Livros

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sexta-feira, 29 de abril de 2022


 

O tempo é o homem.

in Do outro lado do rio, há uma margem

quinta-feira, 28 de abril de 2022

Quantas conversas encontram o amanhã?


 

Há lugares que são o que sempre foram. Talvez por ali permanecer uma parte de nós pronta, sempre que regressamos, a sair-nos ao caminho e a relembrar a sua existência. Como se fôssemos partes largadas no mundo. E sempre a tola ilusão de um eu. Não, somos, de facto, partes largadas no mundo, umas em sorrisos quentes, iluminadas por um sol adentro através de largos vidros, outras em recato, numa sombra perpétua de um qualquer enviesado recanto, e sempre a ilusória ambição de um compreender, como se fosse possível reunir sombras perpétuas de enviesados recantos e sóis adentro através de largos vidros no espaço de uma mesma mesa. Hoje reentra naquele café, sim, aquele que tem mesmo um candeeiro, no passeio, diante da entrada, a cada passo a procura de um rosto conhecido, sempre assim foi, a carência de espelhos, mas nada, talvez pela hora, não, talvez pelos anos de permeio, desde que tivera, no passeio, de contornar o candeeiro, para ali entrar, mas entrava, nessa altura, num outro café, à sua passagem mãos que se levantavam, outras no calor de uma saudação que desconhecia amanhãs, e como ele conhecia aquela geografia, cada mesa um continente, talvez pela singularidade de sonhos que as povoavam, logo à entrada, do lado direito, sentava-se aquela morena, olhos para o rectângulo de vidro que ilustrava a rua, talvez, naquele tempo todo que ali estava, com um café diante de si, não se tivesse apercebido do candeeiro, no passeio, diante da entrada, é possível, o seu olhar ia além disso, esperava por alguém, que, a essa hora, se despedia da namorada, em beijos apaixonados, com juras de amanhãs de mãos dadas, ela, com o café à frente, sabia das juras, das despedidas, dos beijos apaixonados, mas sabia também que, assim que ele aparecesse, se iria sentar à sua frente, com gestos aquém teatralidade, por outras palavras, gestos despidos de ilusão, confessar-lhe dúvidas e receios pelo amanhã, suplicar-lhe compreensão, ela, entretanto, adicionava uma chávena vazia à outra há muito arrefecida, levantava-se, apontava para as moedas sobre a mesa, por trás do balcão um movimento de anuência, saía, contornava, sem se aperceber, o candeeiro, no passeio, diante da entrada, ele seguia-a, após o candeeiro, ela numa pausa para cadenciarem passos e palavras, por esta altura, a mão da noite descia uma qualquer promessa de sonhos sobre a terra, aqui era o momento em que se silenciavam para se olharem, talvez nunca falassem tanto, é curioso, o amanhã nunca entrava nestes diálogos, retomavam a marcha, sim, numa cadência muito deles, por fim, diante da porta da casa dela, momentos para sentir a noite, a luz que o dia obscurece, horizontes de promessas, ela a entrar, a segurar-lhe a porta, ele, uma vez mais, segue-a, não acendem luzes, sempre o sentir da noite, recorda-lhe o rosto na delicadeza de dedos tacteantes, ela retribui o gesto, e percorre-lhe a face no possível de uma eternidade feita gesto, sentam-se, como se uma capitulação, no largo sofá, a janela da divisão aberta, a cortina relembra a brisa nocturna numa lentidão graciosa, por vezes, limitam-se a olhar a cortina, talvez por lhes ensinar a noite, o momento, sim, é verdade, entre eles nunca se pronunciou amanhã.



 

segunda-feira, 18 de abril de 2022

Tudo é sempre uma outra coisa

 



Há dias que não queremos que amanheçam. Mas que nos acabam sempre por bater à porta. Como se sempre nos soubessem a morada. Pelos apressados passos exteriores, que se aproximavam num galope de fatalidade, amanheceu um indesejado. Eles ainda na distância de um sono, a campainha em gritos alados por uma tempestade próxima, começam a perceber-se, Estás a ouvir? Será que aconteceu alguma coisa? Um pé já no soalho, ela ainda Mas quem será? Que horas são? Ele já com os dois pés nos chinelos, a levantar-se, Vou ver quem é. Só espero que não seja brincadeira de miúdos ou engano. Nisto, ela também com um pé já amanhecido, ele a aproximar-se da porta de entrada, a estranhar a pluralidade de vozes no exterior, toques de campainha e pancadas demasiado firmes na porta, uma estranha sintonia dissonante, nada por ali de turvo ou clandestino, de súbito, ele no receio de se aproximar, como se temesse um qualquer desígnio há muito sufragado, encosta-se à parede, ela também já no corredor, neste momento a seu lado, a mão a passear-lhe pelos cabelos, num esforço sisífico por ocultar uma preocupação transparente na voz, O que se passa? Quem será…? Não vais ver…? Ele a deixar a parede, campainha e porta numa sintonia crescente, a multiplicidade de vozes mais próxima, a espreitar, do outro lado Se não abrir, arrombamos a porta, há derrotas que se limitam a dar-nos a mão e a conduzir-nos para longe da arena, como se nos aguardassem desde a noite dos tempos, e nós, num mutismo espantado, limitamo-nos a seguir-lhes os passos, como se compreendêssemos que há cálices que fatalmente temos de sorver, antes de abrir, ele olha-a, no meio do corredor, nem a luz acenderam, num desamparo de passeio à chuva, uma orfandade outonal traduz-se-lhe no olhar que cai, apesar de tudo com leveza, no soalho escurecido… Assim que começa a rodar a chave, as vozes exteriores cessam, como se inspirassem para redobrar as forças do ataque, por fim, a porta abre-se, diante dele surge um papel, acompanhado de uma voz firme (Leia!), só reparou no cabeçalho, Tribunal…, de seguida, avançam casa adentro, eles permaneceram nos pontos exactos onde estavam, como se padecessem de uma invisibilidade súbita, o sujeito que tinha o papel na mão, virou-se para eles Não querem proceder voluntariamente ao pagamento do crédito vencido dos cartões? Está aqui um representante do banco. Eles entreolham-se, enquanto ombros ascendem guindados por um desamparo excessivo, e dizem palavras impronunciadas Sim, queríamos pagar. Mas a fábrica fechou. O desemprego é menos do que ganhávamos. Agora, pelo atraso nos cartões, devemos o dobro. Isso não é justo. Sim, queríamos pagar, mas apenas o que devemos. Todavia, sabemos que aqui tal não é possível. Por isso, é que a polícia vos acompanha. Móveis começam a despir a casa, levados na indiferença de quem desconhece o momento, primeiro foram os sofás, o rosto dela a relembrar risos e serões, ele a acompanhá-la nesse passeio pelo ontem, a seguir, a televisão, cadeiras, aparador, quadros, o desfile parecia-lhes interminável, a mão dela a encontrar o porto da dele, aí repousa, viram costas ao presente, sim, olham o ontem, por vezes, na vida, é o que resta, talvez por aí ainda um sentido, certa tarde, após a pausa do almoço, cada um com o seu cheque de vencimento, a depositá-lo com um sorriso para o amanhã, do outro lado do balcão, um dedo a apontar-lhes para uma cartolina publicitária, até então invisível, talvez pelo excesso das cores, Já viram as vantagens do nosso visa? Oferece condições únicas! Além de vir acompanhado de múltiplos seguros no caso de…, e de… Quando regressam do ontem, compreendem o papel que lhes foi deixado. Uma folha A4 com a lista do saque. Muito pouco para o deserto que se lhes abriu. Ela, por fim, cede, e senta-se no chão. Num olhar sem tempo. Ele acompanha-a, e senta-se a seu lado. Assim ficam durante o necessário. Talvez até compreenderem que o respirar vive na casa do amanhã.

sábado, 16 de abril de 2022



Perdemo-nos tanto a olhar o longe, que não ouvimos a súplica perto.

in Do outro lado do rio, há uma margem


segunda-feira, 4 de abril de 2022

Afinal, a vida é dizer adeus


 

Caminha de olhar na calçada, enquanto a mão direita percorre a alça da carteira, como se a familiaridade daquela textura lhe apaziguasse uma qualquer estranheza recente. Quando se percebe próxima do destino, o olhar deixa aquele excesso de brancura, talvez pela hora, talvez por si, talvez pelo olhar, e procura abrigo no porto de um rosto. Já chegara, ali estava, sentada a uma mesa, cigarro entre indicador e médio, substitutos escrupulosos dos lábios, sorri para o movimento nervoso da carteira, que avança ao seu encontro. A carteira, por fim, descansa na calçada quente da tarde, enquanto o rosto se despe de uns óculos escuros, máscara do hoje, por ali nem risos nem lágrimas, apenas um hermetismo espelhado que acentua a horizontalidade inexpressiva de uns lábios, os óculos agora sobre a mesa desvelam um olhar que sente em demasia, o empregado, de radar apurado, aproxima-se, o olhar, em pudor, a descer, enquanto a voz se eleva tenuemente, Um café, por favor, entretanto, o cigarro oscila entre lábios e dedos, agora com maior frequência, por fim, pergunta Então, que novidades? Antes de responder, sempre a olhar o tampo da mesa, dedos nervosos numa das hastes, os óculos em movimento de embarcação por mar encapelado, Foi lá a casa ontem à noite. E eu sei que a outra estava no carro. Da varanda, só lhe via os joelhos. Mas foi o suficiente… O cigarro, neste momento, imóvel, a sugerir-lhe que esquecesse os joelhos, que assinasse o divórcio, sim, a vida continua, há um filho por criar, os óculos continuam a enfrentar uma borrasca, contrapõem os dez anos de casamento, o facto de ele ter dito que ia trabalhar para o exterior, afinal já um outro lar (Como é possível um homem pisar solos tão distintos?), esta ubiquidade persistiu por dois anos, tudo tem um tempo, sobretudo os milagres, um telefonema anónimo, a voz mal disfarçada da vizinha do rés-do-chão esquerdo, Esteja atenta. O seu marido tem outra, nessa noite, ela confronta-o, assim que ele fecha a porta de casa, há questões que só se respondem com o olhar, esta foi um exemplo, foi ela quem se sentou, ele permaneceu na entrada, Já era para te ter dito há mais tempo. Peço desculpa, e ela a pensar, pedir desculpa por isto, como se pisasse alguém por descuido, ninguém pisa uma alma inadvertidamente, aqui ela levantou o olhar à altura da vergonha dele, Quando tencionavas dizer-me? Ele a olhar o tapete da entrada, O mais depressa possível, conseguiu balbuciar, ela, depois, compreendeu que a velocidade é sempre subjectiva, nessa noite, ele já não dormiu em casa, ela deixou de dormir, uma noite, ele liga-lhe para ir buscar as suas coisas, ela marca uma tarde, embala tudo o que lhe pertence, ainda levou uns dias, antes de fechar o último caixote, com aquela desagradável fita adesiva castanha, espelho de mudanças do instante, ainda pensou em fechar-se no caixote, sim, talvez assim não se esquecesse dela, afinal, ele não vinha buscar tudo o que lhe pertencia? Mas resistiu. No caixote apenas se fecharam ainda alguns sentimentos caídos sob uma forma líquida, sim, esses também lhe pertenciam. Da última vez que o telefone tocou, a palavra mais pronunciada foi divórcio, mas as contas, os empréstimos comuns, a casa, o filho, por essa altura, de novo, a voz do rés-do-chão esquerdo a elevar-se, Já está grávida de três meses, a dor numa espiral ascendente, o olhar a percorrer as fotografias da cómoda da entrada, por ali não se ouviam vozes de rés-do-chão, nem sinais daquela desagradável fita adesiva castanha, espelho de mudanças do instante, apenas olhares que se perdiam no instante e palavras em sussurros melodiosos, demorou o seu tempo, mas o telefone insistiu em chamá-la, uma vez mais, a palavra divórcio, ela Tudo bem. Assim que as contas estiverem arrumadas, a olhar a cómoda da entrada, agora, por ali, uma jarra com flores silvestres, nem sinal de fotografias com olhares do instante e palavras sussurradas em melodia, talvez estejam para sempre encerradas num caixote fechado com aquela desagradável fita adesiva castanha. É possível. Há quem chame a isso memória.


 

...a essência do amor está nos gestos e não nas palavras...

in Nascer