Livros

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quinta-feira, 31 de março de 2022

A quem nos faz desaprender o tempo


 

Senta-se. Abre o livro. E esquece-se de si. Agora é um outro que olha vidas, e aprende-se nessa tentativa de as perceber. Páginas vão passando enquanto a luz muda à sua volta, ele agora num canto longínquo, sim, um pouco do livro já o habita, as páginas continuam o seu desfile, neste momento com a ajuda de um candeeiro, quando, de repente, uma questão, levanta-se, olha à sua volta, ouve barulho num canto da casa, pareceu-lhe de pratos, dirige-se para lá, segura o livro debaixo do braço, num esmero consciente, da porta pede apenas um pouco de tempo para a interrogação, mas o jantar, o cansaço, agora talheres, mais louça, ele a capitular, encaminha-se para outra divisão, dominada por uma voz estridente, acelerada, que repete a cada cinco segundos a palavra esférico, numa cadência obstinada, de novo, da porta pede apenas um pouco de tempo para a interrogação, um mais logo, mais logo, sem rosto, muito rápido, quase fugidio, baixa o olhar, vira costas, afasta-se, a voz estridente, acelerada, que repete a cada cinco segundos a palavra esférico, numa cadência obstinada, cada vez mais distante, segue pelo corredor além-horizontes, numa passada de navegante, chega a uma outra porta, dali a musicalidade de um som recentemente descoberto, por uns instantes a fruir daquela lenta melodia, com um compasso invernoso, da entrada pede, uma vez mais, um pouco de tempo para a interrogação, a musicalidade de um som recentemente descoberto interrompe-se, um olhar levanta-se até si, um gesto convida-o a aproximar-se, primeiro a surpresa, afinal talvez uma interrogação nasça na proporcionalidade de uma resposta, avança, sempre com o livro debaixo do braço, com um esmero redobrado, a mão autora do gesto a sorrir-lhe, ele a sentar-se, o livro ainda debaixo do braço, agora a pousá-lo no colo, o rosto apoiado nas mãos, a mão sorridente a retirar uns óculos, a segurá-los, uma voz segura e tranquila inicia uma história, ele a segui-la, sem esforço, com uma alegria de galope, muito para além daquele corredor, da manhã ida, da tarde finda, da noite chegada, lugares distantes visitados em passos de sonho, ele persiste em seguir os passos daquela melodia de uma segura tranquilidade, e abandona-se, sim, como é verdade, sempre que partimos algo sempre fica, talvez por nunca sermos um todo, por fim, a segura e tranquila melodia cessou, os óculos de regresso ao rosto, e uma questão a suspender-se Percebeste? Levanta-se, o livro sempre debaixo do braço, o esmero não se subtrai, olha à sua volta, compreende a noite embora não a tenha saudado, e responde Ainda vou precisar de algum tempo. A mão agradada com a resposta, talvez da janela de uma questão o horizonte da resposta, ele a deixar aquela divisão, o corredor agora mais pequeno, ainda há pouco num além-horizontes, mas só quem regressa compreende a realidade das coisas, de novo, a passar, agora em silêncio, pela porta da divisão dominada por uma voz estridente, acelerada, que repete a cada cinco segundos a palavra esférico, numa cadência obstinada, não se detém, nem vislumbres de tempo ou de interrogações, prossegue, livro em esmero debaixo do braço, uma vez mais, de um canto da casa, pratos, talheres, mais louça, não se detém, nem vislumbres de tempo ou de interrogações. Senta-se. Abre o livro. Lembra-se de respirar. E, então sim, esquece-se, uma vez mais, de si.

quarta-feira, 30 de março de 2022


Sabes, vivemos no mesmo mundo, mas em tempos diferentes…

in As coisas são sempre plurais
 

segunda-feira, 28 de março de 2022

As coisas são sempre plurais


 

Vestiu o casaco, hoje de uma forma mais lenta, enquanto olhava o chapéu, sim, aquele com aroma a outras paragens, demasiado longínquas, mas não para o seu pensar, que as alcançava apenas com um passo, a insistência de um pedido pelos joelhos, por fim, ele a ceder, coloca o chapéu, abre a porta, logo uma corrida, à sua frente, até ao portão, aí, mais saltos, ecos, pelos ares, de um pedido, que ele conhece no suficiente do tempo, já lá vão oito anos, foi um mês depois de ela o deixar, fê-lo sem estrépito, nem acusações houve, nada, apenas uma constatação, dois meses antes, Somos tão diferentes, qualquer dia não teremos nada para dizer um ao outro, ele em hesitações para a frase, a olhar o chapéu, em repouso à entrada de casa, sempre pendurado no possível de algo próximo da porta, ela ainda, Não achas que tenho razão? Sabes, vivemos no mesmo mundo, mas em tempos diferentes…, a atenção dele a viajar com o chapéu, logo as pernas a perderem anos, o olhar a vestir-se de alma, a tropeçar num sorriso para o amanhã, afinal, sempre ali estivera, caído a seus pés (e há quanto o julgava perdido?), certa tarde, depois de entrar e fechar a porta, um sentir de abandono na expressão das coisas lá por casa, como se o eco de um choro tímido, após pousar o chapéu, o passo mais envergonhado, o olhar na compreensão do vazio, nem sorrisos de ontem para trocos na algibeira agora vazia, apesar do objecto ali depositado, quase numa obscenidade gritada, segue adiante, já costas para a chave dela, largada na mesa de entrada, testemunho de uma partida (ou de um abandono?), percorre as escassas divisões da casa, enquanto se agarra a frases flutuantes, Não, não somos assim tão diferentes, temos tanto para dizer um ao outro; Sim, tens razão; Espera mais um pouco, estou quase a chegar, para nos encontrarmos no mesmo tempo de um lugar deste mundo…, mas apenas observa subtracções, nos armários, em prateleiras, num indizível qualquer que demora o seu tempo a iluminar, por fim, desde a entrada, da obscenidade daquela chave, a luz, tacteante, a fazê-lo compreender onde estava a maior subtracção, isto ainda demorou três voltas à casa, e, então sim, sentou-se, é curioso, quando somos subtraídos adquirimos um caminhar mais pesado, há lógicas no mundo que nunca hão-de bater à porta do sentir, nessa noite o telefone, antes de lhe chegar, uma cadeira e a esquina de um móvel como escolhos, mas ainda a tempo de lhe ouvir a voz, Como estás? (…) Eu guardo um enorme carinho por ti. Espero que perdure… E que ao menos amigos, ele em silêncio, afinal, ela falou por dois, ele, que sempre gostou de caminhar a ouvir a sua respiração, bastava-se, mas, certa noite, um amigo condoído por aquele chapéu, nem lhe percebia a lonjura, a insistir para que fosse até lá casa, ele em recusas educadas, por fim, a ceder, a conversa de serão decorreu animada, não se percebiam as dissonâncias de tempos e lugares, sempre o filtro das palavras diante da novidade de um rosto, ela também numa carência de náufraga, sim, deixara para trás a ruína de um lar, felizmente sem tempo para filhos, apenas a memória de uma pressa demasiada, a engraçar com aquele anacronismo de modos e palavras, é compreensível que refreie o passo quem fora vítima da velocidade, mas tudo tem um tempo, e, assim, ela fez-se, de novo, à estrada, quando regressou a si, já ela lhe questionava o chapéu, no interior da sua casa, uma questão que os devolveu à sua circunstância, neste caso, ao seu tempo, e como era distinto, quem compreende um regresso dificilmente procura partir, ela por ali ficou até sarar as feridas, assim que refeita, partiu, ele, no entanto, aprendera a ouvir e a apreciar uma respiração a seu lado, teve, durante uns tempos, de percorrer um doloroso trilho da existência, a despedir-se dos saberes, mas ficou-lhe, pelo menos, o gosto de caminhar sob a noite do mundo, sempre com o seu chapéu, de outras paragens, e se ninguém respira a seu lado, ao menos que respire à frente, e que o aguarde sem vislumbres de partidas, sem sublinhar anacronismos, por fim, o mais importante, passados oito anos, nunca questionou o seu chapéu.


terça-feira, 22 de março de 2022

Um sonho esquecido na madrugada


 

Encostada à parede, cruza os braços, olhar no soalho, o pé direito num movimento de qualquer coisa, talvez por aí vagueie o seu pensar, os pais e a irmã já sentados à mesa, ela ainda por ali, enredada naquele movimento sem partida nem chegada, que lhe permite, por enquanto, subtrair-se daqueles olhares que a aguardam para renovar azedume e discordância, desde o seu regresso apenas aqueles espelhos, afinal, não se trata de um regressar, mas sim de uma paragem, pois só regressamos onde nos esperam, por fim, resolve entrar e sentar-se, a conversa, entre eles, interrompe-se, o sublinhar do vazio à estrangeira recém-chegada, ela a ignorar, a servir-se na espontaneidade do possível, lentamente, a refeição recupera o seu fluir, a comida sabe-lhe a cinzento, mas cumpre com os imperativos da sobrevivência, sempre do lado de cá de um porquê, e a saber que, dois anos antes, naquela mesma cozinha, diminuta, cerca de cinco metros de comprimento por dois de largura, felizmente que a mesa retráctil, os electrodomésticos da vida moderna a impossibilitarem o assomar à janela, mas poucos desejam contemplar o prédio em frente, ou a sua sombra, como sucede todas as tardes, no entanto, havia que arranjar um lugar para as máquinas, uma exigência da mãe (Não pensem que vou continuar a ser vossa criada!) quando para ali foram viver, mas regressemos àqueles dois anos antes, quando ela anunciou que ia morar com o namorado, naquela mesma cozinha, os espelhos, nessa noite, espantados, apreensivos, na procura, possível, de lhe apresentar outro horizonte, ouviu-se, várias vezes, por ali (Nada é certo nestes dias. Espera mais um pouco. Não tens nenhuma garantia), porém, ela era cansaço, daquele terceiro andar sem elevador, do permanente cheiro bolorento nas escadas, daquela decoração de subúrbio que se espraiava a cada minudência daquele lar, das noites boquiabertas de telenovelas e demais boçalidades, de partilhar com a irmã o mesmo espaço de sonhos e intimidades, do desespero das manhãs por uma só casa de banho, e, sim, aquela cozinha com horizontes de roncos mecânicos e movimentos circulares, no decorrer da tarde, ela e o namorado naquela varanda sobre o mar, a conjugarem respirares compassados, a vertigem dos sentidos, e a liberdade de serem, ele, por fim, a convidá-la a trocar horizontes, ela incrédula, de roncos mecânicos e movimentos circulares, do prédio em frente e da sua sombra, como sucede todas as tardes, à lonjura possível de um olhar que procura compreender o demasiado azul de um horizonte, na manhã seguinte, as malas entraram primeiro que ela, o horizonte da varanda ainda num alaranjado, ele feliz, ela, apesar de tudo, sempre num receio (Achas que consegues? Não é demasiado?), um abraço sorridente a sossegá-la, afinal, o negócio imobiliário permitia estes horizontes, e que ela concluísse o curso, parece que só faltavam seis meses, desde que as malas ali entraram, ela cada vez mais renitente em visitar um certo terceiro andar, ele também não a incentivava, talvez no receio de que trouxesse algum vestígio daquela decoração de subúrbio, tudo se resumia a escassas frases trocadas por telemóvel, enquanto punha mudanças, entre o acelerar e o travar, ou à medida que empurrava um carrinho metálico, por entre filas de detergentes ou de cereais, até que, certa noite, já o horizonte líquido em prata, ele com garrafas vazias à volta, uma carta aberta sobre a mesa de centro, em vidro, nada de subúrbio por ali, tudo muito central, ela, por essa altura, já ajudava com o mínimo que ganhava na loja do centro comercial, com sofreguidão, e simultâneo receio, precipita-se para a carta, só percorreu aquelas linhas uma vez, sim, foi o suficiente, para perceber que havia negócios, no inquietante destes dias, com um único e possível horizonte de sombras, ele nem se levantou, apenas lhe disse que, apesar de tudo, ainda tinha alguns pertences familiares para vender, que…, ela já não ouviu, limitou-se a fazer as malas, nessa noite não se lembra da leveza embalada e mitigadora do sono, ele ficou pela sala, na derrota do sofá, na manhã seguinte, curiosamente, ela saiu à frente das malas, talvez a cabeça caminhasse ao contrário, sim, quem sabe se este não é o principal problema da vida…


sexta-feira, 18 de março de 2022


... há muito que a vida me ensinara algo tão fundamental: a haver um Inferno, não será um lugar assim tão longe do aqui...

in Anoiteceu
 

domingo, 13 de março de 2022

Não foi sorte, foi destino


 

Uma das questões essenciais, deste caminhar sob o céu, é: O que, de facto, conquistámos e o que nos foi oferecido? Quantos já reflectiram nisto? Esta reflexão carece de duas premissas: maturidade e humildade. Em verdade, não abundam assim tanto. Mas perguntar-se-á o leitor: porquê toda esta conversa? Há uns tempos, num final de tarde, derramavam-se-me os cabelos sob o compasso de uma máquina, facto que, cada vez mais, me alivia, para peso já me basta o da alma, o silêncio, por norma, é confrangedor, parece desvelar a nudez de quem somos, torna-se uma quase obscenidade, assim sendo, urge preenchê-lo, liquidá-lo, atirá-lo para bem longe, por conseguinte, um lugar onde se vai tratar do tecto das ideias não convém, de todo, ser povoado de silêncios, das duas últimas vezes fui atendido por aquele peculiar português que, em pequenino, só ouvia nas telenovelas que a minha mãe avidamente consumia, agora, em adulto, parece que as novelas saltaram do écran e me cercaram, enfim, como dizia, derramavam-se-me cabelos sob o compasso de uma máquina, e, por acaso, fui eu em urgências de preencher os vazios do silêncio, nem sei bem porquê, talvez, nesse final de tarde, o compasso da máquina gritasse em demasia, algo em mim implorava que levasse o pensar para bem longe dali,  porém, nunca fui de verbo fácil com estranhos, escudo-me sempre em lugares-comuns e pouco mais, ainda hoje não sei se por timidez, se por simplesmente não gostar de me dar a conhecer, aqui chegado, creio que irei embora sem me ter conhecido por completo,  poucas dúvidas tenho quanto a isto,  uma das frases mais engraçadas que já ouvi, ou talvez seja a mais imbecil, é quando me dizem: “Conheço-te tão bem!” Como é possível dizerem-me: “Conheço-te tão bem!” Se eu tenho a certeza de que irei embora sem me ter conhecido por completo, um pouco como aquelas casas com arrecadação, embora tão cheia de trastes que nem se ousa passar à porta, e para quê? Ninguém, de facto, tenciona arrumá-la, talvez com receio de por ali se perder ou de encontrar objectos que levantem memórias de chuva, pois, não sei, essa porta está fechada, e, de facto, não tenciono abri-la, aprendi há muito que a questão é o alimento do diálogo, a certa altura, à minha volta, a acompanhar o compasso da máquina, o sujeito, naquele peculiar português com aroma a trópicos, contava como ali chegara, as vicissitudes, as coincidências, eu, que nunca fui de verbo fácil com estranhos, escudo-me sempre em lugares-comuns e pouco mais, ainda hoje não sei se por timidez, se por simplesmente não gostar de me dar a conhecer, respondo-lhe “Isso é que foi sorte!”, um lugar-comum, uma observação insossa[T1] , ao alcance de qualquer um, corrente, vulgar, rasteira (“Isso é que foi sorte!”), prontamente ele responde: “Não foi sorte, foi destino!”, ainda sentado, rodeado dos despojos que, ainda há pouco, me coroavam o tecto das ideias, recolho-me num espanto por aquela frase (“Não foi sorte, foi destino!”), há lugares, debaixo deste céu, onde, ainda não percebi porquê, não esperamos grandes sentenças, o desvelar da Verdade, como se tal fosse apenas possível entre muralhas de livros, olhei à minha volta, talvez procurasse ver se mais alguém partilhava do meu espanto por aquela súbita evidência, nada, o mundo prosseguia na sua indiferente marcha, houvesse um nascimento ou um funeral, o céu só se alteraria para quem o olhasse, eu ruminava (“Não foi sorte, foi destino!”), claro que soube disfarçar, ele não se apercebeu do efeito que a sua frase me suscitou, ele estava certo (“Não foi sorte, foi destino!”), como estava certo, creio que desconhece, quase por inteiro, as premissas da teoria “Determinista”, também de pouco lhe adianta num contexto de tesouras e laca, entretanto, percebo-lhe um insistente olhar, pois, tinha razão, aguardava pela minha resposta, com um  sorriso lá lhe  respondo: “Tem toda a razão! Não duvide!”; conheci muitos “doutos” ao longo da vida, na sua maioria doutos de pacotilha, mas também me cruzei com muitos aspirantes a doutos que nem da cave haviam saído, contudo, vincavam acerrimamente a sua posição de doutos deixando o epíteto de aspirante bem caído ao longe, a vida académica é um permanente desfilar de figuras assim, infelizmente a profissional não lhe fica aquém, todavia, há muito aprendi a ser lesto em virar-costas quando ouço: “Eu é que sei…” ou “Tenho a certeza…”; logo eu que, cedo aprendi, o desdenhoso gozo da vida em nos trocar sonhos por terrores, como se a realidade mudasse num despercebido pestanejar, mas é um facto que muda, e num lugar onde se vai tratar do tecto das ideias, a meio de uma tarde, ouço alguém dizer, com uma genuína humildade e simultaneamente resignação, também com um laivo de alegria: “Não foi sorte, foi destino!”, sem vislumbres de arrogância, prepotência, falsa humildade, teatralização estéril, vernáculo arreigado, nada, tudo fluiu com uma naturalidade desarmante, porém, uma certeza nasceu-me, e dessa não me demovo: “Não foi sorte, foi destino” alguém relembrar-me estas singularidades da existência há tanto em mim adormecidas, doravante serei ainda mais lesto a virar-costas quando me chegar aos ouvidos “Eu é que sei…” ou “Tenho a certeza…”

Pedro de Sá

(13/03/22)


 [T1]


 

domingo, 6 de março de 2022

sábado, 5 de março de 2022

quarta-feira, 2 de março de 2022

ANOITECEU


Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia.

                                                                                                                        Mateus (5, 7)

 

Creio que lemos para não nos sentirmos sós.

(Anónimo)

 

O passado nunca fica onde o deixámos.

(Anónimo)




ÍNDICE

 

 

 

 

 

AMANHECER

ENTARDECER

ANOITECEU

 

 

 

 

 

 

 

AMANHECER

 

 


 Aquilo que muitos chamam de decisões, em verdade, é caminhar pela única via possível, não há qualquer deliberação, tudo flui na naturalidade do acontecer, num momento da minha vida, muitos enalteceram (em surdina, claro, por estes lados o elogio sempre foi deveras inflaccionado) um gesto meu, como se, após uma longuíssima reflexão, tivesse optado por uma compaixão superior, nada disso, repito, não houve qualquer escolha, uma vez que, para mim, não havia outras possibilidades. Mas não me parece que esteja a começar bem a minha narrativa, esqueci-me do essencial: abrir a porta, proceder às apresentações e convidar o leitor a entrar, assim começa toda a história, por outras palavras “Era uma vez…” Quando olho para trás, sobretudo para a minha infância, só me ocorre uma palavra: silêncio. As refeições eram ocasiões lancinantes para mim, meus pais e irmão (cinco anos mais velho) num mutismo contrastante com os esgares e roncos nascidos do mastigar (acto tão primitivo, rudimentar, por muito que se maquilhe com mesas pomposas, etiquetas de pacotilha, talheres dourados, guardanapos de seda, copos de cristal), e uma questão sentava-se-me no pensar: em que circunstância, numa vida partilhada, morrem as palavras? Com o tempo, percebi o crescente silêncio às refeições, e não só, não me lembro, confesso, de um gesto de ternura entre meus pais, uma brincadeira, nunca comentei isto com o meu irmão, os cinco anos de diferença, nas duas primeiras décadas de vida, tornam-nos habitantes de continentes distintos, além, claro, da diferença de género, creio que ele não se apercebia destas singularidades, parecia caminhar numa realidade muito sua, imune às arestas da vida, fascinava-me essa sua distância das coisas, como se tudo lhe fosse indiferente, se as refeições fossem densamente povoadas por frases ininterruptas, em vez daquele asfixiante silêncio, a sua expressão seria a mesma, não duvido, hoje somos dois estranhos, cumprimentamo-nos quando nos vemos, apenas e só, como faço com os vizinhos, embora veja estes com mais frequência, não sei em que momento, naquela casa, cada um de nós se virou para si mesmo, neste aspecto, considero-me a mais inocente, uma vez que, como última a chegar, deparei-me com um cenário há muito construído, apenas me limitei a adaptar ao decurso da narrativa, segundo dizem, cheguei por acidente, já não era esperada, dito de outra forma, desejada, não é simpático ouvirmos isto, como se estivéssemos numa festa sem convite, mas, volta e meia, quando olhava, talvez mais demoradamente, os grisalhos de minha mãe, essa frase ecoava (…”cheguei por acidente, já não era esperada…”), vinda, por vezes, de fonte incógnita, afinal, era na minha memória que ressurgia (…”cheguei por acidente, já não era esperada…”), se procurar por meu irmão nesses tempos, mais tarde também, apenas capas de livros a ocultar-lhe o rosto, mesmo à mesa fazia-se acompanhar pela leitura de então, como se de uma bengala, até aos dez anos achava normal, depois começaram a nascer-me questões numa sucessão quase vertiginosa, embora todas partissem e regressassem ao silêncio. Foi pouco antes da faculdade, estaria a terminar o liceu, quando soube, pela voz de minha mãe, da partida, definitiva, de meu pai, foi antes de jantar, estava no quarto com os afazeres escolares, ouço um ligeiro toque na porta a anunciar que ia entrar, ergo o rosto da secretária para lá, ficava do lado direito, e procuro a voz (afinal, ali imperava o silêncio) para “Sim, entra…”, reticente lá abriu a porta, entrou, como se coxeasse, percebi-lhe, de imediato, uma acentuada sombra pelo rosto, nunca tal sucedera, denotava-se-lhe nos passos um quase esforço por equilíbrio, até chegar à minha cama e aí se sentar, de mãos pousadas nos joelhos olhou-me e “Filha, temos de conversar…”, não sei porquê, soube cada palavra que ia proferir, “O teu pai… Bom, o teu pai vai sair de casa…”, sabia-lhe as palavras, porém, assim que se sustiveram, entre nós, amplificadas pelo silêncio entardecido da casa, um sentir de incredulidade nasceu-me, pensei, tão estranho, tão estranho, saber-lhe as palavras e agora incrédula para as mesmas, olhei-a, sentada na minha cama, ainda de mãos nos joelhos, “Mas porquê?”, olhou em volta como se procurasse palavras que lhe ordenassem o sentir, após o necessário, uma vez mais levantou o rosto “Sabes, já não tínhamos conversa. Chega uma altura, na vida de todos os casais, mais cedo ou mais tarde, que isso sucede. Nessa circunstância, ou se procura o mundo do outro, para o verbo continuar a servir de ponte, ou o silêncio tornar-se-á ensurdecedor. Creio que, no nosso caso, foi por aqui… Éramos dois estranhos a partilhar leito e tecto. Apenas isso. Talvez ainda tenhamos ido a tempo de salvar qualquer coisa…”, espantou-me o tom analítico das suas palavras, nem dor, saudade, mágoa, nada, apenas procurava iluminar factos como se não fosse uma das protagonistas, intuí-lhe somente cansaço, indubitavelmente, a postura indiciava isso mesmo, a necessidade de se sentar, o desalento das mãos nos joelhos, parecia ter completado uma longa e dolorosa jornada, “Mas continuará a visitar e a acompanhar-vos, claro. Em nada vos faltará!”, enquanto falava, compreendi, de súbito, que não tinha memória de uma conversa, foi mais tarde, tão mais tarde, que alguém se vira para mim e diz “Devias escrever um livro!”, no momento foi como se abrissem uma janela desconhecida, embora frequentasse a casa há muito, uma perspectiva nova de um cenário cansado, “Devias escrever um livro!”, quanta dor se iria derramar sobre a brancura das páginas, ficariam indelevelmente maculadas, e que teria eu para contar assim de tão interessante? Como disse, a sugestão chegou-me da parte de uma colega de trabalho, era hora de regresso, falávamos de trivialidades, ela baixa-se pela carteira, ergue-se, enquanto ajeita a alça, olha-me diferente e diz-me (“Devias escrever um livro!”), assim, do nada, o espanto pela frase descontextualizada levou-me algum tempo a compreendê-la na sua plenitude, como se tal fosse possível, como desvelar a intenção do outro? O porquê de subitamente ser lançada tal sugestão? Entre cabides, malas, casacos, na hora de regresso ao lar. Lar? O que é isso de lar? Quando um prenúncio de regresso pelo mundo anoitecido, um sentir de orfandade aloja-se-me no sentir, ou talvez nunca dali tenha partido, como se fosse um conceito que ignorasse (e não ignoro? Lar? O que é isso de lar?), em verdade, nunca houve, debaixo deste céu, um lugar onde me sentisse em casa, onde regressar me apaziguasse o pensamento, vejo, agora, pressa à minha volta, pelas ruas percebemos o turvar dos céus, enquanto os candeeiros procuram contrariar, alumiando o possível, a ordem natural do acontecer, ouvia, ainda há pouco, sentada à secretária, “Vais ficar a fazer serão? Não vais para casa?” ou “Vais ficar a fazer serão? Então, até amanhã…”, malas quase arrancadas do chão, luzes apagadas com ferocidade, casacos vestidos sem olhar (não sei porquê, mas afigurou-se-me o oposto, em tempo e cerimónia, do gesto matinal), desarmoniosos passos por uma ansiada fuga (para onde?), tudo ao meu redor numa dessintonia veloz, e uma constância gritada (“Despacha-te! Despacha-te! Despacha-te!”) de uns para os outros, restavam dois ou três, não às secretárias, talvez olhassem o vazio de existir por mais um dia, quando resolvo levantar-me (“Não, não vou ficar a fazer serão…”), vou até ao cabide retirar o casaco, aí ouço, na espantada lonjura de mim, aquela frase, regresso à secretária pela mala, por fim, saio, creio que ainda ficara um, olhava as ruas anoitecidas pela janela, talvez espelhassem o desalento da sua alma, porém, o vazio da minha já me preenchia o bastante, desço até à garagem do edifício, aí chegada, sempre um esforço para relembrar onde o carro, como me pesa o pensar a esta hora, no fundo, pesa-me mais o existir que o pensar, ou talvez o inexistir, afinal, os passos contrariam-me os desejos, apesar de tudo, agrada-me a sensação de estar sentada atrás de um volante, a ilusão de um leme, apenas isso, a ilusão, há muito que a vida me ensinara algo tão fundamental: a haver um Inferno, não será um lugar assim tão longe do aqui, talvez pelo facto de a vida tanto gostar de se rir da nossa vontade, porém, o facto de, agora, neste exíguo espaço, na distância da minha realidade (as músicas sucedem-se fazendo-me caminhar pelas paisagens de mim, mostrando-me quantas já fui nesta vida, talvez não tantas assim, apenas os horizontes fossem mudando…), e na proximidade da dos outros, as ruas, a esta hora, povoadas de viaturas rumo a um sentido inequívoco (Lar? O que é isso de lar?), não sei porquê, a imagem daquele colega (olhava as ruas anoitecidas pela janela, talvez espelhassem o desalento da sua alma) regressa-me, será que ainda por lá continua? Deixo-me ir neste indolente cortejo, volta e meia um buzinar enraivecido, no fundo, mais um grito desesperado para ser salvo desta absurda corrente, resta-me a música, e quem eu fui, neste momento, ecoa uma que me relembra quando olhava o mundo com esperança (meu Deus! De facto, já fui tantas!), leva-me para amanheceres, uma confiança indefectível nos meus passos, hoje, que ironia, à minha volta apenas uma noite imensa e gritos desesperados (na distância da minha realidade e na proximidade da dos outros), ainda tenho, pelo menos, mais quarenta minutos neste pára e arranca até casa, amanhã tudo se repetirá, creio que sem um único desvio, e compreendo-me uma derrotada, mais uma vencida a quem a existência, na sua incessante ferocidade, empalideceu os sonhos, regresso-me com outra sonoridade, levanta-me memórias com aroma a ilusão, às vezes, confesso, questiono a sua veracidade, tal a perfeição desse acontecer, eu também outra, nessa fase os sonhos já se tinham turvado, porém, ao som destes acordes materializavam-se perante a minha incredulidade, daí a minha apatia, quando a venço, já a vida, na sua incessante ferocidade, tudo destruía, por aqui viajo, de longínquos amanheceres até ao arruinar de sonhos, sem sair deste exíguo espaço, e a lancinante dor de saber que amanhã tudo se repetirá, creio que sem um único desvio, agora, à minha frente, a ponte, regressa-me uma ideia com a idade do meu pensar, dizer adeus ao aqui, muitos apelidam de desistência, cobardia, fuga, nada disso, apenas a estupidez encontra uma voz, sempre considerei um acto de profunda coragem, de arrojo, um passo sem regresso para o desconhecido, no fundo, para a Verdade, e nunca será de desistência, mas sim de afirmação, porque só nos opomos ao Ser, logo, virar costas à vida é simultaneamente um acto de exaltação, e esta noite afigura-se-me a ideal para… Nem por acaso, neste instante, estou a meio da ponte, uma das melodias que elegi para o adeus ao aqui pelo ar, baixo o vidro, a noite nem está fria, estou tão afundada na minha dor que nem me vou aperceber, uma dor que me acompanhou cada respirar, tão poucas vezes se aquietou, vou regressar-me na sua companhia, saber-lhe a génese, talvez por lá se esqueça de mim e eu relembre o conceito de lar, continuo parada no meio da ponte, abro a porta do carro, chegou a hora do regresso, de repente compreendo-me uma privilegiada, ao menos tenho a possibilidade de escolher a hora, são vinte e trinta e três, passo o gradeamento para o outro lado, ouço gritos e múltiplas buzinadelas ao longe, tão ao longe, estou tão afundada na minha dor que nem me apercebo de uma mão estendida em súplica para me ater ao aqui, é tarde, estou cansada, muito cansada, só me resta um passo para cumprir o regresso. Mas se tudo fosse uma outra coisa… Se em vez de passar o gradeamento, a meio da ponte, eu permanecesse sentada atrás de um volante, a ilusão de um leme, e começasse a gizar o livro que me sugeriram escrever, mas eu nunca escrevi nada, sem ser, claro, o que a escolaridade me obrigou e menoridades quotidianas, como, de repente, posso alçar-me a tal empreitada (“Devias escrever um livro!”)? Como fazê-lo? O que tenho para contar? Eu nunca gostei de ler, ao contrário de meu irmão, o rosto sempre velado pela capa de um livro, achava perda de tempo, preferia viver, e os livros obrigatórios na escola, aborrecidíssimos, só me faziam bocejar, neste ponto, não me passou despercebido que as capas a velar o rosto de meu irmão não provinham de programas escolares, porém, a ideia enraizou-se-me, e germinou, não sei porquê, quase como se um imperativo de outra ordem, agora que reflicto nisto, eu nem ousei responder-lhe (“Devias escrever um livro!”), como se há muito a esperasse, um velho e poeirento espelho num subterrâneo de mim que não visitara e onde, de repente, me descubro, mas vou deixar-me de delongas, tenho algo em mim para verter numa folha de papel, porém, que história vou contar? A do silêncio da minha família? Os ecos dos mastigares às refeições? Quando olhamos o passado, num repente, por norma levantam-se dois ou três momentos de felicidade, pouco mais, reporto-me, claro, a espíritos elevados, que compreendem a felicidade como um estado de plenitude, os tolos conseguiam enumerar bem mais, mas não é com esses que vou ocupar a minha narrativa, curiosamente, se fizermos um balanço do caminho percorrido, procuramos luz, quase como uma justificação ao facto de aqui estarmos (como se nos disséssemos “Sim, valeu a pena”), pelo contrário, se falarmos tristeza, erguer-se-ão bem mais que dois ou três, há quem olhe para trás e vislumbre apenas uma longa noite, por aqui me situo, porém, há uma imagem que me povoa, uma indesejada inquilina que se alojou na alma, minha mãe sentada, de mãos nos joelhos, na minha cama, o paradigma da prostração, a informar-me da partida de meu pai (“Sabes, já não tínhamos conversa. Chega uma altura, na vida de todos os casais, mais cedo ou mais tarde, que isso sucede. Nessa circunstância, ou se procura o mundo do outro, para o verbo continuar a servir de ponte, ou o silêncio tornar-se-á ensurdecedor. Creio que, no nosso caso, foi por aqui…”), como tinha razão, eu, na altura, aquém de tais desígnios, limitei-me a ouvi-la, de onde estava, à secretária, mas lembro-me bem, cresceu-me uma onda de compaixão, quis abraçá-la, confortá-la, secar-lhe as verticais linhas salgadas que lhe desciam pelo rosto, contudo, permaneci imóvel, vencida pelo pudor, creio que nem a expressão consegui alterar, afinal, era habitante de um lar de silêncios, desde ali, pouco se alterou na rotina lá de casa, apenas denotei ainda menos ecos, afinal os passos de meu pai foram noutra direcção, aqui chegados, cresceu-me uma certeza: éramos de facto estranhos a partilhar um tecto! Como pôde, num repente da vida, deixar-nos, sem sequer uma palavra? Em verdade, doeu-me mais a ausência de um “adeus”, do que propriamente a sua partida. A facilidade com que se vira costas é proporcional ao carácter! Da parte de meu irmão, apenas registei, creio, a mudança da capa que lhe velava o rosto, pouco mais, minha mãe deve tê-lo informado igualmente no seu quarto, não raras vezes, enquanto arrumava a louça, apetecia-me partir um, dois ou mais pratos, para haver um pouco de barulho entre aquela paredes, no fundo, para me sentir viva, desconheço o porquê daquele naufrágio, ou talvez não, neste particular, as palavras daquela tarde, prostrada, com as mãos nos joelhos, espelharam o acontecer, conheceram-se no interior, eram de aldeias próximas, um percurso natural (em verdade, não sei o que é), o namoro, casamento, o apelo da cidade, porém, foi nele que mais ecoou, ela sempre reticente, os pais, a carência de horizontes, rostos conhecidos, acabou por ceder, e mudaram-se, ele bibliotecário, ela também na autarquia, mas noutro departamento, aquando férias ou fins-de-semana prolongados, de imediato, ela apontava à aldeia, pelos pais, sogros, um problema com a delimitação de uma terra, tudo era pretexto, ele contra-argumentava com um novo restaurante, de aromas e paladares longínquos, que deviam experimentar, os bilhetes mais baratos, para o futebol, que um colega arranjara, a estreia de um filme há muito ansiado, tudo era motivo para não regressar, inversamente tudo nela gritava por horizontes de há tanto, aqui começaram a olhar em direcções opostas (algum dia olharam na mesma? Os equívocos, pois, os equívocos…), e a caminhar também, desconheço se entre eles chegou a haver paixão, pelos relatos chegados da sua história, por avós e conhecidos, não me parece, embora a paixão não seja mensurável, o amor, num determinado sentido, sim, pode ser mensurável, a paixão não, é como uma febre de que somos acometidos, só há um horizonte, nada mais, o resto do mundo torna-se um acessório inútil, desde que me lembro, nos seus gestos e olhares, nem resquícios de um incêndio ido, uma distância e lisura no trato inversamente proporcionais a fogos e tormentas, acho que foi nos olhares, talvez por não se demorarem assim tanto, é natural, ela almejava distâncias, ele um labirinto ruidoso onde se pudesse esconder, ou perder, foi minha avó materna, certa noite, diante da lareira, que, não sei a que propósito, levantou a questão, foi depois daquela tarde, prostrada, mãos nos joelhos, desde então, sempre que a carteira permitia, rumávamos para a aldeia, regra geral, somente eu e minha mãe, nessa altura, meu irmão já na faculdade, cursava letras, escolha óbvia, curioso, às vezes acreditava que ele ia às aulas para ver se os professores ensinavam bem, outras esperava somente que os anos passassem para levantar o canudo, mas falava de um serão de lareira, um serão com sabor a meninice, pensava eu, as ondulantes chamas despertavam a menina adormecida no rosto de minha mãe, percebia-lhe uma alegria aquietada, tão distante de mãos nos joelhos, lembro-me bem, meu avô já se deitara, hábitos de há muito, neste mundo existem lugares onde a vida começa cedo, minha avó com a tenaz a juntar toros foragidos para o lume não esmorecer, olha o rosto da filha, sem nunca largar a tenaz, e “Já pensaste, tudo podia ser bem diferente… Bastava que, naquele dia, o…”, a frase silenciou-se-lhe porque o olhar a lembrou da minha presença, ao ouvi-la, desenhou-se sonho na face da filha, para meu espanto, respondeu “É bem verdade, minha mãe, é bem verdade”, bastava um gesto ter-se aquietado, um olhar demorado, talvez um passo subtraído, e o hoje uma soma distinta do ontem, minha avó  prosseguiu, não sei porquê, intuí que iam abrir divisões por mim desconhecidas, apesar de, desde sempre, conhecer a fachada do edifício, “Ninguém estava preparado para aquilo! Bem sei, vou repetir-me, mas há dias que nunca deviam ter existido! Esse foi um dos tais! Eu sabia onde vocês se encontravam, no lagar-seco, não é verdade? (Li um espanto infantil no olhar de minha mãe, como se lhe revelassem algo encoberto há pouco, e, realmente, foi há tanto, quase numa outra existência, que as palavras de sua mãe traziam para o agora, como se tudo ainda respirasse.) O teu pai nem desconfiava. Mas, sinceramente, nunca me ralei muito, bastava ver-vos a caminhar juntos, sabia que iam em direcção ao amanhã (...)