Livros do Escritor

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domingo, 14 de fevereiro de 2021

Um beijo lento numa face agradecida


 

O passado em cima de uma mesa, na forma de instantes emoldurados, mais longe, mais perto, mas sempre ido. Uma vez por semana, pelo menos, recebia a visita de um pano alaranjado de flanela. E de suspiros. Sim, ela sentava-se num banquito redondo, de plástico, e revisitava, um a um, demoradamente, cada instante, como se não mais no banco, mas, de novo, ali, sob aquele céu, a sentir aquela brisa (Da manhã? Do entardecer?), a olhar a eternidade diante de si. O pano alaranjado de flanela, de semana para semana, mais demorado na visita a cada instante. Os suspiros também mais longos. De vez em quando, uma gota salgada sobre a superfície envidraçada que perpetua um momento. O pano apressa-se a disfarçá-la em movimentos circulares. Ela ainda permanece, durante mais algum tempo, sobre o banquito redondo, de plástico, em silêncio, como se não sei bem onde, aqueles estados em que não estamos em parte nenhuma, como se descansássemos de nós, sim, quem não precisa do repouso de si? No fundo, somos o nosso maior fardo, e ela, que já começava a abraçar a terra, carecia, cada vez mais, de se abandonar. Regressava ao leme de si no desconforto de sempre. Como se o nosso molde fosse de outra matéria. E o nosso ser de outro lugar. A casa num silêncio de ecos. Sim, as ausências não mais que ecos adormecidos. Ela ainda com as vozes em si, mas os rostos apenas em cima da mesa. Por vezes, em ânsias de os relembrar, apenas traços difusos, como se carecessem da nitidez de uma outra existência, logo, no seu lugar, surgia o som, sempre próximo, da voz, ela em sorrisos àquela melodia de uma vida, sempre familiar com o açúcar do sentimento. À medida que o pensar deambulava, em si, no seu passo vadio, sem se aperceber, ela movia o rosto em movimentos verticais, como se anuísse à generosidade da memória. O pano alaranjado de flanela, de novo, em movimentos circulares sobre uma superfície envidraçada. Mas, desta vez, o sal ainda no precipício do seu rosto. Que instante ela detém nas mãos? Talvez o que lhe humedeça a face não se deva ao instante firmado nas mãos, mas ao vazio de agora pelo tanto do ontem. Achou curioso que só se emoldurem sorrisos! Talvez as lágrimas corressem além molduras, e relembrassem a verdade da vida. Mas quem quer o sal da verdade? Sim, é uma possível explicação. Contempla o rosto daquele que respirou a seu lado. Sempre que o olha, mais se sente a abraçar a terra. À vista daquele pedaço de memória, ecoam em si frases, risos, como se, de novo, ali, mas a âncora de hoje retém-lhe a esperança de ontem. E ela pensa: afinal, eu sou tantos! Sim, eu sou tantos! E olha aquela estranha de ontem, que ostenta um destemperado riso solar, e pensa nas noites salgadas que lhe iriam esculpir a alma. Agora, parecia que as sombras se multiplicavam num espreguiçar demasiado indolente. Com o tempo, ela aprendeu a lição do anoitecer. Os outros regressam. As luzes acendem-se. Há mais barulho à sua volta. Aprendeu a perfilhar os sons dos outros. Tranquilizam-na. Sim, à sua volta apenas ecos. Como o incessante andar do grande relógio da sala. Para ela, anda sempre demasiado devagar. Sim, é verdade. Ela anseia por um reencontro. Daí a sua pressa. Talvez, nesse momento, limpe o sal do seu rosto.


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