Naquela casa só restavam eles. Viviam
num silêncio de anuências. Não precisavam de mais. Uma casa que se foi despindo
de presenças. Primeiro, a do pai. A doença, sempre África, no sangue, no verbo,
e também no olhar inconformado com horizontes de marquises, por fim, confinado
a uma incómoda horizontalidade de dor, até que, numa manhã chuvosa de Novembro,
partiu. No fundo, terá regressado às lonjuras que alimentam o sonho do olhar.
Por aí deve andar, à espera que cada um deles regresse. Seguiu-se a irmã.
Também não gostava de marquises. Talvez por isso, certas noites fora. De ocasionais,
passaram a frequentes. A mãe insurgia-se, as vozes elevavam-se, ele em silêncio
no quarto, afinal, já havia ruído suficiente, até que, certa noite, Vou morar com o meu namorado, a mãe
esmagada, Mas, filha, mal o conhecemos…,
uma frase hesitante, como se encerrasse, pela entoação, uma miríade de
significações só possíveis a uma voz materna, como se a mãe entoasse: Tens a certeza? Já pensaste bem? Não te vais
arrepender? Achas que ele te merece? E os estudos? Vão viver de quê? Mas a
filha só presente, a mãe passado e futuro, daí o eterno desencontro de
gerações, obstinada em virar costas às marquises, mas por horizontes distintos
dos paternos, bastava-lhe o relvado da vivenda dos pais do namorado, Sempre foste ambiciosa pelo pior lado!,
atirou-lhe a mãe, ela já de costas, a volumosa mala numa mão, a outra a abrir a
porta do elevador, nem um Adeus!
Assim que ela elevador adentro, o ruído sempre demasiado mecânico, agora da
descida, a sombra da mãe estendida nos azulejos da entrada, a contemplar o
átrio agora escurecido, nem notara as luzes apagarem-se, a sua última frase
ainda reverberava em si: Sempre foste
ambiciosa pelo pior lado! Por fim, mas de cabeça no tapete de entrada,
fechou a porta. O filho saíra do quarto, assim que estranhou o retorno do
silêncio. A partir dali, só os dois. As paredes da casa expiravam demoradamente
por aquela calma agradecida. Quando saíam à rua, caminhavam de uma forma
curiosa, pareciam incomunicáveis ao mundo passante, como se ovelhas entre
lobos, numa ânsia de regresso reflectida em cada gesto. No fundo, bengalas de
uma mesma dor. As noites passadas em frente ao televisor, após uma ceia
económica, condizente com a leveza da bolsa, sempre naquele silêncio de
anuências, nem um comentário para colorir, ele, como sempre, deitava-se mais
cedo, antes um beijo na testa da mãe, ela Deus
te abençoe, meu filho!, e um sorriso agradecido à vista do seu rosto. Assim
que ele se afastava, ela só com o pensar, o inclemente companheiro da solidão.
De novo, a dor pela gaguez do filho. Talvez se não isso, a vida outra. Uma
mulher, um lar… Aquela sua protecção, também exagerada, dos golpes do mundo.
Sempre O meu menino… Ele a murchar a
seu lado, num existir de estufa, mas ao menos o pão na mesa, assim se amenizava
aquela consciência. A certa altura, a possibilidade da caixa da mercearia do
bairro. A mãe ainda hesitou, de novo, a gaguez, embora ele fosse de cálculo
rápido, no entanto, o filho antecipou-se-lhe, e, na manhã seguinte, já
registava vendas e retribuía trocos. Ela, de certa forma, orgulhosa. Numa
tarde, a campainha demasiado insistente. Surgiu-lhe a filha, distante, Ainda tenho, por aqui, algumas coisas, a
mãe a emudecer de questões, uma mão ainda se levantou, porém, a filha
contornou-a, como se de um infeliz escolho se tratasse, percorreu, várias
vezes, a casa, de novo, uma mala volumosa na mão, antes do elevador, Então, até a um dia destes, a mãe, da
porta, desta vez, em silêncio, embora uma frase, em si, Sempre foste ambiciosa pelo pior lado! Nessa noite, o filho
compreendeu-lhe a derrota. Sentou-se a seu lado. Apenas isso. Ela agradeceu sem
o dizer. Talvez a gaguez o impedisse de pronunciar marquise.
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.