Livros

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quinta-feira, 31 de agosto de 2023

sábado, 26 de agosto de 2023



... simplesmente o olhar de cada um indicia a sua própria miséria e jamais a condição de quem olham...

in Nascer

domingo, 20 de agosto de 2023

Se cá voltar, lembra-me que te perdi…



Debruçava-me para a bacia da roupa, plástica, azul, aqui e ali um pouco desbotada, já me acompanhava há uns anos (nesse entretanto, de quanta roupa não me despedi?), uma das pegas, talvez a do lado direito, não sei bem, ameaçava ceder, tantas estações já carregou, porém, o Verão sempre mais leve, como dizia, debruçava-me para a bacia, um ardor pela zona lombar, desde há uns tempos, sempre que me dobrava, do ardor à dor nem era preciso reerguer-me, tinha de marcar uma consulta, talvez a conseguisse para daqui a três meses, sabia que, depois, exames, mais exames, mostrar os resultados, nova consulta, outros três meses, entretanto, já passou mais de meio ano, e a dor a agudizar-se, se visse uma radiografia das minhas costas, sabia o que esperar, uma curva como a dos mapas, a consternação a crescer-me, a autocomiseração também, teria de me despedir da bacia da roupa, plástica, azul, aqui e ali um pouco desbotada, e o meu marido que nunca quis conhecer a bacia da roupa, não o podia censurar, também sofria das costas, sempre com histórias intermináveis dos bicos de papagaio, no início, ainda pensei que tivesse algum fascínio por aves exóticas, só depois é que lá cheguei, se bem que, quando fechamos, como deve ser, a porta do quarto, o raio do miúdo não pára quieto, nunca sabemos quando está a dormir de facto, não lhe noto quaisquer resquícios de aves exóticas, pelo contrário, revela um apetite bastante felino, se bem que, nos últimos tempos, fechemos a porta cada vez menos, os dias passam a correr, e depois há a bola, e mais bola, e programas intermináveis a falar, claro, de bola, ele não perde um, coitado, gosta de estar actualizado, não o posso censurar, sempre que o clube dele joga, é vê-lo num alvoroço, ora ri, como logo a seguir pragueja, os braços do sofá, coitados, quantos murros têm para contar, insulta, berra, bate os pés, é curioso, nunca o vi zangar-se com um dos braços do sofá pela crescente anorexia do ordenado, nada, nessas alturas, aporta em casa com um ar de cão sofredor, que carece de abrigo e compreensão, logo eu desarmada, a correr em seu auxílio, aí sou eu que praguejo, os braços do sofá, coitados, quantos murros têm para contar, insulto, berro, bato os pés, às injustiças do mundo, neste caso, sob a forma dos seus patrões somíticos e gananciosos, ele com a cabeça no meu peito, a anuir às minhas imprecações, quando a voz se me cansa, opto por lhe passar as mãos pelo cabelo e embalá-lo para longe de braços de sofá e de recibos anorécticos, apesar de tudo isto, lá vamos somando dias, não tenho muito por onde me queixar, não me falta com o essencial, o que já é bom, também não gosta por aí além de bebida, aqui só posso levantar os braços aos céus, o vizinho do terceiro andar, por exemplo, pelo menos duas a três vezes por semana, em cantoria escada acima, demora mais de uma hora a subir os três andares, a Dona Augusta, coitada, a máscara da vergonha, nos dias seguintes até nos evita encontrar, é compreensível, logo ela, uma senhora tão bem-posta, com um porte altivo, quem diria, sempre um mundo entre uma porta que se fecha e quando se abre, é a vida, diriam alguns, também já lhe ouvi gritos, coitada da Dona Augusta, talvez nesses momentos se dilua um pouco daquele porte altivo e acabe por ficar menos bem-posta, e possível, uma vez apanhei o meu marido, da janela da cozinha, andava eu com a bacia da roupa, plástica, azul, aqui e ali um pouco desbotada, já me acompanha há uns anos, pela varanda, a acompanhar pormenorizadamente cada passo da Dona Augusta, lá em baixo, no passeio, percebi-lhe, no olhar, o apreço por portes altivos, e eu, debruçada para a bacia, logo um ardor pela zona lombar, desde há uns tempos, sempre que me dobrava, do ardor à dor nem era preciso reerguer-me, a não apreciar nada aqueles olhos gulosos, assim que me percebeu, foi logo para dentro, ao menos, tinha destas coisas, e vê-lo a brincar com o filho, parecem duas crianças, no fundo, são-no, ainda nos faltam mais de quarenta anos para pagar a casa, hão-de passar, um dia de cada vez, já dizia a minha saudosa mãe, de facto, não tenho muito de que me queixar, ele nem quis que eu trabalhasse, ainda argumentei, mas foi taxativo, O que ias ganhar, nem dava para pagar uma creche, não sei bem porquê, optei por não lhe responder dessa vez, afinal, se ainda não tinha emprego, como é que podia falar dos meus proventos, enfim, uma daquelas coisas que mais vale fingir que não vivemos, o problema, com a idade, é que essas coisas nos começam a exigir cada vez mais espaço, pois, a ilusão do esquecer, apesar de tudo, repito, não tenho muito de que me queixar, ele evita os turnos da noite, o que, para mim, é um descanso, mesmo de dia, já se sabe, basta abrir os jornais, sempre que ouço a notícia de um assalto a um taxista, quase deixo cair a bacia da roupa, plástica, azul, aqui e ali um pouco desbotada, não, por aqui, está tudo bem, se me perguntassem se ele foi a minha primeira escolha, como não sou mentirosa, teria que dizer a verdade, mas o que lá vai, lá vai, tenho é de cuidar das minhas costas, não vá ele chegar, quem sabe se com um apetite felino, e se o miúdo na rua a jogar à bola, nem haver a preocupação de se fechar uma porta como deve ser. 

segunda-feira, 14 de agosto de 2023


... um pouco como aqueles que, a vir de um enterro, mesmo antes de sair do cemitério, questionam: O que é o jantar? A vida é isto!

in Nascer

segunda-feira, 7 de agosto de 2023


 

Talvez um dia a vida se canse de tanto subtrair…

 


Era indesmentível o seu receio ao olhar, dali do passeio, a entrada do edifício, apesar do constante entre e sai de gente, alguns de bata branca, a alvura a pacificar corações em certa medida, no entanto, sempre dependente da distância entre o olhar e o coração, e ela, neste momento, longe destas equações, no fundo, está longe de tudo, desde aquela tarde, há uns dias, em que a frase trivial de um emissor, se tornou numa noite sem manhã no seu pensar, meses antes, começou a acordar e adormecer com aquela estranha sensação no peito esquerdo, uma rigidez que lhe afectou igualmente a mobilidade do próprio braço, pensou num mau jeito qualquer, o pensar, primeiro, procura sempre o aligeirar das coisas, talvez não o pensar, mas o sentir, os dias sucederam-se, a rigidez permaneceu, o braço espartilhado por algo que crescia em si, ela sentia-o, como se o simples movimento disseminasse esse intruso, certa noite, quis falar-lhe, mas sem saber muito bem porquê, desviou o tema para uma qualquer vulgaridade balizada entre uma factura que aguarda recibo ou as horas do miúdo na manhã seguinte, ele não reparou nas demoras dela diante do espelho, em verdade, já pouco reparava nela, tinham chegado àquela fase da partilha de um tecto, e pouco mais, também de um despojo para o futuro, com apenas seis anos, à noite, ele sentava-se no sofá, de luzes apagadas, o ecrã sempre iluminava qualquer coisa, porém, ele nunca foi de televisões, levava a mão ao bolso, e acendia o passaporte para um qualquer lugar, desde que se perdesse de si, assim ficava, até adormecer, poucas não foram as noites ali dormidas, ela não se importava, percebera, a seu tempo, mas já demasiado tarde, sempre o despojo, de seis anos, que eram dois estranhos, nunca elevaram vozes, quando assim é, ainda há sinais de luta por uma qualquer coisa, no seu caso, não, limitaram-se a afastar, gradualmente, como o navio que zarpa e o cais que permanece, até que nem horizonte, ela conformada com o trabalho ao balcão da farmácia, conferia-lhe um ar asséptico, com os anos, talvez a assepsia se tenha alastrado para o sentir, é uma possibilidade, pensava ele, que errava de emprego em emprego, não me sinto realizado, era uma frase recorrente a cada trimestre, tempo médio de permanência em cada trabalho, até que os trabalhos entraram em extinção, e ele viu-se ultrapassado pelos tempos, ou pelo que os homens querem que os tempos sejam, o seu quotidiano entre um cilindro fumegante, passaporte para um qualquer lugar, desde que se perdesse de si, e aquele café esconso, pródigo em sombras que ocultam sentires, entretanto, no meio de tudo, sempre o despojo, de seis anos, por vezes, quando chegava a casa, ela encostava-se à porta de olhos fechados, pousava a carteira e assim ficava, o tempo necessário, chegou, numa dessas vezes, a concluir que, na realidade, é um tecto que nos apresenta o outro, antes de se endividarem por um apartamento, e de surgir o despojo, de seis anos, ele sempre tão atencioso, tão solícito, a sua voz apenas entoava utopias e música, longe de não me sinto realizado, nessa altura, ela anuía às utopias e sonhava sob o enlevo daquelas canções, a vida é tão curiosa, ele apresentou-lhe horizontes, ela ensinou-lhe chão, no fim, ambos se perderam, agora, ali, no passeio, diante da entrada daquele edifício, leva a mão ao bolso, segura na firmeza possível a réstia de esperança, sob a forma de pedras oradas, que a sua avó lhe legara, assim entra, entoando aquele murmúrio secular que mais não é que trazer um pouco do céu à terra dos homens, depois dos exames, oscilantes entre dor e humilhação, o peito desnudado, escrutinado, espalmado numa máquina com o seu quê de tortura medieval, a espera, e mais espera, por fim, outra frase trivial de um emissor, se tornou numa noite sem manhã no seu pensar, Vamos precisar de fazer mais umas análises, para termos um resultado mais conclusivo. Até lá, evite realizar esforços, como poderia ela evitar esforços, se, desde há tanto, um tecto lhe ensinara o esforço do outro, deram-lhe uns comprimidos para atenuar a rigidez, e a dor no braço, olha o relógio, já passa da hora do filho, mesmo assim, o autocarro, se ele se esqueceu, o miúdo no desespero de uma espera solitária, com apenas seis anos, meu Deus, seis anos, e já com o saber de que é um tecto que nos apresenta o outro.