Levantar
Caminhar
Cair
Nós somos feitos do mesmo estofo dos sonhos, e a nossa curta vida está
encerrada entre dois sonos.
Shakespeare
(in A Tempestade)
… pois a vida e a morte são uma só coisa, como uma só coisa são também o
rio e o mar.
Tende fé nos sonhos, pois neles
se encontra a porta da eternidade.
Kahlil Gibran
Levantar
I
O tempo é o homem
Os primeiros acordes do alvorecer
insinuaram-se na penumbra. A luz sempre encontra uma forma de se anunciar. De
se dar a conhecer. É da sua essência. Nessa manhã, ele encontrou-a na porta do
armário. Como se lhe relembrasse uma urgência: talvez a da vida. Assim ficou: a
descobrir os veios de uma porta, subitamente revelados. Cansou-se. Afinal, todo
tem o seu tempo. E o tempo é o homem. Subiu a perspectiva, e observou as
partículas dançantes, felizes e aquecidas, naquela chaga das trevas. Estariam
só ali? Embaladas por aquele vestígio de felicidade? Desde quando? Levantou-se.
Arranjou-se. Antes de sair, olhou para ela, que, através do rosto, transparecia
o indizível de uma felicidade de outras paisagens. Por fim, saiu.
Encontrou a sala de refeições, àquela
hora, já com bastante gente. Na sua maioria casais com filhos. Colocou a chave
numa mesa e foi-se servir. Esperou algum tempo pela sua vez. Sentiu, no ar, a
urgência do açambarcamento, como se fosse um imperativo encher os tabuleiros,
uma forma de equilibrar as contas. Talvez a recepção, avistada através das
portas de vidro, potenciasse este súbito e repentino apetite. Chegada a sua
vez, avançou. De súbito, viu-se ultrapassado por um garotelho, com os seus dez
anos, que se precipitou, numa urgência sem retorno, a reabastecer a caneca e
respectivo cesto de pães e croissants. Ficou siderado. Não tanto pelo gesto do
garoto. Mas sim pela forma, que denotava grande experiência, com que o
executou. É um outro mundo, pensou.
Ao qual não queria pertencer. Admirou-se como o tabuleiro, sustido pela mãozita
de uma década àquela velocidade, sem vislumbre de inclinação. Ele tinha que
agir. Aproximou-se do miúdo por trás, enquanto este aumentava consideravelmente
o peso do tabuleiro, e pisou-lhe, como se tratasse de um singelo acidente, o
calcanhar direito, o que fez com que o ténis saísse. O garoto, entre o espanto
da pisadela, o olhar para trás e manter o tabuleiro equilibrado, a escolha de
doce ou de mais fiambre, acabou por ficar a meio caminho, e ele aproveitou para
o ultrapassar, saúdo-o com um sonoro Ah,
peço imensa desculpa, e no seu íntimo regozijou-se pela vitória do passado
face à ignomínia do presente.
II
Uma sombra vertical proclama harmonia
O seu olhar, neste momento, perdia-se
entre o espectáculo em volta e um solitário que se equilibrava, em harmonia
messiânica, numa exígua canoa no meio do grande lago, emoldurado pelas janelas
da sala. O dia amanhecia, de novo, pardacento, como se esse véu emergisse das
águas, e colorisse os céus. O solitário das águas estava, agora, num estatismo
arrogante. Como se apelasse a um artista anónimo. Como se cumprisse um ritual.
Como se aquele fosse, de facto, o seu lugar no mundo. Ele pousou, nesse
momento, a chávena com mais leite do que café. O seu olhar apenas naquela
sombra vertical – que proclamava harmonia.
Ele, agora, era o outro: na imobilidade,
no equilíbrio da chávena, na arrogância de uma certeza, no silêncio de um grito
por um olhar. Num lento adeus, a canoa afastou-se, e ele ainda ficou um pouco
assim: entre o encantatório do movimento e a efémera memória do Sentido.
Tudo se diluiu, na estridente dor de
uma chávena, desafiadora de gravidades. Também ele caiu no desconforto de si. Estremeceu,
primeiro. Depois, buscou a génese do estrépito. Sem saber muito bem o porquê.
Sim, soube desde logo que se tratava de uma chávena. Então, porquê esta quase
obsessão de localizar, no espaço da sala, o ponto exacto da ocorrência, e
visualizar o rosto do infeliz? Ele não o sabia. Apenas sentiu, em si, esta
necessidade, quase orgânica… Tinha sido uma criança, a fonte do seu súbito
desassossego. Crianças e ruído são íntimos de há muito. Não desistiu do epílogo
da caneca. Esperava, sabia que em vão, pelo castigo do meliante. Acabou por
emergir: a mãe afagou-lhe o cabelo, o rosto do pai sustentava o sorriso
apatetado daqueles que não vincam o solo. Não, ele já não pertencia a este
mundo. Olhou cansado o absurdo de uma cena recorrente. Enquanto o fazia, apoiou
o rosto na mão direita. Por fim, suspirou… Longos corredores, silêncios
obedientes, temores aquém verbo, imagens que revisitava balizadas pelo infinito
de uma expiração. Na velhice, o futuro reside no passado. Só assim tem sentido.
Afinal, de que outro modo o podiam encontrar? Esta é uma das grandes verdades
da vida: passado e futuro, com o tempo, acabam por se fundir.
E ali estava ele, sozinho a uma mesa,
oscilando entre o grande lago, no exterior de uma natureza paciente pelo sempre
adiado regresso, e o civilizado ruído
do movimento interior da sala. O seu olhar, reflectido na caneca, anunciava
fim. Apesar de terminado o café com leite, ainda permaneceu sentado. Outrora,
sentir-se-ia constrangido pela solidão. Nunca se deu bem consigo mesmo.
Achava-se insuficiente. Sempre careceu de um espelho. Pelo menos um que o
sossegasse. Só, sentia o apelo da elipse, e, do abismo de si, sempre emergia
envolto nas roupagens da inquietude e da desilusão. Ao longo da vida, sempre se
compadeceu daqueles cavalheiros que ocupavam, numa proclamação de derrota, uma
mesa, de um qualquer restaurante, sem saber muito bem porquê… E porquê esta
analogia com a derrota? Porque não associava ele, a imagem de um homem só, a
uma mesa, com a de um farol, por exemplo? Afinal, solidão e luz são velhas
companheiras. Não, ele não conseguia. Os seus olhos partiam sempre toldados por
um véu de tristeza. Quem o terá bordado? Que delicadas mãos terão confeccionado
tal peça, indelevelmente inquilina de sua alma? Sempre esta fonte inexorável de
questões… E respostas, onde? E uma mulher só? Sem saber muito bem o porquê, não
se compadecia tanto. No fundo, ele sabia há muito que o porquê é a porta
da desculpa. Uma mulher, só, encerra em si uma aura de dignidade – daí a
naturalidade de uma viúva –, um homem sozinho é o rosto do abandono e da
incompletude – e de viuvez, estamos conversados!
Agora, olha o lago. Soube, há poucos
dias, que lhe chamam a Lagoa Adormecida. Sim,
faz algum sentido. Porque adormecer inspira tranquilidade. Dormir, já não. Mas
aquelas águas apelam a sonhos tranquilos. Por contraste com as manhãs daquela
sala de refeições. No fundo, aquele espaço em nada difere das salas de
refeições dos outros hotéis. Há um lastro comum de excitação e de bocejo: o que
origina estados de espírito a roçar a insuportabilidade. Continuou a observar
os seus vizinhos da manhã. Numa mesa distante, um casal de anciãos, com a sua
digníssima coroa prateada, saboreava a refeição com gestos lentos, próprios de
quem já assimilou o saber dos pequenos nadas – o sempre tardio saber da vida –,
ela muito direita, poucos imaginam o esforço da pose, ele mais curvado, mas
numa curvatura honrada, de vez em quando uma palavra, o resto num harmonioso
silêncio dialogante, como se nada fizesse sentido naquela sala sem a sua presença.
Do casal infantilizado e da sua cria, já falámos. Numa mesa próxima, havia
outro casal com duas filhas adolescentes. Reinava entre eles um respeito
traduzido nos gestos. Nos gestos, não. Mas sim na sobriedade com que os executavam,
como se tivessem uma profunda consciência do cerimonial que preside a uma
refeição. Como se só sob esta luz, o acto de se sentar a uma mesa tivesse algum
sentido. Tudo ali era lentidão e silêncio. As raparigas contrastavam a idade
com a parcimónia dos gestos. Apesar de cumprirem os requisitos etários da moda,
exalavam uma aura de anacronismo indecifrável. O pai era um sujeito anafado, com
a ruralidade bem visível no rosto, apesar dos subsequentes anos de urbe, a mãe,
inexplicavelmente, só se faria notar no quadro familiar. Sim, ela ali estava:
era a mãe… Mas, em qualquer outro contexto, o seu lugar seria o da
invisibilidade. Uma dessas pessoas que nem a memória ilumina. As raparigas,
pelo contrário, talvez se iluminassem fora daquele palco. De certa forma, era
como se representassem, não, não é bem isso, havia uma fatalidade que lhes sombreava
a face, uma aceitação incondicional de um cálice amargo, por uma esperança
algures reconhecida. Ele continuou a observá-los, com uma curiosidade
crescente. A forma cerimoniosa como o patriarca limpou os lábios, análoga à de
um sacerdote durante a eucaristia, como se uma multidão observasse o seu mais
ínfimo movimento, e uma palavra adveio-lhe ao espírito: uma palavra de outras
paragens, eivada do espontâneo, com outros protagonistas, outros ritmos… A
palavra felicidade. Quão longe daquela mesa! Estaria a ser injusto? É possível…
Não, ali não havia vestígios de risos, de… Mas é isso a felicidade? Risos,
movimento, brincadeira? Não haverá outras manifestações? Em alguma parte de si,
ele compreendeu a tranquilidade emanada de cada gesto, a leveza do silêncio
(tão rara de encontrar), a comunhão subterrânea daquelas quatro pessoas. E esta
sintonia, não se poderia denominar de felicidade? A resposta, demasiado óbvia,
verbalizou-se pela voz sem voz de si mesmo. E continuou a olhar aquela família,
seduzido pelo véu da felicidade inaudível dos gestos.
III
Quando o apelo da madrugada se desvanece
Saiu para o amanhecer cinzento. À sua
frente, o lago. Atrás, o edifício, de dois pisos, do hotel. As cortinas
fechadas, do seu quarto, denunciavam o sono da mulher. Dirigiu-se para a margem.
Estranho este fascínio humano por margens e água! Deixou-se estar, de mãos
atrás das costas (uma última tentativa de resistir à gravidade), a ouvir as
águas e a sentir o afago sedoso da neblina no rosto. Uns metros ao lado, um
sujeito preparava uma manhã de anzóis e paciência. Aproximou-se dele, enquanto
este se debruçava sobre baldes e iscos de longa espera. Saudou-o com um Bom-dia, entre o educado e o alegre, a
indiciar ao outro predisposição para a conversa. O indivíduo levantou os olhos
dos baldes, e retribuiu um Bom-dia enformado
de cautela e surpresa.
- Então,
por aqui abunda o peixe?
- (O sujeito olhou-o o tempo que
considerou suficiente. Entretanto, devolveu à terra algo que trazia emprestado
na boca. As bocas lusitanas são pródigas nestas devoluções às origens.) A sua cara não me é estranha!
- (Não esperava esta resposta. Sentiu
um desconforto crescente. Recuou um passo, para melhor se equilibrar do golpe
verbal. Sim, é verdade, nunca gostou desta frase. Sempre a interpretou como uma
ameaça velada. Como a promessa de uma reminiscência dolorosa. Mas que ameaça
poderia conter aquele humilde homem àquela matinal hora? Todas! É a resposta. Porque ele via-o com o seu presente, passado e
futuro. Cada homem assim vê o mundo. Raramente olha a realidade fora deste
espartilho. Quando assim acontece, está para além dela. E nessas ocasiões, esta
sob a inebriante espiral da liberdade: sem ontem e sem amanhã. No fundo, sem o
tempo. Mas, como anteriormente se afirmou, o
tempo é o homem, e se esta é a sua medida, ou uma das possíveis, que homem
é esse para além da sua mensurabilidade? Ele conhecia a resposta, sempre
aspirou a um Absoluto, sob as mais
diversas formas ao longo da sua vida. Já lá iremos. Neste momento,
confronta-se, à beira de um lago, com um sujeito que o perturbou com uma
exclamação corrente.) Não sei como! Somos
da capital. (Refugiou-se num chavão chauvinista e deselegante: próprio de
países que vivem a duas velocidades).
- Se
é por aí, também já por lá andei. E não guardo saudades. Mas a sua cara não é
da capital que recordo (A capital não tem rosto. Sim, são faces sem rosto,
pensou ele, enquanto o ouvia.). É de
outro lugar…
- Lamento
desapontá-lo, mas não estou a ver de onde será.
- Está
aqui hospedado?
- Sim.
- E não tem familiares por aqui?
- (O cerco
estreitava-se. Aqui chegados, só restavam duas alternativas: a fuga ou a
hostilidade. Nenhuma delas se lhe afigurou atraente, sobretudo àquela hora.
Após a questão, baixou os olhos instintivamente, e apercebeu-se de que toda a
sua aparente sofisticação citadina ruíra perante a argúcia de quem observa a
metamorfose lenta das coisas.) O que o
leva a concluir isso? (Optou pela primeira, camuflado pela questão.)
- O
seu rosto, já lhe disse. (O sujeito emanava uma espontaneidade, nos gestos
e na voz, que começava a irritá-lo. Falava com a mesma naturalidade com que
tratava das lides. Um dom só ao alcance daqueles que conhecem e sentem as
texturas das coisas.)
- (Acabou por capitular.) Sim, tive. Mas já não me resta nenhum. (Afastou-se,
no vagar de uma indesejada reflexão.)
Regressou ao quarto. Ela já acordara.
A porta da casa de banho estava entreaberta e ouvia-se a cascata matinal do
duche. Ele aproveitou para abrir a cortina e assomar à varanda. Sempre gostou
daquele cenário: horizontes por alcançar, as águas sussurrantes (ou serão águas
sonhadoras?), as copas impressionistas da outra margem… Transmitia-lhe
serenidade. Assim ficou, encostado à porta de vidro, de mãos nos bolsos, não a
olhar, mas a sentir o silêncio melodioso das águas. Recordou aquela vez, há
muito passada, em que acompanhou, precisamente dali, a lenta e cantada aparição
do nascer do mundo. Nessa altura, o alaranjado do horizonte soube-lhe a
vastidão. Já não se recorda de há quanto tempo foi, parecia-lhe, agora, ter
sido numa outra vida. Sim, é verdade, quantas vezes se morre e nasce ao longo
de uma vida? Ele também já fora outro. Ou outros… Quem é ele agora? Acordara,
nessa madrugada longínqua, sem porquê. A seu lado, dormia aquela que já
partira. Sim, estamos sempre a deixarmo-nos. Ele levantou-se, numa ânsia
crescente de harmonia, desvelou um pouco a cortina, correu a porta de vidro, e
saiu para a varanda por amanhecer. Ainda os distantes pontos luminosos no tecto
nocturno, aqui e ali o salto de um peixe, cantos da madrugada em aparente
dissonância, e ele sem a obstinação do pensar, apenas a leveza do sentir,
submerso nas sensações de uma aurora irrepetível, recorda-se de fechar os
olhos, assim que sentiu um tímido calor no rosto, e da sua voz se juntar a um
coro imemorial de saudação ao ser da vida.
Nunca mais experienciou tal sensação
de plenitude. Também o apelo da madrugada se desvanecera. Sim, há coisas que se
deixam pelo caminho. E outras que se apanham? Não, o caminhar da vida é uma
crescente solidão. Ele regressou ao interior do quarto, na mesma altura em que
ela saía, enrolada numa toalha, do seu banho. Sorriram-se.
- Não
me acordaste…
- Preferi não fazê-lo. Precisavas de uma noite assim.
- Sim, há muito que não me conciliava com o sono.
Enquanto falavam, ela primeiro
desvelou-se, para depois escolher a sua roupa. Ele, fruto da experiência,
preferiu sentar-se. Observou, num encantamento espantado, e com um natural
sabor de primeira vez, a feminilidade dos seus gestos. O feminino. Uma graça
liberta de qualquer resquício de gravidade. Em cada gesto, ela inteira. São
gestos cantados, cantantes, pensava ele. Ora aqui, ora ali, a forma de pegar
numa peça de roupa, de a olhar, numa análise além tempo, como se aquele acto,
revestido de uma falsa aparência de futilidade, contivesse, em si, o futuro de
nações. É curioso, nunca se ouviu alguém nomear uma flor de fútil. Por ser
bela, por ser colorida… No entanto, uma mulher, que procure os mesmos
desígnios, expõe-se a tal impropério. E qual é a diferença entre uma mulher e
uma flor? Não sei, ainda não a descobri. Se alguém já a descobriu, deixo-lhe
este espaço, de seguida, para o preencher.
Após
deixar cair a toalha, sucedeu-se um silêncio. Como aquele particular silêncio
indizível entre as notas de uma peça. E nem o esquecido passar dos anos, disfarça
o embaraço da nudez. Ele vestido, chegado da varanda, ela saída do banho,
apenas com a toalha. O arranjar-se. A toalha, de repente, a seus pés. Ele
disfarça, sentando-se. Continua a conversa de ocasião. Ela, nua, escolhe o
enxoval do dia. E ele procura manter, ao longo da conversa, os olhos com os
dela. Mas ela está nua! E o tempo não apagou, por completo, a vontade do um. O
olhar dele acaba por descair. Era uma questão de tempo. Mais de oportunidade. A
gravidade já fez os seus estragos naquele corpo. E, nestas coisas, o tempo é um
aliado precioso. O corpo, com o tempo, assemelha-se mais a um mapa. Todavia, ele
olhava-a além tempo. Era, ainda, um olhar de início. Sem mapas, estradas,
curvas, trajectos sinuosos… Daí que ela lhe surgisse envolta naquele brilho, de
há tantos e tantos anos atrás, e ele, de lábios ligeiramente entreabertos, não
a olhava, olhava-se, sim, a si mesmo, num espanto interior perante uma
revelação… Que idade teria? Ao certo não se lembra, apenas se recorda de
conhecer a gilete há pouco tempo, mas vê-se, a si mesmo, sentado naquele sofá,
com um tecido creme pontuado por umas cornucópias verde-escuras, à frente uma
estante com pouquíssimos livros, no meio espaço para a televisão, era uma sala
rectangular, pequena, apenas espaço para o sofá, estante, e, à sua direita, uma
mesa redonda com quatro cadeiras. À esquerda, uma pequena varanda,
transformada, como sempre acontece por estas paragens, em marquise. Provinha
daí uma ligeira aragem. Bastante agradável. Esta não era a sua casa. Talvez a
de um amigo. E foi aí, sob a leveza dessa aragem, que ela se lhe revelou.
Apenas isso. Ele, lábios entreabertos, sem saber que postura assumir, e um
desejo obstinado de gravar cada detalhe, mas apercebia-se do malogro dessa
aspiração, tal o inebriamento do instante. E, neste exacto momento, ele
apercebe-se de uma aragem vinda de tempo incerto. Não, aqui não há estantes de
poucos livros, sofás com cornucópias verde-escuras, mesas redondas
circunscritas por quatro cadeiras, nem marquises, mas persiste aquela peculiar
aragem, tépida, agradável, que convida a olhar o presente de lábios
entreabertos.
IV
Um silencioso e horizontal espelho de pedra
Seguem, neste momento, por uma estrada à sombra, ora
de pinheiros ora de eucaliptos. Ele concentrado. Em silêncio. Ela, a seu lado,
olha a paisagem. Apreciava aquele cenário. Bosques cerrados que dão lugar a
campos agrícolas, longos vales atravessados por rios caudalosos, horizontes que
prenunciam céus e alturas…