Livros do Escritor

Livros do Escritor

quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

O Bugs Bunny

 



Caros leitores, as minhas desculpas por, nestas últimas crónicas, retratar desprezíveis e sinistras figuras, desde uma Porcachona, a um autêntico boneco que usa cuecas do Tintim, passando por uma perna-de-presunto com laivos de “dona do pedaço,” não se preocupem, voltarei, em breve, aos vôos que sempre me nortearam a escrita, falta-me só retratar uma desprezível e sinistra figura, embora com uma notória aparência de desenho-animado, assim que me apresentaram, logo o meu olhar perdido naquelas mais que proeminentes dentuças, como é óbvio, era-lhe impossível fechar a boca, confesso não lhe ter ouvido uma sílaba, fascinado que estava naquele subir e descer das favolas, bem diante do meu rosto, e eu sem uma cenoura para…, senti-me o maior dos pecadores, como era possível tamanha falha, as favolas, bem diante do meu rosto, subiam, desciam, subiam, desciam, subiam, desciam, e eu sem uma mísera cenoura para sossegar aquele frémito, a indumentária também não me passou despercebida, o casaco anacrónico, trouxe-me, de imediato, à memória uma clássica série portuguesa, “Duarte e Companhia,” que personagem, as favolas, e eu sem uma mísera cenoura para sossegar aquele frémito, o casaco anacrónico, uns quase invisíveis óculos, tudo se desvanecia atrás das mais que proeminentes dentuças, reparei também na oleosidade capilar, talvez pelo reflexo das luzes, como todo o coelho, olhar receoso e atento, o perigo surge de onde menos se espera, em certa ocasião, veio de um telefonema, não obstante estar perante uma audiência, atendeu a chamada e prontamente aos gritos que o estavam a ameaçar, quando me relataram este episódio, não contive a minha angústia e uma lágrima – logo a imagem das favolas, do anacrónico casaco (trouxe-me, de imediato, à memória uma clássica série portuguesa, “Duarte e Companhia”), numa panela fumegante, pelo menos, dessa forma, a oleosidade capilar saberia o que é água –, desculpem, mas esta imagem é demasiado dramática, as dentuças subiam, desciam, subiam, desciam, subiam, desciam, em pânico, “Está a ameaçar-me… Está a ameaçar-me… Está a ameaçar-me!”, todos, por ali, entre a incredulidade e o espanto por tanto terror diante de um singelo telefonema indevidamente  atendido, não era sua função nem contexto para tal, sejamos condescendentes, talvez a esperança, quando o telefone soou, de um saquito de cenouras, temos de ser compreensivos, há uns dias chegou com ânsias de protagonismo, desejos de realizar mímicas, desde o primeiro segundo, percebi que esta criatura tem a garganta proporcional às dentuças, o resto, como é óbvio, demasiado diminuto, instado por mim a avançar com o número teatral, claro que se furtou, expectável, tem a garganta proporcional às dentuças, o resto, como é óbvio, demasiado diminuto, acabou por se sentar ocultado pelo anacrónico casaco e pelas mais que proeminentes favolas, o sebo capilar reflectia o posicionamento das luzes no tecto, um dos flagelos do hoje é o crescente número de acéfalos e acríticos, este desenho-animado só avoluma esta inquietude, bem tenta mascarar a coisa atrás das favolas, enquanto sobem, descem, sobem, descem, sobem, descem, mas não é necessário o dom da clarividência para se intuir a enormíssima distância entre o verbo que lhe sai pelas dentuças e a débil intensidade do olhar, caros leitores, alertei para o facto de, nestas últimas crónicas, retratar desprezíveis e sinistras figuras, desde uma Porcachona, a um autêntico boneco que usa cuecas do Tintim, passando por uma perna-de-presunto com laivos de “dona do pedaço,” não se preocupem, voltarei, em breve, aos vôos que sempre me nortearam a escrita, faltava-me só retratar esta desprezível e sinistra figura, com uma enormíssima distância entre o verbo que lhe sai pelas dentuças e a débil intensidade do olhar, é possível que, por vezes, a digestão lhe seja difícil, toneladas de cenouras lá terão o seu efeito, em momentos assim dá-lhe para tentar saltos que as mirradas pernitas não lhe permitem, até por mensagens, é bom que tenha muito cuidado, a época da caça já abriu, um dia destes pode ter uma desagradável surpresa, não fosse o mundo uma aldeia, e perder a imagem de marca: aquelas mais que proeminentes dentuças! Creio que ninguém se interessaria pelo anacrónico casaco, a memória de uma clássica série portuguesa, “Duarte e Companhia”, no entanto, se quiserem saber a posição das luzes do tecto, acreditem que o sebo capilar é de uma infinita utilidade, ficam, de imediato, com toda a geografia dos pontos luminosos, experimentem convidá-lo, não é preciso muito, basta um saquito de cenouras, assegurem-se apenas de que ninguém lhe telefone, não vá pôr-se aos gritos “Está a ameaçar-me… Está a ameaçar-me… Está a ameaçar-me!”, enquanto as favolas sobem, descem, sobem, descem, sobem, descem, num pânico desmesurado, sejamos condescendentes, tem a garganta proporcional às dentuças, o resto, como é óbvio, demasiado diminuto.

sábado, 29 de novembro de 2025

Um não assunto




Há uns anos, relatei a ascensão dos medíocres, hoje deparamo-nos com os seus podres frutos, a figura que hoje vou descrever é um paradigma da mediocridade, tinha múltiplas formas de iniciar esta narrativa, estou, de facto, indeciso, bom, tenho de escolher, trata-se de uma sujeita a caminhar, em largos passos, para o ocaso da vida, de uma certa distância parece um oito, por algum motivo apelidam este o país das rotundas, pois estão manifestamente em todo o lado, mais uma com o cabelo pintado de amarelo, uma larguíssima percentagem das entradotas, não sei porquê, opta pelo amarelo para maquilhar os brancos, ignoram que o problema não está nos cabelos, mas no oito avistado à légua do corpo, por algum motivo apelidam este o país das rotundas, pois estão manifestamente em todo o lado, enfim, há lugares onde o bom-senso nem ousa bater à porta, esta é daquelas criaturas que, logo à primeira vista, de uma inteligência mínima, causa repulsa, uma pose de “dona do pedaço,” sedenta de toda e qualquer atenção, um sentar-se de lado com a perna cruzada, como se houvesse algum holofote a si dirigido, nem uma lâmpada fluorescente se acendia para iluminar tal degradação, ignoro a causa, também não pretendo conhecê-la, lá surge um rafeirito ou dois a bajulá-la, ela em regozijo, haja um lugar onde, sentada, de lado, com a perna-cruzada, seja atenção para alguém, nem que seja para rafeiritos, quem sabe rareie atenção noutros contextos, a carência é tramada, um discurso superficial, deveras atamancado, frase sim, frase não, debita o sofrível “pronto”, meu Deus, que escassez vocabular, a primeira vez que a ouvi debitar “pronto,” confesso ter olhado para ver se provinha, de facto, daquele enchido, de perna cruzada, com pose de “dona do pedaço,” os óculos no cocuruto, talvez tenha visto numa novela ou em alguma dessas múltiplas revistas para acéfalos, sim, possivelmente, lá concluiu que lhe assentava bem, ora é vê-la, no quotidiano, de painéis-solares sobre a cabeça com laivos de modernaça, simplesmente risível, o problema está um pouco abaixo, no oito avistado à légua do corpo, por algum motivo apelidam este o país das rotundas, pois estão manifestamente em todo o lado, ao segundo “pronto,” num espaço de dois minutos, a personagem estava inteiramente apresentada, só um ou dois rafeiritos fielmente a ouviam, como há uns anos relatei, os medíocres ascenderam, e os invertebrados curvam-se perante estas aberrações em busca de toda e qualquer migalha, mais um minuto e…, outro “pronto,” já me ria de mim para mim, ainda olhei os painéis-solares, sobre o cocuruto, para ver se aguentavam a enxurrada de “prontos,” lá permaneciam, imperturbáveis, talvez colados às toneladas de laca, questionei-me que livros lera para tão exíguo vocabulário, se é que lera algum, embora, de forma evidente, se lançasse para fora de pé a citar nomes de ouvido, como se familiares próximos, nem dois minutos volvidos e outro “pronto,” a ouvi-la, agora, só se mantinha fielmente um rafeirito em anuências, aquelas vulgaridades como se de revelações divinas se tratassem, uma ou duas migalhitas a quanto obrigam, não obstante a escassez de auditório, o oito sob os painéis solares lá continuava a debitar “prontos” circunscritos a um discurso de pré-escolar, noutra ocasião, assisti eu, foi confrontada com uma questão, desta vez, os painéis solares abanaram, nitidamente este oito não estava habituado a tal, foi vê-la reerguer-se naquela pose de “dona do pedaço,” sem jamais olhar a génese da questão, por norma, os medíocres não olham de frente, construir um discurso redondo de duas ou três frases, mais não lhe era exigível, os “prontos” já lhe eram demasiado plurais, para se escudar, e não se demovia, finalizava sempre com “Isso é um não assunto,” qualquer investida do seu interlocutor “Isso é um não assunto,” nem a cabeça abanava, não fossem os painéis solares se precipitarem, dizem que fala alto dos outros quando estão ausentes, previsível, todo o cão ou cadela ladra atrás de um portão, é bom que ganhe juízo, muito juizinho, afinal, trata-se de uma sujeita a caminhar, em largas passadas, para o ocaso da vida, e, nesta caminhada, há quem tenha o dom de colocar os medíocres no seu lugar muito rapidamente, com mais ou menos “pronto,” com ou sem óculos no cocuruto, talvez, isso sim, se providencie um rafeiro para ouvir as suas boçalidades como se revelações divinas, e a cada “pronto” ou “isso é um não assunto,” o rafeirito proclamar um sentido Ámen.



quarta-feira, 26 de novembro de 2025

A Porcachona e o Tintim


 

Uma questão que recorrentemente me colocam é: “Quando começou a escrever?” Só concebo uma resposta: “Desde que aprendi a olhar o mundo,” curiosamente nunca perguntaram a razão que me levou a preencher centenas e centenas de páginas em branco, pois bem, hoje revelá-la-ei, foi há mais de década e meia, um projecto para uma curta-metragem, o guião entregue a um boneco que ambicionava ter o dom da escrita, destino vilão que não lhe conferiu tal dádiva, apesar disso, abnegou-se em cumprir com a narrativa da curta, até que, certa tarde, sou interpelado por uma das protagonistas “Peço desculpa, mas não vou dizer esta fala! É demasiado ridícula! Não lembra a ninguém! Assim, não vamos a lado nenhum! Por favor, escreva você…,” esta última frase ecoou-me na alma, “Por favor, escreva você…,” como se, desde que caminho por este lado, a aguardasse, “Por favor, escreva você…”, um chamamento de ordem-superior, diante da obscenidade de uma página em branco, não recuei, as palavras saíram com a naturalidade de quem há muito aguarda pela sua hora de luz, assim foi, mas uma questão subsiste: Qual foi a fala, demasiado ridícula, que a protagonista se recusou a verbalizar? Pois bem, “Vê lá se queres levar um tabefe…,” riso e consternação povoaram-me ao ler tal deixa, de facto, o boneco bem ambicionava ter o dom da escrita, destino vilão que não lhe conferiu tal dádiva, é vê-lo andar diariamente com um livrito debaixo do braço, sempre confere um ar erudito, a melhor definição deste boneco proveio de um “dito seu amigo”: “É como a cortiça, está sempre à superfície;” confesso, ainda hoje, não ter ouvido melhor definição para esta figura, lá consegue, em todo o ambiente, passar incólume, senta-se e dialoga animadamente com Deus, o Diabo, arcanjos, demónios, e o que demais houver, embora distribua informação apenas com quem lhe permita estar, como a cortiça, à superfície das coisas, um autêntico dançarino, ora em reuniões, pelos cantos, com menopausas ambulantes, ora em estéreis conversas, sobre bola, política ou trivialidades, onde a sua opinião nunca o compromete, “É como a cortiça, está sempre à superfície;” como nunca se deu bem com volantes e pedais, é vê-lo sempre à cata de uma salvífica boleia, uma omnipresente e colorida camisa fora das calças, sempre disfarça as mais que notórias rotundas formas, um andar bamboleante que, para as más-línguas, levanta certas questões, deve ser só maledicência, afinal, pode simplesmente ir em busca de uma salvífica boleia, sinceramente era caso para questionar essas más-línguas: “Vejam lá se querem levar um tabefe?” O incessante enlear do destino levou esta personagem a cruzar-se e, claro, a ficar íntimo da Porcachona, uma obesa, com o cabelo pintado de amarelo, que arranha castelhano, divorciada, mais que previsível, quem aguentaria, por muito tempo, a Porcachona? Laivos de autoridade para quem o permite, como é óbvio, afinal de contas quem no seu perfeito juízo aceitaria um conselho, quanto mais uma ordem, da Porcachona? Há uns tempos, um familiar-directo alertou-me para quem, de facto, era a Porcachona, achei exagerado, hoje tiro-lhe o chapéu, mais uma menopausa ambulante, em conversas de canto com o boneco que tanto se bamboleia ao andar, a cansada história de falar dos outros para não serem falados, temos de compreender que alguém precisa de boleia e a Porcachona de um ouvinte, e ambos de maquilhar a frustração das suas existências, um aspecto intrigante da vida, que me tem feito reflectir, é como as mediocridades se atraem, parece haver uma ordem invisível das coisas que, de forma irreversível, acaba por juntá-las, a compreensão advém da distância, dei por mim, há uns dias, a observar estas duas tétricas figuras de uma salutar dezenas de metros: o boneco, com o omnipresente livrito debaixo do braço, sempre confere um ar erudito, o sorrisito lodoso, a Porcachona, com o cabelo pintado de amarelo, à sua frente, não percebi se grunhia em castelhano, umas calças, não obstante o XXL, apertadas, de onde sobressaíam as marcas do pára-quedas a que devia chamar de cuecas, desculpem, pela dimensão acreditem era, sem dúvida, um pára-quedas, e para ali ficaram, o suficiente para expelir o seu veneno, pouco mais têm para dar ao mundo, por fim, a Porcachona entrou, da distância até comiseração senti, que homem, no seu perfeito juízo, se podia interessar por uma Porcachona, com o cabelo pintado de amarelo, que usa um pára-quedas no lugar de cuecas? O boneco lá seguiu o seu caminho, cabisbaixo, hoje não arranjou a salvífica boleia, pode não perceber de volantes e pedais, mas ao menos bamboleia-se como poucos, e se alguma má-língua insinuar algo, resta questionar: “Vejam lá se querem levar um tabefe?”

domingo, 23 de novembro de 2025

O Sinédrio

 


Nunca, como no hoje, o Sinédrio esteve tão presente, apenas as vestes divergem em formas e colorações, as personagens tétricas subsistem, a essência prevalece: aterrorizar quem ouse a diferença; tal como há dois mil anos, as sombras edificadoras do Sinédrio são as mesmas: não fosse este o seu reino, afinal, o Inferno não é um lugar assim tão longe do aqui; há uns dias, um conhecido viu-se perante esta realidade, presidia ao Sinédrio, no lugar de Caifás, algumas coisas lá se alteraram, embora as personagens tétricas subsistam, uma cinquentona, sem qualquer dívida com a beleza, a indumentária, nem as carnes flácidas e descaídas conseguia maquilhar, algures entre um catálogo do Lidl e os saldos do Continente, a cabeleira grisalha mal disfarçada pela pasta alcatroada que amiúde jorrava cabeça abaixo, o efeito final simplesmente anedótico, parecia uma palmeira andante, o olhar servil tão aquém de um vislumbre de inteligência, daquelas sujeitas a quem um cumprimento já se afigura um esforço demasiado, pela ansiosa procura por adequadas palavras, mediante o interlocutor, para a escassa massa cinzenta, se estava empossada de Caifás era porque interessava às sombras do hoje, a seu lado uma sujeita aquém de pastas alcatroadas para ocultar a grisalha cabeleira, uma omnipresente expressão de enjoo, indício da latente falta de diversão num determinado contexto, o avolumar dos anos só lhe adensa a enjoada face (Quando terá tacteado o céu pela última vez? Se é que alguma vez o vislumbrou…), perante aquele enjoado focinho, estas questões emergem com naturalidade, havia um sujeito, de sotaque hispânico, que nitidamente se gostava de ouvir, por norma, dali só saem esterilidades, no entanto, pouco se pode fazer, assim que lhe é dada a palavra, frases ocas, redondas e inférteis, embora o seu olhar cintile ao ouvir-se, acaba por enternecer, sobretudo pelo sotaque hispânico, de que nitidamente se orgulha, não obstante as décadas longe de tal berço (Como ainda o mantém? Talvez fosse uma marca autoral… A inquestionável demanda por um original carácter…), frases balizadas entre o seu escasso conhecimento das coisas, mas quem o ouvisse, sempre em espanto, o sotaque hispânico somado ao regozijo de se ouvir era demasiado para o comum dos mortais, por estes dias, o Sinédrio convoca dois elementos exteriores prontinhos a apontar o dedo aos que devem ser decretados réus, assim foi com o meu conhecido, um dedo em riste por… Pois, por…? Não conseguiu especificar, todavia o olhar do Sinédrio sobre si, era onde incidia o acusatório dedo, todavia, ele sem a menor vocação para Jesus Cristo, prontamente virou a mesa, percepcionou, de imediato, a génese do acusatório dedo, das aberrações do hoje, cabelos-pintados, desvios comportamentais, inversão de valores, não querem fazer parte do mundo, pelo contrário, pretendem que o mundo se curve às suas nebulosas perturbações, quem nasce com coluna-vertebral dificilmente vacila perante qualquer aberração, o dedo viu-se confrontado, começou a ficar titubeante, desculpas por não encontrar sílabas para sustentar a mínima acusação, os restantes membros do Sinédrio em silêncio, nem vestígios do sotaque hispânico, a omnipresente expressão de enjoo curvada para o tampo da mesa, ao menos, por uns segundos, a realidade mais luminosa, somente a cinquentona, sem qualquer dívida com a beleza, a indumentária, nem as carnes flácidas e descaídas conseguia maquilhar, algures entre um catálogo do Lidl e os saldos do Continente, em esforços para reverter a capitulação do acusatório dedo que, no fim, lá acabou por correr atrás do meu conhecido em esforços para se desculpar, ao saber deste episódio, questionei-me quantos soçobram face ao Sinédrio do hoje, demasiados, sem dúvida, demasiados, tal como há dois mil anos, as sombras edificadoras do Sinédrio são as mesmas, tudo estruturado para triturar quem ouse a diferença, felizmente ainda os há, com a dignidade e o peito de se levantarem, relembrar ao acusatório dedo a sua insignificância e que jamais o mundo se deve curvar a nebulosas perturbações.

sábado, 22 de novembro de 2025

Entropia

 


Só quis dali sair, assim que se viu na rua, expirou longamente, o pensar incessante, sentia-se, por fim, a uma distância segura das coisas, horas antes, ali entrar com a filha, de três anos, ao colo, a testa em chamas, ainda lhe ligou, a alertar para o estado da criança, mas nada, era sexta-feira, há dois ou três meses que, com a desculpa de reuniões mais reuniões, sempre ausente, ela sabia dos jantares e sobremesas com a estagiária do escritório, o aparelho do hoje apenas uma biografia andante, bastou-lhe menos de uma dezena de minutos de distracção da parte dele, ao contrário do expectável, não sentiu raiva, dor, desilusão, apenas uma distância segura das coisas, desconhece o momento, sabia, no entanto, que o deixara de amar, simplesmente, por ele apenas ternura, pelo que foi, nada mais, deixou as coisas seguirem o seu rumo por múltiplas razões, algumas, convenhamos, pouco dignas (comodismo, preguiça, conveniência, vergonha…), parte de si acreditava que ele se apercebera, daí, ao contrário do expectável, raiva, dor, desilusão, apenas uma distância segura das coisas, começou a sentir um aperto no peito quando se cruzava com o colega, recém-divorciado, havia nele um desamparo que lhe despertava emoções há muito adormecidas, tão distintas de correr, com a filha nos braços, devido à testa em chamas, por acaso, numa dessas entediantes tardes de trabalho, encontraram-se junto à máquina de café, ele prontificou-se a encher ambos os copos, agradeceu-lhe com um sorriso algures entre a gratidão e um convite ao diálogo, havia nele um desamparo que lhe despertava emoções há muito adormecidas, como ela desejava saltar a imperativa e sempre incómoda conversa de circunstância sobre a qualidade do café, a temperatura lá fora, o volume de expediente, o seu olhar doloroso e perdido encantaram-na, percebeu-lhe a latente necessidade de diálogo, de um porto de segurança para o encapelado mar da existência, gostou da sonoridade da voz, da desajeitada timidez dos gestos, no entanto, teria de ser ele a entreabrir uma porta, um princípio de que jamais abdicaria, com a desculpa do carro na oficina, aguardou que lhe oferecesse boleia, não tardou, “Não é nenhum incómodo! Tenho muito gosto…,” percebeu-lhe zelo no carro, sempre ajudava a disfarçar os anos, o interior, ao contrário do seu, impecavelmente limpo, talvez o olhar doloroso e perdido fosse uma construção sua, assim que a marcha se iniciou, um incómodo silêncio entre eles, ouviam-se a procurar ansiosamente palavras para construir uma frase que permitisse romper aquele opressivo silêncio, foi ela que “Não queres pôr música?”, “Sim, pode ser…,” de repente, uns acordes melosos, o olhar dele ainda mais doloroso e perdido, ela “Estás bem?,” a questão já pairava e a resposta a nascer-lhe, a canção iluminava-lhe outro rosto, da mulher que o deixara, parece ter regressado a um amor de juventude, segundo se dizia, de bolsos abastados pela herança dos pais, para prolongar o delírio nada como eximir cálculos matemáticos, ele agora sozinho no apartamentozito, de um quarto, no primeiro-andar, com vista para um candeeiro de rua, foi como se parte de si lhe fosse arrancada, para superar a dor convenceu-se de que ela regressaria,  ninguém o demovia, não retirou uma única foto dela do apartamentozito, de um quarto, no primeiro-andar, com vista para um candeeiro de rua, nem tudo lhe podia ser abruptamente extirpado, a verdade é que ela se sentiu uma intrusa, aqueles melosos acordes não eram para si, acabou por ser ele a colocar na primeira rádio com música, mais impessoal e despachado seria difícil, ela exprimiu a sua repulsa olhando para o relógio, se há pouco desejava saltar a imperativa e sempre incómoda conversa de circunstância sobre a qualidade do café, a temperatura lá fora, o volume de expediente, agora só lhe queria virar as costas, ser servida com o debitar musical de uma qualquer rádio constituiu um enormíssimo insulto, como se ela fosse uma vulgaridade, um pechisbeque de trazer por casa, “Estás atrasada para alguma coisa?”, a sua repulsa, afinal, não lhe passou despercebida, “A minha filha está quase a sair da escola…,” filhos, compromissos para a vida, assim lhe dizia um rotundo adeus, não que ele se importasse, já saudoso das fotografias, do candeeiro de rua avistado da janela e do desesperado regresso de uma ideia, que insistia em não abandonar, nos dias seguintes, ambos evitaram a máquina de café, semanas depois, já nem se cumprimentavam, ninguém cumprimenta equívocos, foi até ao café em frente, sentou-se a uma mesa, enquanto aguardava pelo empregado, olhou o incessante trânsito de vultos pelo passeio, reflectiu se, na realidade, há equívocos ou sublimados desejos de tudo uma outra coisa, uma voz ensonada fê-la regressar, “Ora, o que vai ser?”, uma saída de tudo isto, pensou, uma saída de tudo isto, pediu um café, ao contrário da filha, precisava de algo quente para despertar, a verdade é que sentiu inveja de nem uma canção ser para alguém, quanto mais fotos suas, espalhadas por uma casa, a aguardar pelo seu regresso, nem que das janelas se avistasse um candeeiro de rua, a chávena de café lá veio, “É mais alguma coisa?”, “Ser uma canção para alguém… Acha que demora muito?”

quinta-feira, 13 de novembro de 2025

Dos sonhos por realizar

 


Nunca partilhou a sua maior ambição, nem com a mulher, volta e meia, nos entediantes passeios de fim-de-semana, a lugares tão cansados que até as pedras quase cumprimentavam, uma palavra a nascer-lhe “Sabes…”, ela pronta “Sei o quê? Então, desembucha!”, ele logo a fechar-se, a olhar um indefinível ponto na distância, onde de facto desejaria estar, “Emudeceste?”, sabia-a persistente, “Não é nada, estava a apetecer-me um gelado… Queres?”, “Estás a querer enganar quem?! Assististe ao embranquecer de cada fio dos meus cabelos, mesmo assim, após mais de quatro décadas sob o mesmo tecto, julgas que não conheço, pela melodia da voz, por onde te caminha o pensar?”, estava encurralado, ela não desistiria, “Não é nada, só me está a apetecer um gelado…,” a verdade longe de cones e sabores, foi numa longínqua noite de infância, talvez fosse Verão, folheava um álbum de banda-desenhada, e uma ideia a nascer-lhe “Um dia, hei-de escrever um livro,” assim, de aparente fonte incógnita, “Um dia, hei-de escrever um livro,” a imagem de o seu nome numa capa, uma história por si narrada, seduziram-no, logicamente, na altura, atirou esse objectivo para o futuro, de uma outra forma, para a imaginação, quando o entardecer da vida lhe espreitasse pela janela, no entanto, o objectivo manteve-se iniludível, palpitante, o curso da vida indiferente a sonhos, objectivos, capas ou histórias, o trabalho possível para tecto sobre a cabeça e pão na mesa, o casamento com a filha dos compadres dos pais, em verdade, nunca questionou os seus sentimentos por ela, o inverso também seria facto, seduzido pela imposição familiar, deixou-se conduzir, a timidez dela cativou-o, uns anitos de namoro até a maioridade, o casamento, a vinda para a cidade, ele para uma estação-de-correios, ela numa sapataria, ambos a olhar para baixo, envelopes e sapatos, a timidez dela um adereço que, após o casamento, logo foi dispensado, de firmes convicções a contrastar com as profundas incertezas dele, dúvidas se teria o dom da paternidade, ela a anunciar-lhe, em júbilo, a gravidez, nesse momento, sentiu que a vida o ultrapassava, viviam num segundo-andar, sem elevador, pelo menos tinham dois quartos, os vencimentos davam para os gastos, ele sonhava com um automóvel, teria de esperar, “Esquece essa história do carro! Em breve, teremos mais uma boca para alimentar! Já não tens idade para sonhos! Desce à realidade…,” as frases saíam-lhe assim, imperativas, “Já não tens idade para sonhos!”, questionou se, alguma vez, teve tempo para sonhar, foi, mais ou menos, por esta altura, que se iniciou a sua compreensão de que sempre fora ultrapassado pela vida, certa noite, gritos de choro mesmo ao seu lado, acordou algures entre o sobressalto e um desespero resignado, ela em sono profundo, tirou o bebé do berço para o acalmar, viu a cena de uma distância segura, todos os seus actos obedeciam a uma mecânica que o ultrapassava e muito desconhecia, de onde estava não se reconhecia naquele sujeito, com uma criança nos braços, de madrugada, tantos sonhos por despertar, tal o atropelo da vida, passados dois anos, ela, de novo, em júbilo, a anunciar-lhe nova gravidez, percepcionou, de imediato, que as esmeradas poupanças, para o carro, seriam canalizadas noutra direcção, em mais uma boca para alimentar, nem uma sílaba ousou, a verdade é que no estoicismo há nobreza, na resignação apenas fraqueza, ele quedava-se por esta última, houve complicações no parto, ela teve de secar a fonte muito a contragosto, ele, com o filho mais velho pela mão, acompanhou de perto as incidências, e o tempo, talvez a maior ironia da vida, por sempre nos iludir a cada instante, pensamos no seu vagar, num ápice, lá se foi uma década, até que, ao olharmos para trás, tudo se cinge a, quem sabe, um minuto, e será demasiado, ainda hoje continuam no mesmo segundo-andar, sem elevador, pelo menos tinham dois quartos, um deles livre, os filhos seguiram os passos do destino, um casado, também com dois filhos, o outro já divorciado, só com uma filha, as reformas davam para os gastos, não, ele nunca conseguiu o almejado carro, em tempos ainda equacionou comprar um em segunda-mão, ela prontamente interveio “És doido ou quê? Sabes lá se já teve algum acidente! E devias saber que subtraem quilómetros! Deixa-te de aventuras, homem, deixa-te de aventuras… As nossas poupanças servem para uma fatalidade com uma doença! E querias o carro para quê? Temos tudo, graças a Deus, perto de casa…,” vezes houve em que, da janela, ele em sonhos com o fim da rua onde moravam, nunca chegou a saber onde termina essa estrada, só por duas ocasiões, no Verão, foram passar as férias no litoral, ventoso e bravio, próximo da sua cidade, os filhos ainda crianças, de resto, poupar com o intuito de antecipar o pagamento da casa, poupar para a faculdade dos filhos, “Dizem que os livros e as propinas são uma fortuna!”, nem uma sílaba ousou, a verdade é que no estoicismo há nobreza, na resignação apenas fraqueza, ele quedava-se por esta última, nos tempos recentes, poupar para qualquer emergência de saúde, e a nascer-lhe a certeza de ter sido poupado à vida, restava-lhe algo, a imagem de o seu nome numa capa, uma história por si narrada, e um desejo “Um dia, hei-de escrever um livro,” a dúvida se talento para “Um dia, hei-de escrever um livro,” abriu a janela, o segundo-andar não lhe permitia largos horizontes, questionou-se “Onde terminaria aquela estrada?”, voltou para dentro, sentou-se à mesa, fechou os olhos, ao volante do seu carro percorreu aquela estrada na esperança de reencontrar sonhos caídos num lugar do ontem.

quarta-feira, 5 de novembro de 2025

O que perdura no fim de tudo?

 



Queria, como se deve, começar por dizer o seu nome, mas, confesso, já não me lembro. Passou algum tempo, é verdade. E o nosso tempo nunca é o tempo dos outros. Sabe, esta história nunca me abandonou, vou tentar relatá-la com a exactidão possível, se bem que a memória, como sabemos, tem mais sombras que luz… Estava naquela altura da vida em que olhamos os adultos algures entre a compaixão e a reverência, depois do almoço, aos fins-de-semana, cumpria-se escrupulosamente o rito do café, os meus pais e um casal vizinho, cada passada parecia obedecer a um minucioso escrutínio, de facto, o nosso tempo nunca é o tempo dos outros, quando os acompanhava, seguia ou mais à frente ou atrás, consoante o universo em que habitava, mas nunca ao lado, acho que, em determinado momento, jurei nunca habitar o universo dos adultos, até hoje julgo ter cumprido na perfeição com este desígnio, não há nada mais aborrecido e enfadonho que um adulto, e há aqueles que nascem adultos, assim, sem direito a réplica, conheci alguns, entre carteiras de escola e brincadeiras na rua, creio que, se sentassem com os meus pais a uma mesa de café, teriam uma daquelas conversas balizadas por bocejos e olhares de náufrago, sobre politiquices ou dinheiro, apesar de terem a minha altura, mas nasceram assim, com aquela idade, se pudessem alterar, acredito que não o fariam, lá está, são adultos, enfadonhos, aborrecidos, sem um rasgo de energia, até as costas denunciam prematuramente a futura curvatura, apesar do meu repúdio, não deixava de me espantar, como dizia, depois do almoço, aos fins-de-semana, cumpria-se escrupulosamente o rito do café, os meus pais e um casal vizinho, certo Sábado, atento na conversa da vizinha para a minha mãe, “Pois, sabe como é, continua a falar como se ele ainda ali estivesse”, dessa vez, desacelerei o passo para que me alcançassem, lembro-me, ia um pouco mais à frente, talvez fosse habitado pelo universo de um super-herói veloz, é possível, mas aquelas palavras, não sei porquê, fascinaram-me (“continua a falar como se ele ainda ali estivesse”), havia por ali qualquer coisa dos universos que eu abraçava a cada instante, diametralmente oposto à rigidez enfadonha, aborrecida, sem um rasgo de energia, dos adultos, apesar de se referirem, como logo percebi, à vizinha do rés-do-chão, uma velhota simpática que enviuvara há uns meses, como simpatizava com ela, tinha sempre um sorriso ou uma palavra simpática na algibeira para me oferecer, daí o meu interesse pela conversa, e aquelas palavras (“continua a falar como se ele ainda ali estivesse”), a conversa prosseguiu, a minha mãe tentou quase justificar a simpática velhota do rés-do-chão “É compreensível… Já viu, décadas e décadas de casamento… Deve ser uma dor imensa… Nem posso imaginar! Meu Deus, coitada da senhora… Vou ver se, ainda hoje, lhe faço uma visita…”, a vizinha persistiu na sua indignação “Repare, eu compreendo tudo isso. E até me compadeço da sua dor. Mas daí a falar com fantasmas, vai uma distância… Isso já é um problema de saúde pública.” Neste ponto, percebi que a voz da minha mãe se metamorfoseara: “Mas quem lhe falou de tal coisa?” A questão saiu-lhe rápida e, pela entoação, percebi aquele tom particular como quando olha o meu quarto da porta num final de tarde, também não passou despercebido à vizinha que se apressou a aligeirar as coisas “Diz-se para aí… Já sabe como é esta gente! Ouvem sempre tudo, e sabem sempre tudo… Não ligue!” E, de facto, a vizinha foi bem-sucedida na sua tentativa de aligeirar as coisas e logo a atenção da minha mãe em algo distinto decorrente da conversa, contudo, a minha ali ficou, para sempre, como um obstinado escolho numa corrente invernosa. Com o tempo, cruzei-me cada vez menos com a simpática velhota do rés-do-chão, não obstante os meus esforços em sentido contrário, nessas escassas vezes, achei-a subtraída, como se uma parte dela tivesse partido para longe, sabe, manteve sempre a educação, mas não deixei de reparar que, pelas suas algibeiras, já não havia um sorriso ou uma palavra simpática para me oferecer, e eu que tanto queria falar com ela, somente um pouco da sua atenção, queria esclarecer se, de facto, tinha poderes para falar com fantasmas, quantos se podem gabar de ter um vizinho assim? Nunca fui esclarecido, como deve calcular, a minha mãe nunca chegou a concretizar a sua visita, quando lhe perguntava se ia hoje a casa da simpática velhota do rés-do-chão, ou me respondia “Vou amanhã, hoje já é tarde”, ou então “Qual é o teu interesse se vou visitar a vizinha?”, neste ponto, calava-me, se falasse, sentia que estava a trair a identidade secreta da minha simpática vizinha. Até que, demasiado tarde, compreendi que a deixara de ver. Ainda hoje não sei quem se lembrou, lá no prédio, que não a via sair há, pelo menos, duas semanas, regressava eu da escola, à porta do prédio, um cenário de luzes e viaturas, por fim, era o cinema que vinha ao meu encontro, assim que me percebo a escassos metros da entrada, surge-me minha mãe, a envolver-me com o seu braço, logo o mundo ficava um lugar longe, apenas umas vozes, esparsas, me chegavam, “Coitada! Dizem que morreu para ali, sentada”, “Sentada?!”, “Sim, foi o cheiro que nos chamou a atenção. Encontrámo-la na cadeira onde dizem que ele se sentava a ler”, “Mas foi…”, “Não, nada disso, acho que partiu de saudade”, “E ninguém deu pela sua falta?”, “Pois, como vê, não tinha ninguém”, “É verdade, pelos vistos, nem vizinhos que a soubessem morta, há uma semana, numa cadeira…”, “Sabe como é esta vida…”, “A vida não sei, mas olhe que a morte aprendi a saber”, “Não censure! Fez melhor?”, no que restou desse dia, não ouvi a voz de ninguém por minha casa, meus pais permaneceram em silêncio, eu, não sei porquê, achei que não devia ir além do meu quarto, pelo ar, toda a noite, apenas um cântico silencioso, sabe, ainda hoje, acho que muitos “partem de saudade”, acredite que, se isso me acontecer, quero que figure na minha lápide: “Partiu de saudade”.


 


 

sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Eu

 



Uma questão que jamais me colocaram, e sem dúvida a mais essencial, foi: “Quem és tu?” Em verdade, quantos já se confrontaram com esta pergunta? Raros, calculo, raros, perante tal pergunta (“Quem és tu?”), logo se me iluminam possíveis respostas, meu Deus, fui e sou tantos, o que rosna um cumprimento ao vizinho com que antipatiza, sorridente para a septuagenária, do terceiro-andar, com que engraça, facilmente irascível com azémolas ao volante, melancólico ao entardecer, sonhador com melodias do ontem, agressivo com os velhacos do hoje, obstinado, enfim, tantas possibilidades para uma singela questão: “Quem és tu?” O que nos caracteriza mais: os amores ou os ódios? Os amores espelham-nos, os ódios repulsam-nos, algures numa indistinta zona, entre estes dois aparentes sentires antagónicos, esteja a nossa essência, creio que, num certo ponto da caminhada, perdi o meu Eu, sei onde ficou, embora, se lá voltasse, a certeza de não o encontrar, as coisas nunca ficam onde as deixámos, considero no hoje estar mais preparado para responder à questão “Quem és tu?”, talvez pelo cansaço da caminhada, em certa medida, a fadiga obriga-nos a desacelerar, a gerir forças, a reavaliar a circunstância, à impossibilidade de nos fugirmos, e é esse o derradeiro combate: o “Eu” diante de si mesmo; quase todos levam manifestamente a existência a fugir de si mesmos, compreendi esse facto muito cedo, no fracturante abismo que se me abrira ao olhar, por excessivos segundos, a um espelho, que estranho ali estava, diante de mim, a olhar-me, não o reconhecia de todo, apesar de só o poder ser, mas a estranheza, omnipresente, a corroer-me cada canto da alma, não o compreendia como “Eu”, não obstante a inevitabilidade do facto, após os excessivos segundos, receei, confesso, perder-me de vez, ser tragado naquela estranha superfície que ora nos ilumina ora nos obscurece a Alma, as certezas do hoje transportava-as há muito, o tempo só as iluminou, esta é a verdade, quando olhamos um velho, por norma, o que esperamos? Um sábio, pois está no final da caminhada, mas como é raro, na realidade, encontrar estes dois conceitos num corpo, com a vida, os defeitos tendem a se agudizar, o que leva ao recuo das virtudes, desde si já escassas, ou tudo será resultado da subtracção do futuro? Alguém pode falar da vida sem ter passado uma noite de hospital? Pois não sei, por aqui a imagem de um velho, passada hesitante, um saquito-de-plástico na mão, a caminho de um raríssimo e exíguo pedaço de verde, no meio de sombras ameaçadoras de desumanização, ali chegado senta-se num dos bancos livres, nos outros uma velha com os dois netos e um casal de namorados, reparou na intensidade do olhar destes últimos, há quanto partira do seu olhar aquele fulgor? Há demasiado, há demasiado, tanto que nem vestígios de tal intensidade o habitar, como horizonte de tudo em nós apenas o outro, entre eles só o presente, futuro e passado longínquas realidades, em verdade, os velhos não invejam a juventude, invejam a intensidade do olhar, só o presente, futuro e passado longínquas realidades, a certa altura da sua caminhada pelo aqui, começou a contabilizar as vezes em que a vida se rira alto e desdenhosamente na sua cara, tão plurais, ainda há pouco a frase levantou-se-lhe na memória “Qualquer dia estás a dar de comer aos pombos...”, não lhe chegou o contexto, apenas o puro gozo com que a emitira, e agora, diante de si, os inquietos bicos e as hesitantes passadas das aves, sapientes do conteúdo do saquito-de-plástico, “Qualquer dia estás a dar de comer aos pombos...”, não suportou, por muito mais tempo, a pressão alada à sua volta, mergulhou a mão e logo grãos de milho pelos ares, as aves em estrépito, numa crescente ânsia pelo regresso dos grãos dourados à terra, pelo menos, ali, a ilusão de um controle sobre as coisas, no restante apenas o riso alto e desdenhoso da vida na sua cara, tudo lhe foi cobrado, até à sílaba, ao contrário de outras, talvez a sua existência obedecesse a outros imperativos, o tempo ensina-nos que há caminhos vedados a uns e a outros não, tudo tão estranho, não há nada mais irónico que o tempo: a estranheza de, afinal, nos sabermos no mesmo lugar, pois a questão persiste “Quem és tu?” Não tenho como a silenciar, também não delegaria nos outros para lhe responder, apenas lhes seria possível oferecer perspectivas, se eu não tenho como a silenciar, quanto mais os outros! Quem sabe se serei um estranho labirinto onde, a dada altura, me perdi, e, dia após dia, continue em busca desse “Eu” por entre a desordem pela passagem da vida, o velho persiste no esforço de trazer as aves à terra, quem sabe se por uma impronunciada esperança de, quando levantarem vôo, um desejo seu ser levado para as alturas.

terça-feira, 28 de outubro de 2025


 ... desde então, não há semana em que não visite a caixa de sapatos, abro-a e disponho as fotos por cima da colcha: fico a olhá-las e, por vezes, lembro-me, não sei porquê, dos velhos nos jardins da cidade, entre pombos ávidos e sombras indolentes, em conversas do ontem para calar a dor do hoje...

in Da arte de viver

domingo, 19 de outubro de 2025

O carácter transitório das coisas

 



Há qualquer coisa, numa manhã de céu encoberto, estranha, como se a noite ainda por ali, a adiar a sua partida, subiu a extensa escadaria para o trabalho, não diria conformado, mas abnegado consigo mesmo em cumprir um imperativo muito seu, sempre os mais relevantes, parou para um café, surge-lhe aquela colega, mais velha, que o tempo ensinara a respeitar, ela “Faleceu a minha mãe,” ele prontamente “Os meus sentimentos,” não sem antes a punhalada de um despovoar de palavras, afinal “Faleceu a minha mãe,” a morte de um estranho apenas uma informação, tão distinta da morte de um conhecido, quanto mais de alguém que tem lugar reservado no nosso coração, ele a reflectir nas dores que nos estão vedadas, “Faleceu a minha mãe,” sempre por uma dor tão maior que se esvaziou, e a morte, ao contrário do que se julga, sabe-a quente, harmoniosa, pacífica, somente a ouviu, os quilos perdidos, as viagens para a aldeia, limitava-se a anuir e a um ou outro lugar-comum, pouco mais, há dores que nos estão vedadas, sempre por uma dor tão maior que se esvaziou, sem qualquer vocação para carpideira, volta e meia, o seu olhar pela porta na ânsia de outro colega, para dividir os pesares, reflectiu na sempre dolorosa incompreensão da dor, por fim, começaram a chegar os restantes e o espaço a povoar-se, não mais partilhou “Faleceu a minha mãe,” o seu olhar apenas desceu ao chão e o verbo encerrou-se-lhe, tal não lhe passou despercebido, quanta dor conseguimos carregar?

A morte parece apreciar a companhia dos velhos, mas é falso, perdeu a conta aos novos que resolveram acompanhá-la na viagem sem regresso, demasiados, pois, demasiados, é tão distinto saber de uma morte ou senti-la: a notícia ou a punhalada; a informação ou o espaço irreversivelmente vazio pela ausência; desde que se recorda, a palavra morte sempre com uma aura de obscenidade, proibida, imoral, pestilenta, não chegara a completar uma dezena de anos quando teve o primeiro contacto com a outra face da vida, ocorreu na casa de uns vizinhos dos avós, ainda hoje aquém das razões, no entanto, ali foi velado o corpo, uma luz difusa naquela divisão, umas figuras de negro, num uníssono queixume, à volta do caixão, aberto, onde estava o corpo, admirou-se pela brancura de rosto e mãos, contudo, houve um aspecto que lhe ressaltou desde logo: havia um irreversível carácter de imobilidade nele; a vida, de facto, partira dali, não chegara a completar uma dezena de anos, mas naquele instante aprendera a essência do existir, não lhe passou despercebida a ausência de lágrimas da viúva, pelo rosto apenas serenidade, dizia-se, amiúde, que ele gostava de esvaziar múltiplos copos, a agressividade só despertava em casa, elucidativo sobre o seu carácter e dos demais similares, ali estava ela sentada sobre um banquito, a cumprir o imperativo-social do último adeus, quase lhe ouvia os terrores a abandoná-la, daí a serenidade visível, naquele instante aprendera a essência do existir: nesta vida tão pouca coisa é o que parece, esperava encontrar dor, apenas compreendeu hipocrisia, não que fosse censurável, então para quê as figuras de negro, num uníssono queixume, à volta do caixão? O miúdo saiu dali com um curso intensivo de geografia da alma-humana, não se recorda de quanto tempo permaneceu naquele velório, guardou para a vida que saudade não entrara no sentir de qualquer um dos presentes, em verdade, nunca assistimos ao funeral do outro, vislumbramos sempre o nosso, o miúdo saiu dali com a certeza de que os desenhos-animados talvez não fossem assim tão coloridos, para continuar a meninice, atirou para um longínquo canto da sua alma este curso intensivo de geografia da alma-humana, hoje, quando ela “Faleceu a minha mãe,” ele prontamente “Os meus sentimentos,” tropeçou nesta sombria memória que, apesar de tudo, lhe garantira um diploma em natureza-humana, nem tudo é mau, quem menos sorri menos se engana, apesar da luz difusa daquela divisão, das figuras de negro, num uníssono queixume, à volta do caixão, aberto, onde estava o corpo, havia uma luz emergente na serenidade do rosto da viúva, resignação e esperança simultâneas, tão raro sentires paradoxais se fundirem, foi a isso que o miúdo, com menos de dez anos, assistiu, na altura atirou para um longínquo canto da sua alma, talvez aguardasse pelas palavras certas para o recordar.

sexta-feira, 17 de outubro de 2025

Da arte de viver

 


Lembro-me de uma frase, acho que a li em casa dos meus avós (“Um dia, quando eu morrer, não quero choros nem gritos…”), estava numa jarra pendurada na cozinha, sempre pensei, um dia, retirar dali a jarra para ler o resto da frase, ocultado pela parede, nunca o fiz, guardei para um amanhã que nunca amanheceu, o que se seguiria a “Um dia, quando eu morrer, não quero choros nem gritos…”?

Não me lembro do meu pai, nem da voz, sempre o que perdura em nós depois de tudo, dos gestos, da forma de andar, de ser, sobretudo de quem ele afinal era, nada, às vezes, na escola, talvez pela surpresa, talvez por simples crueldade, os colegas “Ao menos, lembras-te do nome? Ou nem isso?” Do nome, sim, e do rosto também, até há pouco, volta e meia, dava por mim a abrir uma caixa de sapatos onde a minha mãe guarda as fotos, há duas lá do meu pai, numa está abraçado à minha mãe, noutra comigo ao colo, e é tudo… Há quem ache pouco, mas, para mim, é tanto… Que fazer? Confesso que não visito a caixa de sapatos há muito, não lhe sinto a falta, estou naquela idade de virar costas a tudo, talvez seja por isso, a minha mãe quase diariamente “Estás insuportável! Entraste mesmo na fase do armário…”, certa tarde, ao regressar a casa, via-a dentro de um carro com um sujeito, ele em gestos lentos, numa artificialidade teatral, ela com uma alegria incontida, percebi que a sua carência se desmoronava, sempre lhe reconheci uma indisfarçável carência da palavra ao acto, quantas vezes, à noite, na companhia da caixa de sapatos, aberta, na cama, cheguei a ouvi-la soluçar, como se pedisse ao passado que corresse para a abraçar, nesses momentos, recolhia-me no meu quarto e por aí ficava, nunca falámos do conteúdo daquela caixa de sapatos, talvez por pudor, talvez pelo receio de uma carência demasiada, talvez por uma competição velada para saber quem primeiro abraçava o passado…

Certa tarde, estava a três meses de terminar o liceu, o sujeito do carro dentro de casa com a minha mãe, desta vez, ambos com gestos apressados e espontâneos, estavam de saída, não me escapou os cabelos molhados, pois, a carência sempre se desmoronara, até que a presença dele se tornou uma constante, os meus avós, primeiro, circunspectos, afinal, eram os principais investidores do nosso lar, a minha mãe, digamos, não acertava com a vocação profissional, daí que coleccionasse empregos e alguns investimentos, falhados, é certo, mas ainda assim onerosos, o que mais tenho presente é o café, talvez por ser o último, era relativamente perto de nossa casa, tinha até uma boa esplanada, contudo, não chegou a oito meses, no último momento conseguiu trespassá-lo, mas sem rever grande parte do investimento, a certa altura, fechou-se em casa, falou em depressão, as duas empregadas impacientes, os atrasos nos seus ordenados passaram a norma, numa manhã solarenga de Julho, não apareceram, o café fechado, foi uma vizinha, a caminho do mercado, que deu conta, ao saber disto, vi-a ir até à casa-de-banho, engolir metade de uma lamela (soube, mais tarde, das propriedades dos ansiolíticos e dos antidepressivos), correr o estore do quarto e deitar-se, os meus avós, uma vez mais, acorreram a solucionar ordenados em atraso, metades de lamelas e estores corridos… Mas, desta vez, não sei porquê, percebi-lhes uma singular prostração face ao sujeito do carro, como se aquela paisagem, de cabelos molhados, lhes fosse familiar, daí a súbita imobilidade…

De facto, a presença do sujeito do carro tornou-se demasiado constante, ao ponto de, num domingo à tarde, entrar munido de duas malas, perante aquele quadro, só me ocorreu pensar que a minha mãe desistira definitivamente de abraçar o passado, fiquei para ali, no sofá, distante da tristeza e da alegria, a estranhar-me pela súbita indiferença com que assistia a tudo, nem me levantei para o cumprimentar, limitei-me a sorrir-lhe de onde estava, não podia mais, não queria mais… Desde aquelas duas malas, os meus avós subtraíram-se, não percebi o porquê, teve de me ser apresentado, foi o tempo quem se encarregou de tal, apesar de tudo, os primeiros tempos sem nada a registar, o único facto a caixa de sapatos que permaneceu num abandono de sombras debaixo da cama, sem dúvida, a minha mãe desistira definitivamente (?) de abraçar o passado…

Certo dia, acho que de fim-de-semana, gritos logo de manhã, o almoço silencioso, mais gritos de tarde, não sei porquê lembrei-me de que não os via sair de cabelos molhados há algum tempo, os gritos, lá por casa, passaram a regra, do telefone à caixa-do-correio tudo passava pelo crivo inquisitorial do sujeito do carro, a vida da minha mãe desenrolava-se sob o seu olhar, decidi, neste ponto, ir para casa dos meus avós. Certa tarde, uma vizinha, regressava eu da escola, atravessa-se no meu caminho, insiste para que a acompanhe até casa, eu, primeiro, admirada com aquele súbito interesse por mim, depois, algo no meu sentir a agitar-se e uma trémula questão a brotar-me “Passa-se alguma coisa…? Foi com a minha mãe…?” Ela baixou os olhos, estava tudo dito.

Cheguei a vê-lo, ainda nesse dia, dentro do carro da polícia. Depois disso, só me interessou a pena, chegou a pouco mais de uma dezena de anos… A minha foi perpétua, desde então, não há semana em que não visite a caixa de sapatos, abro-a e disponho as fotos por cima da colcha: fico a olhá-las e, por vezes, lembro-me, não sei porquê, dos velhos nos jardins da cidade, entre pombos ávidos e sombras indolentes, em conversas do ontem para calar a dor do hoje, de vez em quando, fecham os olhos, numa súplica muito sua, para que o passado os abrace, nem que seja por menos de um minutinho… Há quem ache pouco, mas, para mim, é tanto…

domingo, 12 de outubro de 2025

Hoje não me apetece respirar…

 


Hoje trouxe esta ideia comigo da almofada, acho que me surgiu entre sonos, “Revisitar um lugar onde fui outro”, algures por aí, percebi que os anos não me esqueceram quando, há uns dias, dei por mim a mandar calar todos para ouvir o Telejornal, até me assustei, “Eu queria ouvir o Telejornal”, mas isso só interessa aos velhos, pensava eu em criança, e logo adicionava outra certeza, “Eu nunca hei-de ouvir um Telejornal”, afinal, para quê? Aquilo não tem interesse nenhum, só via uns sujeitos de fato, aborrecidíssimos, que não se calavam… Nem vislumbres de heróis, lutas dramáticas, suspense, tudo pintado com a cor da meninice, e a minha certeza: “Eu nunca hei-de ouvir um Telejornal”. Corri para um espelho, e por ali me quedei, atónito, “Estarei a ficar velho?” ou “Afinal, que idade tenho eu?”, estas e outras questões por mim, estarrecido com os auspícios de uma evidência nascida do acaso (“Eu queria ouvir o Telejornal”), estarei eu a ficar aborrecidíssimo? Será que não me calo? Embora nunca use fato… De repente, a caminhar pela minha memória, a imagem de um vizinho que, volta e meia, entrava no barbeiro do bairro, sentava-se, fechava os olhos, ali ficava, durante o que, para si, seria necessário, o corte de cabelo não se concretizava, apesar disso, pagava e, por fim, saía, houve dias em que ali entrou, pelo menos, duas vezes, quando soube disto, não me contive, questionei o porquê lá em casa, a mão do meu pai pelo meu ombro e, com uma naturalidade desarmante, disse-me: “Porquê esse espanto? Há lugar no mundo mais confortável que a cadeira de um barbeiro?” Confesso, neste preciso momento, em que escrevo estas linhas, que o espanto de então ainda não partiu de mim… Aqui permanece com todo o seu fulgor: “Há lugar no mundo mais confortável que a cadeira de um barbeiro?” Julgo que não. Meu pai ainda acrescentou uma frase, “Quando tiveres de tomar decisões importantes, quando fores grande, procura sempre um sítio confortável para o fazeres”, porém, aquela pergunta (“Há lugar no mundo mais confortável que a cadeira de um barbeiro?”), nesse momento, submergira-me, mais tarde, soube que esse vizinho era juiz, dava longos passeios pelo bairro e arredores, sempre muito direito, de mãos atrás das costas, das nuvens da minha meninice tentava perscrutar-lhe as cores do pensar, tinha uma aura de profeta, não sei se pelas barbas brancas, se pelo ar sofrido de quem olha fontes de lágrimas, prometi a mim mesmo que iria estar mais atento aos passos deste profeta, certa tarde, uma bola rematada para longe, assim que o vejo sair do prédio e a dirigir-se para a barbearia, prontifico-me a ir buscá-la, num repente, corro desalmadamente rua fora, até à porta da barbearia, recolho a bola, presa debaixo de um carro, e fico a vê-lo ali entrar, uma cadeira ocupada, a outra vaga, o barbeiro faz-lhe sinal para se sentar, ele tira o casaco, pendura-o no cabide, e senta-se, sempre muito direito, reparei que fechou, de imediato, os olhos, nisto, gritos por mim, pela bola, faço-lhes sinal que já vou, mas os gritos impacientam-se, atiro-lhes a bola como bálsamo e persisto com o profeta sentado de olhos fechados, entretanto, do fundo da rua, os gritos aligeiram-se, mas ainda insistem por mim, antes de regressar àquele importantíssimo dérbi, assisto ao rito de preparação do corte de cabelo, embora saiba que não se irá concretizar, o profeta, impassível, de olhos fechados, talvez num diálogo que o direccione para uma melhor resolução, quem sabe? Regressei ao jogo, retomei o meu posto, ainda o vi passar, muito direito, mãos atrás das costas, talvez fosse o único a seguir-lhe os passos, os outros a atenção só com a bola, pouco mais, nunca lhes falei de profetas, cadeiras de cabeleireiro, olhos fechados e tomadas de decisão… Para quê? Tenho a certeza de que não me iriam compreender. Há dias em que sou eu a regressar entardecido a casa, tento, por vezes fico-me pela tentativa, um sorriso, sempre é uma brisa que nos relembra outras paragens, talvez lugares onde a cabeça pese menos à almofada, ela frenética com o jantar e os miúdos, ainda o telefone, insaciável, os avós, o jantar das crianças, os nutrientes necessários, o próximo fim-de-semana, a comunhão da mais nova, o vestido, eu a pensar que ainda faltam quatro meses, mas só a pensar, nem uma vírgula ouso articular, ainda tenho um relatório pela frente, que me vai levar, no mínimo, duas horas, e amanhã desperto às seis, nestes momentos, percebo que tudo isto é um absurdo, uma corrida insaciável para um não sei quê, nem nos perguntam se queremos fazer parte deste absurdo, já fazemos antes de sermos, de novo, a caminhar pela minha memória, a imagem de um vizinho que, volta e meia, entrava no barbeiro do bairro, sentava-se, fechava os olhos, ali ficava, durante o que, para si, seria necessário, de novo, a mão do meu pai pelo meu ombro e, com uma naturalidade desarmante, a dizer-me: “Porquê esse espanto? Há lugar no mundo mais confortável que a cadeira de um barbeiro?”

sábado, 4 de outubro de 2025


 

 A vida é isto: no fim, nem as pedras se vão lembrar de nós. 

in Parece que foi ontem

sexta-feira, 3 de outubro de 2025

Parece que foi ontem

 


E é assim… Pois, sabe como é? A vida é isto mesmo! Um dia estamos lá em cima, e, de repente, caímos. Não há nada a fazer, temos é de nos levantar de novo e caminhar, custa, bem sei, mas não temos outra opção. Você, hoje, olha para mim e não imagina quanta gente tive à minha responsabilidade. É que não imagina mesmo! Eu era o responsável pelo sector do pessoal! Quase duas centenas de pessoas, isto só no distrito de Lisboa. Agora pense a nível nacional quantas seriam, pois é… Sabe, sinto falta daquilo, embora não fosse feliz. É curioso, não é? Sentir falta de algo que não nos traz felicidade, não sei como o dizer, hoje só me resta olhar o vazio de frente, naquela altura apenas o sentia andar à minha volta, talvez fosse isso, mas nunca o tinha enfrentado, muito menos olhos nos olhos como agora o faço. E olhe que não é fácil, nada fácil mesmo… Costuma-se dizer para aí que só damos valor às coisas quando as perdemos, eu repito, para quem me quiser ouvir, que sinto falta daquilo, embora não fosse feliz. Pois, como lhe tinha dito, sentia-o andar à minha volta (sim, o vazio), a sucessão de dias, invariável, o despertar sem sequer interromper um sonho (há quanto não me habitam sonhos?), logo olhos no relógio, desde então, senhor e servo estipulados, ela ainda ficava a dormir, nunca soube se ao acordar interrompia sonhos, também não soube encontrar essa questão para lhe colocar, a lentidão demasiada e cinzenta do trânsito, uma repetição obstinada de um ontem feito hoje, por vezes, e foram tantas, socorria-me de um calendário para me saber, por fim, o edifício, de tijolo, que nos engolia durante todo o dia que soava a uma existência, acho, ainda hoje, que uma parte da minha alma por ali ficou, sabe, é estranho, mas aquilo, de facto, engolia-nos, sempre alguma coisa por resolver, a vertigem da produção, olhos que não víamos, mas sabíamos que controlavam cada nosso movimento, apesar de tudo, e pelo que ouvia, o tipo nem era mau de todo, entretanto, o tempo caminhou, deu para nos sustentarmos, para pagar a casa, um carrito em segunda mão, ao Domingo íamos até Cascais comer um gelado, sabia o quanto ela gostava deste ritual, por norma, nessas ocasiões, envergava o seu mais recente vestido, até o passava de véspera, a seguir ao gelado, um passeio pelo paredão, nos últimos meses, é bem verdade, uma história cansada, isto, aquilo, os chineses, não vale a pena, ainda hoje, diante de mim, a cancela para baixo e a sirene calada… Durante mais de trinta anos, quando a sirene nos mandava trabalhar, eu já no meu posto. Sabe, orgulho-me particularmente disto, pensa que alguém deu valor? Acho que nem os tijolos se recordam de tal… A vida é isto: no fim, nem as pedras se vão lembrar de nós. Quando, lá por casa, o mês passou a durar mais, e eu próximo como nunca da Matemática, ela a afastar-se, a criticar a minha apatia, como se algum leme ao meu alcance, enfim, todas as manhãs fazia questão de me acordar, ainda gritava “Se eu vou trabalhar, ao menos acorda e finge que vais fazer alguma coisa”, às vezes, a dor vem de tanto lado que não sabemos o que nos dói mais, é um pouco isto, sem dúvida, durante mais de trinta anos respirámos lado a lado, e hoje, diante de mim, uma estranha… A vida é isto: no fim, nem as pedras se vão lembrar de nós. Muito subterraneamente, comecei a perceber onde íamos desaguar. Foi num Domingo, de tarde, não sei porquê, mas cada dia tem o seu próprio respirar, e o Domingo tem qualquer coisa de uma eternidade silenciosa, é estranho, bem sei, mas as sombras parecem colar-se ao chão, como se gritassem bem alto, na sua imobilidade, os sonhos que cada um enterrou… E é assim… Pois, sabe como é? A vida é isto mesmo! Um dia estamos lá em cima, e, de repente, caímos. Não há nada a fazer, temos é de nos levantar de novo e caminhar, custa, bem sei, mas não temos outra opção. Você, hoje, olha para mim e não imagina quanta gente tive à minha responsabilidade. Mas, dizia eu, foi num Domingo de tarde, o nosso carrito já partira em busca de uma terceira mão, Cascais agora mais longe, eu sentado à mesa com a Matemática, ela, de repente, da ombreira da porta, “Lamento, mas não posso mais”, virei-me, percebi-lhe uma mala em cada mão, sabe, estava já tão por terra que nem tentei, mesmo que, não conseguia, como se, num recanto de mim, uma voz sussurrasse “deixa-a ir”, como se percebesse a inevitabilidade de tal, o acontecer prévio ao ser, tudo sobreveio com uma lucidez dilacerante, parecia que me sentara no monte mais longínquo que o meu pensamento conseguira alcançar, daí via-me às voltas com a Matemática, não a da sobrevivência, pousada no tampo da mesa, mas a do orgulho que me fazia permanecer sentado, imóvel, a maquilhar a surpresa e a dor imensas por aquelas malas, por “Lamento, mas não posso mais”, por ser Domingo, de tarde, e o Domingo tem qualquer coisa de uma eternidade silenciosa, é estranho, bem sei, contudo, as sombras parecem colar-se ao chão, como se gritassem bem alto, na sua imobilidade, os sonhos que cada um enterrou… E tudo aconteceu sob a ombreira da porta. Se, ao menos, ainda as chaves, do carrito em segunda mão, pelo meu bolso, podia levantar-me, dizer-lhe “Espera! Põe o teu vestido, sim, esse mesmo, o mais recente, está passado desde ontem, e vamos até Cascais, comer um gelado, a seguir, damos um passeio pelo paredão, eu sei o quanto gostas deste ritual…”, ou será que me enganei? Tem razão, o que lá vai, lá vai, mas sabe, o mais importante, a certa altura, é que haja em nós algumas certezas, e o olhar para trás permita que o pensar do hoje repouse em lugares do ontem, uns chamam a isso memórias. Já não seria mau. O que lhe parece? Acha pouco? Para mim, é o suficiente. Sabe, a vida é isto: no fim, nem as pedras se vão lembrar de nós.


 

sábado, 27 de setembro de 2025

A Nininha

 


Hoje a Nininha completou sessenta Invernos, nem todos se podem vangloriar de somar Primaveras, é o seu caso, rasteira, maldizente, sabuja, até de estatura não se distancia muito do chão, o focinho está a meio-caminho entre uma mulher-a-dias e uma freira arrependida, a indumentária também oferece o seu contributo para este quadro, mobiliza-se por sombras e esquinas, rasteira, maldizente, sabuja, volta e meia surge de bandolete, o que lhe confere um ar ainda mais rural, como se a massa grisalha, que lhe preenche o cocuruto, necessitasse de tal ornamento, encostou-se a um desses trabalhos estatais onde o único requisito exigido é: um perfeito analfabeto-funcional; embora, como é evidente, a Nininha some outras distintas aptidões: rasteira, maldizente e sabuja; apesar da sua estatura não se distanciar muito do chão, a Nininha julga-se mais esperta que os demais, coloca uma expressão de seriedade, quando em diálogo, no entanto, a um olhar mais atento, tudo se desmorona ao reparar naquele ridículo ornamento, pois, a bandolete, que lhe confere um ar ainda mais rural, quem pode levar a sério uma criatura assim? Se quiserem encontrar a Nininha, no seu local de trabalho, procurem pelas sombras e esquinas, rasteira, maldizente, sabuja, apesar de tudo, enterneceu-me o nome com que pretende ser reconhecida: Ni-ni-nha... Como uma habitante das trevas, cuja estatura não se distancia muito do chão, as acções nem se tentam a erguer, pretende ser chamada por tal diminutivo: Ni-ni-nha?! Certas figuras femininas, ao perceber-lhes a maternidade, o primeiro pensamento que me assalta é Como alguém foi capaz de a engravidar? Esta tétrica figura entra destacadíssima nesta minha categoria, de facto, Como alguém foi capaz de a engravidar? Bem diz o povo: Para cada panela, há sempre uma tampa; apesar de tudo, custa-me a acreditar que, no caso da Nininha, fosse assim tão peremptório, a menos que também somasse Invernos, não se distanciasse muito do chão, rasteiro, maldizente, sabujo, ou talvez uma noite de copos ou qualquer outro incidente, a não ser que se tivesse encantado por uma bandolete e uma apetência pela ruralidade, hoje a Nininha completou sessenta Invernos, que mais se pode narrar desta tétrica figura? É difícil, mobiliza-se por sombras e esquinas, rasteira, maldizente, sabuja, cumpre ordens, é o que se espera de uma analfabeta-funcional, se detecta uma possível ameaça, rasteira, maldizente e sabuja, nas costas, verte todo o fel ao seu alcance, sem dúvida, a única arte onde se destaca: a maledicência; pela frente, o sorriso apatetado de uma figura por demais ridícula, talvez o tempo já se tenha encarregado de colocar alguém, no caminho da Nininha, para ensiná-la que também a sua esperteza não se distancia do chão, caro leitor, asseguro-vos deste facto, embora me continue a enternecer o Ni-ni-nha... Como não? E aquela ridícula bandolete, digníssima de um qualquer documentário sobre a ruralidade, o focinho a meio-caminho entre uma mulher-a-dias e uma freira arrependida, os passos ligeiros e nervosos sob a luz, é compreensível para uma criatura que se mobiliza por sombras e esquinas...