O tempo é o homem.
in Do outro lado do rio, há uma margem
Há lugares que são o que sempre
foram. Talvez por ali permanecer uma parte de nós pronta, sempre que
regressamos, a sair-nos ao caminho e a relembrar a sua existência. Como se
fôssemos partes largadas no mundo. E sempre a tola ilusão de um eu. Não, somos, de facto, partes
largadas no mundo, umas em sorrisos quentes, iluminadas por um sol adentro
através de largos vidros, outras em recato, numa sombra perpétua de um qualquer
enviesado recanto, e sempre a ilusória ambição de um compreender, como se fosse
possível reunir sombras perpétuas de enviesados recantos e sóis adentro através
de largos vidros no espaço de uma mesma mesa. Hoje reentra naquele café, sim,
aquele que tem mesmo um candeeiro, no passeio, diante da entrada, a cada passo
a procura de um rosto conhecido, sempre assim foi, a carência de espelhos, mas
nada, talvez pela hora, não, talvez pelos anos de permeio, desde que tivera, no
passeio, de contornar o candeeiro, para ali entrar, mas entrava, nessa altura,
num outro café, à sua passagem mãos que se levantavam, outras no calor de uma
saudação que desconhecia amanhãs, e como ele conhecia aquela geografia, cada
mesa um continente, talvez pela singularidade de sonhos que as povoavam, logo à
entrada, do lado direito, sentava-se aquela morena, olhos para o rectângulo de
vidro que ilustrava a rua, talvez, naquele tempo todo que ali estava, com um
café diante de si, não se tivesse apercebido do candeeiro, no passeio, diante
da entrada, é possível, o seu olhar ia além disso, esperava por alguém, que, a
essa hora, se despedia da namorada, em beijos apaixonados, com juras de amanhãs
de mãos dadas, ela, com o café à frente, sabia das juras, das despedidas, dos
beijos apaixonados, mas sabia também que, assim que ele aparecesse, se iria
sentar à sua frente, com gestos aquém teatralidade, por outras palavras, gestos
despidos de ilusão, confessar-lhe dúvidas e receios pelo amanhã, suplicar-lhe
compreensão, ela, entretanto, adicionava uma chávena vazia à outra há muito
arrefecida, levantava-se, apontava para as moedas sobre a mesa, por trás do
balcão um movimento de anuência, saía, contornava, sem se aperceber, o
candeeiro, no passeio, diante da entrada, ele seguia-a, após o candeeiro, ela
numa pausa para cadenciarem passos e palavras, por esta altura, a mão da noite
descia uma qualquer promessa de sonhos sobre a terra, aqui era o momento em que
se silenciavam para se olharem, talvez nunca falassem tanto, é curioso, o
amanhã nunca entrava nestes diálogos, retomavam a marcha, sim, numa cadência
muito deles, por fim, diante da porta da casa dela, momentos para sentir a
noite, a luz que o dia obscurece, horizontes de promessas, ela a entrar, a
segurar-lhe a porta, ele, uma vez mais, segue-a, não acendem luzes, sempre o
sentir da noite, recorda-lhe o rosto na delicadeza de dedos tacteantes, ela
retribui o gesto, e percorre-lhe a face no possível de uma eternidade feita
gesto, sentam-se, como se uma capitulação, no largo sofá, a janela da divisão
aberta, a cortina relembra a brisa nocturna numa lentidão graciosa, por vezes,
limitam-se a olhar a cortina, talvez por lhes ensinar a noite, o momento, sim,
é verdade, entre eles nunca se pronunciou amanhã.
Há dias que não queremos que
amanheçam. Mas que nos acabam sempre por bater à porta. Como se sempre nos
soubessem a morada. Pelos apressados passos exteriores, que se aproximavam num
galope de fatalidade, amanheceu um indesejado. Eles ainda na distância de um
sono, a campainha em gritos alados por uma tempestade próxima, começam a
perceber-se, Estás a ouvir? Será que aconteceu alguma coisa? Um pé
já no soalho, ela ainda Mas quem será?
Que horas são? Ele já com os dois pés nos chinelos, a levantar-se, Vou ver quem é. Só espero que não seja
brincadeira de miúdos ou engano. Nisto, ela também com um pé já amanhecido,
ele a aproximar-se da porta de entrada, a estranhar a pluralidade de vozes no
exterior, toques de campainha e pancadas demasiado firmes na porta, uma
estranha sintonia dissonante, nada por ali de turvo ou clandestino, de súbito,
ele no receio de se aproximar, como se temesse um qualquer desígnio há muito
sufragado, encosta-se à parede, ela também já no corredor, neste momento a seu
lado, a mão a passear-lhe pelos cabelos, num esforço sisífico por ocultar uma
preocupação transparente na voz, O que se
passa? Quem será…? Não vais ver…? Ele a deixar a parede, campainha e porta
numa sintonia crescente, a multiplicidade de vozes mais próxima, a espreitar, do
outro lado Se não abrir, arrombamos a
porta, há derrotas que se limitam a dar-nos a mão e a conduzir-nos para
longe da arena, como se nos aguardassem desde a noite dos tempos, e nós, num
mutismo espantado, limitamo-nos a seguir-lhes os passos, como se compreendêssemos
que há cálices que fatalmente temos de sorver, antes de abrir, ele olha-a, no
meio do corredor, nem a luz acenderam, num desamparo de passeio à chuva, uma
orfandade outonal traduz-se-lhe no olhar que cai, apesar de tudo com leveza, no
soalho escurecido… Assim que começa a rodar a chave, as vozes exteriores
cessam, como se inspirassem para redobrar as forças do ataque, por fim, a porta
abre-se, diante dele surge um papel, acompanhado de uma voz firme (Leia!), só reparou no cabeçalho, Tribunal…, de seguida, avançam casa
adentro, eles permaneceram nos pontos exactos onde estavam, como se padecessem
de uma invisibilidade súbita, o sujeito que tinha o papel na mão, virou-se para
eles Não querem proceder voluntariamente
ao pagamento do crédito vencido dos cartões? Está aqui um representante do banco. Eles entreolham-se, enquanto
ombros ascendem guindados por um desamparo excessivo, e dizem palavras
impronunciadas Sim, queríamos pagar. Mas
a fábrica fechou. O desemprego é menos do que ganhávamos. Agora, pelo atraso
nos cartões, devemos o dobro. Isso não é justo. Sim, queríamos pagar, mas
apenas o que devemos. Todavia, sabemos que aqui tal não é possível. Por isso, é
que a polícia vos acompanha. Móveis começam a despir a casa, levados na
indiferença de quem desconhece o momento, primeiro foram os sofás, o rosto dela
a relembrar risos e serões, ele a acompanhá-la nesse passeio pelo ontem, a
seguir, a televisão, cadeiras, aparador, quadros, o desfile parecia-lhes
interminável, a mão dela a encontrar o porto da dele, aí repousa, viram costas
ao presente, sim, olham o ontem, por vezes, na vida, é o que resta, talvez por
aí ainda um sentido, certa tarde, após a pausa do almoço, cada um com o seu
cheque de vencimento, a depositá-lo com um sorriso para o amanhã, do outro lado
do balcão, um dedo a apontar-lhes para uma cartolina publicitária, até então
invisível, talvez pelo excesso das cores, Já
viram as vantagens do nosso visa? Oferece condições únicas! Além de vir
acompanhado de múltiplos seguros no caso de…, e de… Quando regressam do
ontem, compreendem o papel que lhes foi deixado. Uma folha A4 com a lista do
saque. Muito pouco para o deserto que se lhes abriu. Ela, por fim, cede, e
senta-se no chão. Num olhar sem tempo. Ele acompanha-a, e senta-se a seu lado. Assim
ficam durante o necessário. Talvez até compreenderem que o respirar vive na
casa do amanhã.
Caminha de olhar na calçada, enquanto a mão direita percorre a alça da carteira, como se a familiaridade daquela textura lhe apaziguasse uma qualquer estranheza recente. Quando se percebe próxima do destino, o olhar deixa aquele excesso de brancura, talvez pela hora, talvez por si, talvez pelo olhar, e procura abrigo no porto de um rosto. Já chegara, ali estava, sentada a uma mesa, cigarro entre indicador e médio, substitutos escrupulosos dos lábios, sorri para o movimento nervoso da carteira, que avança ao seu encontro. A carteira, por fim, descansa na calçada quente da tarde, enquanto o rosto se despe de uns óculos escuros, máscara do hoje, por ali nem risos nem lágrimas, apenas um hermetismo espelhado que acentua a horizontalidade inexpressiva de uns lábios, os óculos agora sobre a mesa desvelam um olhar que sente em demasia, o empregado, de radar apurado, aproxima-se, o olhar, em pudor, a descer, enquanto a voz se eleva tenuemente, Um café, por favor, entretanto, o cigarro oscila entre lábios e dedos, agora com maior frequência, por fim, pergunta Então, que novidades? Antes de responder, sempre a olhar o tampo da mesa, dedos nervosos numa das hastes, os óculos em movimento de embarcação por mar encapelado, Foi lá a casa ontem à noite. E eu sei que a outra estava no carro. Da varanda, só lhe via os joelhos. Mas foi o suficiente… O cigarro, neste momento, imóvel, a sugerir-lhe que esquecesse os joelhos, que assinasse o divórcio, sim, a vida continua, há um filho por criar, os óculos continuam a enfrentar uma borrasca, contrapõem os dez anos de casamento, o facto de ele ter dito que ia trabalhar para o exterior, afinal já um outro lar (Como é possível um homem pisar solos tão distintos?), esta ubiquidade persistiu por dois anos, tudo tem um tempo, sobretudo os milagres, um telefonema anónimo, a voz mal disfarçada da vizinha do rés-do-chão esquerdo, Esteja atenta. O seu marido tem outra, nessa noite, ela confronta-o, assim que ele fecha a porta de casa, há questões que só se respondem com o olhar, esta foi um exemplo, foi ela quem se sentou, ele permaneceu na entrada, Já era para te ter dito há mais tempo. Peço desculpa, e ela a pensar, pedir desculpa por isto, como se pisasse alguém por descuido, ninguém pisa uma alma inadvertidamente, aqui ela levantou o olhar à altura da vergonha dele, Quando tencionavas dizer-me? Ele a olhar o tapete da entrada, O mais depressa possível, conseguiu balbuciar, ela, depois, compreendeu que a velocidade é sempre subjectiva, nessa noite, ele já não dormiu em casa, ela deixou de dormir, uma noite, ele liga-lhe para ir buscar as suas coisas, ela marca uma tarde, embala tudo o que lhe pertence, ainda levou uns dias, antes de fechar o último caixote, com aquela desagradável fita adesiva castanha, espelho de mudanças do instante, ainda pensou em fechar-se no caixote, sim, talvez assim não se esquecesse dela, afinal, ele não vinha buscar tudo o que lhe pertencia? Mas resistiu. No caixote apenas se fecharam ainda alguns sentimentos caídos sob uma forma líquida, sim, esses também lhe pertenciam. Da última vez que o telefone tocou, a palavra mais pronunciada foi divórcio, mas as contas, os empréstimos comuns, a casa, o filho, por essa altura, de novo, a voz do rés-do-chão esquerdo a elevar-se, Já está grávida de três meses, a dor numa espiral ascendente, o olhar a percorrer as fotografias da cómoda da entrada, por ali não se ouviam vozes de rés-do-chão, nem sinais daquela desagradável fita adesiva castanha, espelho de mudanças do instante, apenas olhares que se perdiam no instante e palavras em sussurros melodiosos, demorou o seu tempo, mas o telefone insistiu em chamá-la, uma vez mais, a palavra divórcio, ela Tudo bem. Assim que as contas estiverem arrumadas, a olhar a cómoda da entrada, agora, por ali, uma jarra com flores silvestres, nem sinal de fotografias com olhares do instante e palavras sussurradas em melodia, talvez estejam para sempre encerradas num caixote fechado com aquela desagradável fita adesiva castanha. É possível. Há quem chame a isso memória.