Livros

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terça-feira, 31 de março de 2020


… persisto a olhá-la, aparentava a minha idade, ia na direcção das ruas pedonais, antes de se diluir por completo do meu horizonte, era o único que ainda lhe acompanhava os passos, olhou para trás como se perguntasse pelos meus sonhos.

in Deslumbramento

sexta-feira, 27 de março de 2020

Só espero que encontres um lugar onde reclinar a cabeça



A primeira vez que nos cruzámos foi num dia demasiado chuvoso, logo pela manhã, estava eu de saída para o trabalho. Como sempre, saía em cima da hora. Estranho hábito este da lusitanidade: o de nunca se adiantar; como se as coisas do mundo, de uma forma sublimada, aguardassem por aquele que há-de chegar. Mas voltando a essa manhã, em particular. Não foi necessário abrir os estores, para compreender o uso de gabardina e de guarda-chuva. O barulho foi-me suficiente. Mas, assim que abri o estore do meu quarto, apercebi-me da aflição pintada de cinzento, de quem procurava, àquela hora, mobilizar-se entre ruas de rios, passeios cobertos de copas negras, filas metálicas pintadas de luzes, tudo sob o compasso da incessante água em queda e de uma contínua oscilação surda nos vidros das viaturas. Ao deixar a janela, deparo-me com a minha cama, ainda quente, ainda desfeita, que me lança um grito ensurdecedor, de sereia abandonada, e eu prestes a naufragar, talvez devido ao temporal avistado, mas, num último momento, totalmente sem saber como, consigo virar o leme do navio, e encontrar a porta de saída do quarto, e evitar aquele tépido adamastor. Claro que esta manobra salvífica, e consequente arrependimento, moldaram o meu humor para aquele dia. Assim como para muitos outros. Começar um dia arrependido: um degrau para a salvação… Se os contabilizar, já estarei para além do sistema solar há muito! Mas desse dia em particular, que insiste, ainda hoje, em regressar com uma nitidez cinematográfica à minha mente, guardo o meu primeiro encontro com ele. 

Estava já à porta do prédio, entre o abotoar de mais um botão da gabardina (caso sempre desnecessário), sacudir o guarda-chuva (para quê, se ainda estava seco?), olhar de novo a rua numa expressão de cordeiro sacrificial, no fundo, tudo provinha do sapiente instinto de sobrevivência que me sussurrava inclementemente ao ouvido: És mesmo um parvalhão, vai mas é ter com a sereia, antes que naufragues algures entre copas negras, ruas de rios, ou paradas metálicas uivantes.

Mas assim que abro a pesada porta metálica do prédio, o meu olhar tropeça nele. Estava encostado à porta, aproveitava aquele exíguo espaço a salvo das águas, ainda assim molhado, emanava o cansaço inato de um viajante, levantou a cabeça e olhou-me. Assim que me apercebo do seu olhar, compreendi a importância daqueles álbuns de fotografias da nossa infância, que, num orgulho sempre fugidio, as nossas mães mostravam às amigas em tardes de sábado balizadas entre chá e bolachas de manteiga. Não reagi logo. Talvez quisesse saborear, algures em mim, não sei muito bem em que zona do meu espírito, aquele olhar que, numa limpidez desarmante, apenas proclamava compreensão. Baixei-me. Ele, numa deferência irrepreensível, logo se levantou para me cumprimentar, apesar do cansaço, apesar (talvez) da ausência de um pequeno-almoço (quem sabe de um jantar?), apesar de uma possível noite em branco… E eu que sempre fui sensível aos requisitos da educação. Jamais em ser humano algum, eu vira tal esforço, para cumprir os requisitos da etiqueta, em circunstâncias tão adversas. E agora, que fazer? Só podia convidá-lo a entrar. Também tinha de me mostrar à altura da sua educação. Assim o fiz. Ele, sempre renitente, num passo hesitante entre a timidez e o indisfarçável cansaço, lá aceitou entrar. Ofereci-lhe o que tinha. Não era muita coisa. Apenas a fome lhe traiu a etiqueta. Mas a fome trai tudo, não é verdade? Finda a refeição, inclinou-se a um canto do sofá, e com o olhar pediu-me uns instantes de descanso. Claro que o coloquei à vontade. Nesse dia, cheguei atrasado. Não houve problema. Afinal, em dias de guarda-chuva todos chegam atrasados. 

No regresso, preocupei-me com a visita, e demorei-me mais no supermercado. Nessa noite, a nossa amizade viu a luz do dia. Uma amizade sem exigências: no fundo, a verdadeira. Minto, ele apenas me pedia que o levasse a passear duas vezes por dia. De manhã, para me mostrar a leveza do ar e a nitidez das coisas; e à noite, para me ensinar a distância das estrelas e sentir a respiração da terra...

quinta-feira, 26 de março de 2020


Havia nele, simultaneamente, uma alegria contagiante e uma tristeza melancólica, tão estranho… Por vezes, dava-lhe, subitamente, para revisitar lugares do passado, como se vivesse em vários tempos, não sei se me faço entender… Talvez fosse o contrário, e quisesse apenas trazer o ontem ao hoje.

in Harmonia

segunda-feira, 23 de março de 2020

Rua das Almas



De que é que tenho medo? Não sei… Bom, no fundo, de tanta coisa… Depois vai-se a ver e, num repente, perco-os a todos e atiro-me de cabeça à primeira ilusão, depois magoo-me, e já foram tantas vezes, daí o cansaço, percebes, certo? Para quê juntar-me agora? Faz algum sentido? Não, não quero ficar sozinha, mas não vou deixá-la nesta fase, nem à rua consegue ir sozinha, acho que me mente, parece ver cada vez pior, já nem lhe pergunto pelas legendas, chega de testes, para quê carregar na dor? Sim, é verdade, é mesmo estupido, ultimamente refugia-se nas novelas, ao menos aí fica escudada de legendas, ninguém a chateia...

domingo, 22 de março de 2020

Um Encantado e Lento Entardecer



Um final de tarde (Verão?) numa esplanada. Talvez pela época estival, àquela precisa hora, onde um prenúncio de despedida ecoa no silêncio arrastado das lentas e arfantes sombras do mundo, haja, em cada rosto, a resignação sentida de uma derrota partilhada. Para onde se debruça aquela esplanada? Para o omnipresente azul líquido da terra? Ou para o das alturas? Ou será que se debruça sobre o interior amenizado, talvez pelo cansaço da derrota, daqueles que, sentados, ocupam um lugar, que julgam seu, no mosaico de uma contemporaneidade sempre fugidia? Um entardecer de Verão relembra um comboio que parte (para onde?), numa lentidão demasiado dolorosa, de uma qualquer estação, talvez porque esse compasso arrastado nos relembre despedidas. Eles ali estão. Partilham uma mesa. Cada um a saborear o seu gelado, com sabores diferentes. Sim, para partilhas já chega a mesa. Chegaram há algum tempo. Num passo arrastado. Depois de escolherem os sabores, precipitaram-se sobre as cadeiras, e olham para adormecer o pensamento.

Nesse mesmo momento, de gelados, cadeiras, e de ocasos marítimos, eles caminham sobre a plataforma, de um cimento escurecido, talvez turvado pela dor singular, repetida demasiado pluralmente, de um indesejado adeus. Caminham de mão dada. Numa passada hesitante. Como se a cada passo, se ouvisse um grito lancinante, ensurdecedor, vindo talvez do olhar, que anuncia resignação. Só se resigna quem compreende a derrota. E só é derrotado, aquele que deixa a alma na almofada. São os parentes directos do sim – tantas vezes o proferem, num dizer antagónico ao pensar (coma da identidade!). E ele sobe os dois degraus da carruagem, pousa as malas. E ela permanece, na plataforma, a olhá-lo. Talvez olhe vazio. Os seus olhares interrompidos por incontáveis vultos, que também querem aquele comboio, outros que também permanecem na plataforma, o céu denota-se azul, sim, apesar da estrutura fechada da estação (afinal, é o términus da linha; ou o início), e os vultos que não os deixam sós, sim, são vultos, nada mais, eles não lhes reconhecem substância, apenas querem reencontrar-se num olhar só, ouve-se um apito, demasiado longo, talvez pelo estrépito, talvez por soletrar adeus, primeiro um estremecimento, depois um ténue movimento, que vai ganhando consistência, e a realidade apresenta-se incompreensível ao pensamento, porque, num ápice, a plataforma vazia, no horizonte apenas sombras, e ela só, a olhar para dentro, sobre uma plataforma num crescente de escuridão. Os outros, já lá não estão. Desvaneceram-se. De facto, não tinham substância. A única substância real que ela conhece, nesse momento, é a do vazio. Naquela estação, não houve beijos, longos abraços, dedos que se tocam, nada… Isso é para os filmes! Assim que a marcha se iniciou, nem os olhos se reencontraram mais. Nada! Ela inicia o regresso. Talvez cambaleie, afinal, quem conhece a sua geografia interior daquele momento? Cabeça baixa, uma mão no bolso, a outra segura um objecto (qual?), e o passo incerto de quem só possui pretérito. Quantas vezes na vida apenas temos pretérito? Porventura, vezes a mais…

sexta-feira, 20 de março de 2020

quarta-feira, 18 de março de 2020

O lento esvoaçar das cortinas pela manhã



Uma vez ela leu que a vida de um casal se escreve na cama, a frase demorou-se nela, chegou a pousar o livro para digeri-la devidamente, anuiu passado o necessário, de facto era tão verdadeira (“A vida de um casal escreve-se na cama”), a sua actual circunstância é um espelho dessa verdade, amarga no presente, por vezes, ansiamos tanto por mudança, novidade, rupturas, como se implorássemos ao tempo que estugasse o passo, e numa inesperada manhã, diante da nossa total impreparação, a vida, desdenhosa, altera-nos radicalmente o viver, da janela do quarto ela olha o possível, nada onde se lhe demore a vista, ainda menos o pensar, em si levanta-se a memória com o aroma a café quente, como é distinto o cheiro a café quente comparando com enfraquecido e inerte aroma a café frio, o perfume do café quente é digno de todas as manhãs do mundo, há quem diga que Deus bebeu uma chávena de café quente para se inspirar na criação de tudo, pois, é possível, mas, neste momento, em pé, ela olha o possível, carros estacionados, a esquálida árvore, lá em baixo, que se obstina no seu emudecido grito... 

domingo, 15 de março de 2020

Quantas vezes nos cruzamos na vida (para depois nem um adeus)?



Àquela hora a sala estava cheia. Afinal, era uma da tarde. Ele ocupava a mesa de sempre. Olhos no prato. Não bem no prato. Em qualquer outra coisa. No ar, múltiplas vozes numa só conversa, talvez, no fundo, se trate de uma só voz, sempre demasiado alto, que se desdobra pelas diversas mesas, num assunto oco, balizado entre o queixume e a projecção. E ele a olhar para a comida, sem qualquer vestígio de apetite. Só sente sede. A sua afinidade está com o copo. Tem sede de se esquecer (de si?)... Ainda não levara o garfo à boca, e a garrafa em metade. Agora roda o copo, vazio por enquanto, firme na mesa, com o médio e o polegar. Roda, e roda, e roda… E no copo, não se consegue encontrar, nem agora, nem em momentos idos. Pega na garrafa. O copo, desta feita, escarlate. Sim, agora vê-se um pouco. Um sorriso, embora de há muito. Na mão, um saco transparente com pipocas. Ela ocupada com o algodão doce. Cor-de-rosa, sim, lá está. E, na frente deles, um carrossel, num apelo, sem lugar para não, a voltas e voltas… O copo, de novo, vazio. Agora, transparente. Já não se reencontra. Novamente, o polegar e o médio a rodá-lo: uma, duas, três vezes… E nada. A sua transparência apenas lhe devolve vazio. Se ao menos o pintasse de escarlate, uma vez mais, talvez reencontrasse o carrossel, o algodão doce cor-de-rosa, o saco transparente cheio de pipocas… Mas a garrafa não o permite. E a carteira ainda menos. Olha o empregado. Este, numa imaculada pedagogia, assente no mais sábio compêndio do mundo (intitulado: Vida), sorri-lhe, aproxima-se, empurra-lhe o prato, já morno, para a frente, pega na garrafa vazia, e sussurra-lhe ao ouvido: Alimente-se, homem. Já chega deste fel! E ele vê a garrafa a afastar-se, sem direito a um adeus, e com ela a diluírem-se um sorriso, um carrossel, a elegância de um algodão doce cor-de-rosa, e o gosto esforçado das pipocas de um saquito de plástico transparente. Agora, só lhe resta o prato. Olha a comida. Mas há muito que desconhece o paradeiro do apetite. Procura com o olhar o empregado. Encontra-o, após o tempo necessário. Este apenas um sorriso. Um sorriso que encerra um universo: Não, já chega. Pelo menos, por agora. Você não pode ter outra queda, como esta última. De certeza, que não lhe sobrevive. À noite, bebe mais um tragozinho. Mas com calma. Alimente-se, homem! Que se há-de fazer?! É a vida! Não lhe podemos fugir… Por fim, ele levanta-se, mãos apoiadas na mesa. Com ele, erguem-se as décadas de vida acumuladas, os dias de sol, as longas borrascas, as certezas idas, e as dúvidas inesgotáveis… Encaminha-se para a porta. Numa mesa, gritos de crianças chamam-lhe a atenção. Crianças, o futuro! Que grande disparate, pensa ele. Criança é, e será sempre, sinónimo de passado. Este pensamento ocupava-o quando, apoiado numa parede, toma o caminho de casa. Sabe que, da porta do restaurante, os seus titubeantes passos são vigiados pelo empregado. Pára. Olha para trás. Lá está ele, à porta, com o seu sorriso de universo. Que se há-de fazer?! É a vida! Não lhe podemos fugir…

sexta-feira, 13 de março de 2020

A sabedoria dos avós



Hoje apenas uma memória, se me perguntassem quando a última vez que o senti, não poderia responder, em verdade, não me recordo, apenas tenho a certeza de que, com o tempo, foi à minha volta rareando o cheiro a terra molhada, como eu gostava, após uma chuvada, em mim e à minha volta desse aroma que se levantava da essência das coisas, por momentos, breves de facto, parecia que homem e natureza se reencontravam, e um sentir de regresso à casa de sempre, há tanto que não sinto o cheiro a terra molhada, nem mesmo quando chove dias a fio, embora já não chova assim muito, hoje tudo é uma outra coisa, de repente, outro aroma levanta-se-me na memória, o cheiro a lareira, a musicalidade do crepitar da lenha fazia-se acompanhar pelo conforto do calor e o consequente terror das cinzas, contudo, por muitas que tenha presenciado, em mim só reside o aroma da lareira da casa dos meus avós...

domingo, 8 de março de 2020

A Solidão de uma Música Partilhada



De onde vinham? Àquela hora tardia? Afinal, que horas eram ao certo? Não se sabe. De facto, não se consegue perceber que horas marca o mostrador do carro, naquela peculiar tonalidade a atirar para o alaranjado. A cidade sob um manto de silêncio. Do rio, emerge uma neblina com auspícios de conquista. No ar, um temor de ecos. O carro procura a jusante de um lar (feliz?). São raros os faróis circulantes. Apenas, e por uma vez, o eco demasiado metálico, pontuado por assobios cansados de tanto os repetirem, de um camião de recolha dos excessos. À passagem do digno centro da cidade (todo o centro reveste-se de uma dignidade indizível), vislumbram-se sombras (muitas) sob arcadas graníticas, que ora se expõem, num canto doloroso de sereia naufragada, ora se recolhem no corar inoportuno de uma menina esquecida (ainda terão a memória desta?). Na rua contígua às arcadas, algum trânsito, apesar da hora. Viaturas com único tripulante, de olhar fixo nas trémulas sombras, talvez outros naufrágios… Agora, sedentos e famintos, procuram, a esta hora esquecida, naquelas trémulas sombras, o resquício de um calor ido (para onde fora?)… Do outro lado da praça, também sob arcadas, cartões sobre linhas antropomórficas. Um sobe e desce de respiração. De vez em quando, um halo ilumina-se pela graça de um candeeiro. Todos numa respeitosa fila horizontal, encostada a uma parede. De dentro do carro, afigura-se uma parada de cartões. Nem uma laje se avista. Apenas, um chão cartonado. Ela ainda procura um rosto naquele estranho universo de pedra e cartão. Um rosto que lhe permitisse a compreensão. No entanto, nada vislumbrou. Todos velados por mangas sujas e coçadas de casacos, e por gorros esticados num imperativo de pudor. Abandono, foi a única palavra que nasceu em si. E por largos instantes, a única que a povoou. Ele olhava as fachadas históricas e iluminadas dos edifícios. Embora a lentidão da marcha, indiciasse um peso acumulado por lajes, mangas coçadas e gorros de pudor. Mas eles nada tinham que lhes cobrisse o rosto. Dentro do carro, não se formavam halos. Afinal, os candeeiros piedosos estão no exterior húmido e gelado. O único desconforto ali sentido, deriva da música do rádio. A canção de uma outra vida. Sim, todos vivemos várias vidas. Porque também morremos muitas vezes. E nenhum deles ousa desligar o rádio. Sim, o pudor acaba por encontrar uma forma de entrar no conforto tépido deste carro. Através de um gesto: o não desligar de um rádio. É sempre mais suave que uma manga coçada a cobrir um rosto. E o carro continua a rolar, a caminho de um lar (também naufragado?)… Agora atravessam a ponte. Lá em baixo, luzes e luzes, o mais, apenas um véu de distância…


terça-feira, 3 de março de 2020

Uma Secretária à Sombra



O quarto cheira a solidão. Sim, aquele quarto em particular. Será um quarto? Bom, trata-se de uma divisão da casa. Mas a que não deram a finalidade de quarto. Deram-lhe uma outra. Tem uma secretária e livros, livros, e mais livros… Na secretária, papéis agora arrumados. Quem ocupa esta divisão? E de quem é a casa? Sombras, agora sombras. Regressemos a esta divisão específica. À secretária com os papéis arrumados, aos livros, ao estore corrido, às luzes apagadas (sobretudo a do candeeirozito da secretária, que dava aquela tonalidade esverdeada), a cadeira arrumada que proclama, no desconforto de um grito, o vazio desolador de uma partida. Quem partiu? Quem ali vivia? De quem era aquela casa? Não nos interessa a casa. Somente aquela divisão. A dos livros, a da secretária. Mas a casa… Não! Interessa-nos, apenas, onde vivem as ideias. E uma casa sem livros é uma casa sem ideias. E de pobreza, estamos conversados.

Será tarde, lá fora? Sim, talvez entardeça, anunciam as escassas frestas dos estores, que, numa obstinação guerreira, resistem ao hermetismo. A secretária silenciosa, os livros calados, as luzes sem luz. Fechemos os olhos, ombro na parede, mãos nos bolsos… E sim, de repente, ouve-se um som. Uma caneta rabisca algo num papel. Parece música! A caneta pára, volta a andar, pára de novo, e sentimos luz enquanto a caneta estática, apesar dos olhos fechados, uma luz povoa o quarto… De onde provém? A caneta avança de novo, a luz esmorece, agora interrompe a marcha, a luz… Sim, claro, já percebemos, a centelha que alumia a mão… A cadeira arrasta-se. Alguém se levanta. Música. Sim, música pela casa. Um nocturno (Chopin?) preenche todo o espaço. Afinal, entardece lá fora. De novo, a caneta. Sim, percebemos agora, esta divisão pertence a um escritor. Abrimos os olhos. Ali está ele, à sua secretária, parece-nos a encosta e a folha o vale, no olhar sonhos por sonhar, e a mão numa férrea vontade de os agarrar. E os sonhos a fugirem-lhe, e a mão, dirigida pelo olhar, sempre no seu encalço, com a ajuda de uma caneta e de uma folha de papel. Sim, e da música. Porque música e sonhos habitam o mesmo espaço. Um espaço além palavras. Onde esta se torna supérflua. E o escritor sabe disto. Qualquer escritor, digno de usar este epíteto, conhece esta limitação do verbo. Todavia, a quem o mundo não basta, é filho de D. Quixote. E só lhe resta o galopar de sílaba em sílaba, descansar, para recobrar forças, à sombra de uma vírgula, armado de uma caneta, e investir de novo contra a brancura desafiante do papel, para tentar, aí, aprisionar o resquício esvoaçante de um sonho (…)
 

domingo, 1 de março de 2020


… uma vez alguém escreveu ou disse, já não me recordo, “Saber sair de cena é uma arte”, não podia estar mais certo, no fundo, há algo que nos pertence por inteiro: a vida que nos resta… Se arranjar forma de descobrir que o sol lá fora brilha tanto como o de ontem, seria tão bom, não acha?

in A face demorada da tarde