Livros

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terça-feira, 3 de março de 2020

Uma Secretária à Sombra



O quarto cheira a solidão. Sim, aquele quarto em particular. Será um quarto? Bom, trata-se de uma divisão da casa. Mas a que não deram a finalidade de quarto. Deram-lhe uma outra. Tem uma secretária e livros, livros, e mais livros… Na secretária, papéis agora arrumados. Quem ocupa esta divisão? E de quem é a casa? Sombras, agora sombras. Regressemos a esta divisão específica. À secretária com os papéis arrumados, aos livros, ao estore corrido, às luzes apagadas (sobretudo a do candeeirozito da secretária, que dava aquela tonalidade esverdeada), a cadeira arrumada que proclama, no desconforto de um grito, o vazio desolador de uma partida. Quem partiu? Quem ali vivia? De quem era aquela casa? Não nos interessa a casa. Somente aquela divisão. A dos livros, a da secretária. Mas a casa… Não! Interessa-nos, apenas, onde vivem as ideias. E uma casa sem livros é uma casa sem ideias. E de pobreza, estamos conversados.

Será tarde, lá fora? Sim, talvez entardeça, anunciam as escassas frestas dos estores, que, numa obstinação guerreira, resistem ao hermetismo. A secretária silenciosa, os livros calados, as luzes sem luz. Fechemos os olhos, ombro na parede, mãos nos bolsos… E sim, de repente, ouve-se um som. Uma caneta rabisca algo num papel. Parece música! A caneta pára, volta a andar, pára de novo, e sentimos luz enquanto a caneta estática, apesar dos olhos fechados, uma luz povoa o quarto… De onde provém? A caneta avança de novo, a luz esmorece, agora interrompe a marcha, a luz… Sim, claro, já percebemos, a centelha que alumia a mão… A cadeira arrasta-se. Alguém se levanta. Música. Sim, música pela casa. Um nocturno (Chopin?) preenche todo o espaço. Afinal, entardece lá fora. De novo, a caneta. Sim, percebemos agora, esta divisão pertence a um escritor. Abrimos os olhos. Ali está ele, à sua secretária, parece-nos a encosta e a folha o vale, no olhar sonhos por sonhar, e a mão numa férrea vontade de os agarrar. E os sonhos a fugirem-lhe, e a mão, dirigida pelo olhar, sempre no seu encalço, com a ajuda de uma caneta e de uma folha de papel. Sim, e da música. Porque música e sonhos habitam o mesmo espaço. Um espaço além palavras. Onde esta se torna supérflua. E o escritor sabe disto. Qualquer escritor, digno de usar este epíteto, conhece esta limitação do verbo. Todavia, a quem o mundo não basta, é filho de D. Quixote. E só lhe resta o galopar de sílaba em sílaba, descansar, para recobrar forças, à sombra de uma vírgula, armado de uma caneta, e investir de novo contra a brancura desafiante do papel, para tentar, aí, aprisionar o resquício esvoaçante de um sonho (…)
 

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