas, no fundo, quando perdemos a bússola e necessitamos de uma nova, sim, um pouco isso, quando contemplamos um rosto e, de súbito, a voz arrasta-se, num contraste gritante com a velocidade do sentir, como se representássemos, mas não, estamos ali por inteiro, apenas a voz em passos de bengala, não, não conseguimos acelerar a palavra, porque o olhar num rosto e o sentir desencontrado do pensar, mas são tão raros os rostos numa vida que provoquem este desencontro! E, sim, já não ouço canetas, apenas o compasso da carruagem que me leva ao país de mim. Quantas vezes não regressamos a nós? Agora, estamos num jardim, sombras convidam-nos à frescura de um espreguiçar sempre lento, proponho-lhe, num verbo arrastado, que nos sentemos naquele banco, debaixo da cascata chorosa de um choupo, para acabarmos o gelado. A saboreada doçura fresca em antítese com o calor das emoções, mal disfarçadas em gestos estéreis e desarmoniosos, de pretenso candidato a artista. Mas o olhar devolve a doçura e frescura saboreadas, ao percorrer um rosto, na sombra de uma tarde de sol, enquanto as palavras se precipitam no esquecimento, apenas subsiste a melodia de uma voz, um entrelaçar de dedos, e um beijo imaginado. A carruagem acelera, a memória da caneta cada vez mais longínqua, agora, após os gelados, a sombra de um banco de jardim, o entrelaçar de dedos, caminhamos na indolência de sorrisos e piadas cúmplices, nisto, uma bola ao nosso encontro, uma criança corre atrás dela, na urgência de retomar o jogo, talvez a vitória próxima, eu já não com o rosto que me demora o olhar, sim, a velocidade da carruagem, eu, com a bola, de regresso ao jogo, olho à minha volta, reconheço cada amigo da rua da minha infância (todos temos uma rua de meninice), as balizas demarcadas por pedras da calçada, mas a abnegação de cada finta, de cada remate, de cada incentivo, de cada reprimenda, continha a genuinidade de uma força irrepetível. Após uma corrida para segurar a bola, uma finta como as da televisão, preparava-me para passar a bola entre as pedras da calçada (que risível sou, e desonesto também, na realidade ia marcar um golaço monumental!), quando uma voz Atenção ao tempo! Como quer que escreva de olhos abertos? As palavras não nascem do olhar. O eco da caneta agora em gritos. Olho o rectângulo envidraçado de mundo. O cinzento lá de fora ecoa no silêncio artificial desta sala. Levanto-me. Como querem que escreva longe de mim? Resolvo entregar. Mas, para espanto meu, a folha preenchida. Que terei escrito? A mão crispada da Atenção ao tempo já no ar para se apoderar da folha. Deixo-a ir. Talvez por lá encontre as marcas de uma carruagem, um banco de jardim sob as lágrimas doces de um choupo, a alegria de um golo, e, por fim, a emoção singular da verdade de um beijo.
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