Livros

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quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

Há noites que nos engolem a alma


Deixou cair a pesada mochila, com uma incontida expiração de alívio, num dos degraus, sem precisar qual, e, de seguida, sentou-se. Ladearam-no três ou quatro colegas de ofício, e pensaram a noite. Concluíram o fraco pecúlio de hoje, e, já luzes da cidade acesas, decidiram-se pelas arcadas ao cimo dos degraus. Antes da mochila ao ombro, ele pára, apenas para inspirar, e inicia a vitória dos seis ou sete degraus que o separam do anunciado repouso. Os colegas já de sacos-camas estendidos, ele ainda na perplexidade do momento. Sim, primeira noite de estrelas, no olhar, e de lajes, nas costas. A diligência dos outros denotava o dia da partida do lar. Ele ainda com movimentos renitentes, uma delas em seu auxílio, a esteira, depois o saco-cama, um sorriso aquecido que contrastava com o frio galopante da madrugada. As sandes do almoço já distantes. Resolvem partilhar os créditos do dia. Dois partem em busca de mais sandes. Os restantes permanecem sob as arcadas, na salvaguarda dos aposentos. Ele fica, a perplexidade tolda-lhe os movimentos. Uma questão aflora-lhe ao espírito, numa inquietude latejante. Ele procura adormecê-la, mas o seu ser asfixiado pela dúvida: Quantos passos percorrera para ali chegar? Àquele preciso cimo de escada. Às arcadas daquela secular igreja. E a resposta, como sempre acontece às nossas dúvidas, distante. Ainda se fosse uma questão de outro! Para essas, a resposta à distância do nosso bolso. Há quanto tempo partira? Partimos tantas vezes de nós! Deixamo-nos tantas vezes abandonados no mundo. Para nos escondermos naquele lugar só nosso. Sim, aí estamos sempre a salvo. O desconhecido torna-se um país longínquo. O olhar dele no rio caudaloso do trânsito. Por vezes, detém-se nos ocupantes. Se o vissem ali… Mas afasta este pensar, e permanece algures entre o orgulho e a vergonha, sem saber de onde se aproximar. A rapariga do sorriso aquecido estende-lhe uma cilíndrica e fumegante fuga botânica. Ele agradece, entre ombros encolhidos e sorrisos tacteantes. Inspira, o seu olhar abandona as janelas do trânsito e sobe para a noite do mundo. Que horas seriam? Do porto de onde partiu, seria a hora da refeição nocturna. Cumprir-se-ia sem ele? Aquece os lábios com uma nova inspiração, a natureza sempre o acalmou, as ideias fluem, compreende, agora, as questões nascidas de um desejo: a súplica por um sentimento. Com certeza, já nem o prato dele depositado na mesa, certamente o banco que ele ocupara a segurar um vaso, a noite, como sempre, entre novelas e crochê, talvez, muito ocasionalmente, falem daquele barquito que zarpou para rotas indesejadas. Quantas vezes Tens de estudar, meu filho! Hás-de ser doutor, quer queiras ou não! Não queres dar uma alegria aos teus pais? Mas ele quis, apenas, ser livre. Abraçar o mito de um mundo de canções, partilha, e estrada. Preferiu a leveza das missangas, vendidas nos passeios, ao peso obscuro dos corredores académicos. Certa noite, de mochila às costas, após mais gritos incomunicantes após o jantar, decidiu-se. Ainda os olhou, estavam na sala, como sempre àquela hora, absortos na trama circular de mais uma novela, cresceu-lhe compaixão por eles, sim, naquela altura, ainda pensava mudar o mundo. Fechou a porta, desceu dois ou três degraus, e nada se alterou no interior daquela casa. O único eco interior provinha da televisão, sempre demasiado alta, nada mais. Nesta noite, a primeira de estrelas e lajes, hoje as missangas nem para aquela pensãozita mesmo em conta, começava, na clarividência de um estômago suplicante, a compreender quantos passos percorrera para ali chegar. Os das sandes regressaram. Procedeu-se à partilha. Após a ceia, cada um refugiou-se em si. No fundo, todos zarparam de portos distintos. Embora náufragos na mesma ilha. A rapariga do sorriso aquecido estendeu-lhe novo cilindro botânico. Ele, desta vez, recusou num sorriso. Olhava arcadas. Olhava estrelas. Como queria abraçar o mundo? O mundo é um lugar longe. A madrugada crescia. A rapariga do sorriso aquecido depositou-lhe o rosto no ombro. Ele agradeceu, comovido, sem saber o porquê.

 

domingo, 17 de janeiro de 2021

O Silêncio do Verbo


 

Hoje, precisamente nesta noite, regressa aquela rua. Há quanto tempo dali partira? Certamente que há muito. Pelo caminho, recolhe possibilidades. Deposita-as num saco de plástico, com o logotipo de uma superfície comercial desbotado, furos em vários pontos, e numa ameaça de ruína latejante. Todas as noites acolhe o que outros se recusam a mastigar. Assim é a vida: um ciclo infatigável de sementeira e recolha. Já conhecia os hábitos de alguns quarteirões. Quase lhes conhecia as vidas. Sim, de certa forma, era-lhes íntima. Sabia-lhes as preferências, os hábitos, os cheiros, e, acima de tudo, os limites. Sim, verdadeiramente só conhecemos alguém na emanação de uma transparência. E esta viaja por zonas recônditas, de luz difusa, com vozes sussurrantes, e gestos contidos… Havia prédios mais generosos. Ela sorria àquela abundância: meia banana por mastigar, um pedaço de carne com o osso ainda coberto, um iogurte, apesar dos vestígios salivados, aquém do fim, uma camisola apenas abrasada pelo ferro, e um cachecol reformado pela anacronia das cores… Por fim, depara-se-lhe uma esquina: e ela hoje, longe dos porquês, regressa. No fundo, estamos sempre a regressar. E, do início da rua, o seu olhar naquele 1º andar, terceiro prédio do lado esquerdo, com os estores para cima, há quanto tempo partira? Talvez não fosse há muito. Avança na cautela de evitar as clareiras de luz, mas os olhos naquela janela de um 1º andar. Há quanto tempo partira? Hoje, nesta precisa noite, de luzes piscantes, carros ocasionais pelas ruas, como se a vida repousasse, ela, com o saco de plástico na mão, a fome em si, e o olhar numa janela, compreende o momento da partida: quando não pôde suster o silêncio de um olhar. Como se, nos caminhos da vida, num certo momento, também longe dos porquês, lhes largasse as mãos, e, muito depois, se soubesse só. Tudo começou com uma risada parva e a emergência da afirmação. Passou a rotina, aquelas idas para a sombra do pavilhão escolar, partilhar fumos, como se uma libertação de cárcere incógnito. Mas sempre a fuga (talvez de si). E quem foge, não olha para trás. Aos fumos seguiram-se líquidos em utensílios médicos, mais exigentes nos bolsos, aí começou a preencher a mochila com partes da casa, os livros jaziam na secretária, a escola já era um pretérito nesta odisseia, falava-se na vizinhança disso, por fim, noites em casas de amigos, mas começou a faltar o combustível da fuga, certa noite, o amigo mais próximo deposita-lhe uma sugestão, pertinho do ouvido, e remata: Vais ver que não custa nada… A seguir, uma beira de estrada, um carro a desacelerar, o vidro baixa, o sujeito anafado, com uma calvície suada, mais velho que o pai, de sorriso suíno, três frases e negócio firmado, ela com a urgência renovada de retomar a fuga, a dignidade já nem nos bolsos, seguiram-se mais beiras de estrada, matagais, pensões de colchas nodoadas, contudo, a certa altura, percebeu-se numa fuga solitária, já sem amigos, o amigo mais próximo pareceu-lhe um sonho de uma outra vida, e, nesta noite, com um ar particularmente adocicado, a relembrar aquela janela do 1º andar, do terceiro prédio do lado esquerdo, com um saco de plástico, com o logotipo de uma superfície comercial desbotado, furos em vários pontos, numa das mãos, compreendeu que tudo é um regresso. A fome reconduzira os seus passos. No fundo, a fome é o alimento do lar. Talvez se atravessasse a rua, e tocasse à campainha… Não, talvez seja demasiado tarde… Vira as costas, e prossegue a sua recolha de sombras. Nisto, ouve uma voz longínqua, que a chama. Agora, a voz mais próxima. Como se regressada de uma outra existência, em que o som do seu nome soava a melodia. De novo, sim, não há dúvida. Ela pára numa clareira iluminada.

domingo, 10 de janeiro de 2021

Há lugares onde os pássaros não pousam


 

Caminhavam passos de incerteza. Como se hesitassem no destino. Iam pelos passeios da cidade, apoiando-se, como se, à vez, as forças se extinguissem, uma delas, com um papel amarrotado na mão, olhava portas e números. A outra, mais sobre si, como se procurasse compreender o mapa que ali a conduzira. Um vento de inverno arrefecia passos, mas despertava o pensar. Cruzavam-se com gente de ar desiludido, invernal, também de casacos, cores da noite, e de semblante opaco – como se detivessem um crédito, por sanar, sobre a existência. Mas o olhar delas detinha-se mais em números de porta do que em rostos. Por fim, uma porta coincide com o papel amarrotado. Antes da campainha, inspiram e olham à volta. Como se, sim, porventura um vento de outra direcção. A porta abre-se com um estalido demasiado metálico. Ambas num sobressalto disfarçado. Sobem seis degraus, sem acender a luz, a claridade da rua era-lhes suficiente. Hoje sentiam a doçura da obscuridade. Há momentos assim: geralmente envolvem dor… Contornam a porta metálica do elevador, e seguem o rasto de luz, proveniente de uma porta aberta, por fim, entram. À sua espera, estava uma mulher, com cerca de meio século, estatura média, com uns modos que denotavam as fissuras indisfarçáveis no verniz. Mas havia qualquer coisa de olímpico neste esforço, compreendia-se a lonjura da meta. Começou por perguntar, sem quaisquer delongas, qual delas era, o tempo, e pelo envelope. Foi a do papel amarrotado que, após um passo em frente, assumiu a comunicação. A outra, ainda de mãos nos bolsos do casaco, sim, também com cores da noite, olhava apenas. Nada mais. Olhos na luz da entrada, uma lâmpada fluorescente, sempre demasiado comprida, daquelas mais utilizadas em cozinhas, agora observava o corredor, exíguo, três ou quatro portas, todas fechadas. Após o envelope, o meio século retira-se com a rapidez de duas décadas, mas com a súbita energia de uma. Elas sentam-se num sofá acinzentado, com três ou quatro fontes de espuma, desconfortável, a do papel, em surdina: O que é que te parece? A outra, ainda de mãos nos bolsos, responde com os ombros, mas agradece a frase, como se, de alguma forma, as palavras a reconduzissem a si. A do papel levanta-se, inicia, talvez demasiado cedo, a caminhada da espera, aquela marcha da impaciência, mas interrompe-a, por um olhar e uma questão: Tens a certeza? A outra responde de uma forma lacónica: baixa, em simultâneo, rosto e olhar. De entre linhas, estamos conversados. Nisto, o meio século regressa, Vamos então despachar?, com um não sei quê de talhante, ambas se entreolharam, mas nada disseram. Afinal, estava tudo dito. A das mãos nos bolsos levanta-se (quantos séculos, neste segundo, se terão erguido com ela?), olha a luz de cozinha, estende uma mão à amiga, esta apressa-se a recebê-la, aperta-a no possível de um estímulo, e olham-se. A do papel compreende ser uma figurante chamada de urgência a uma cena que não era sua. Mas esforça-se por retribuir calor no olhar. A outra agradece, num sorriso inexpressivo pelo esforço, e encaminha-se para única porta aberta de um corredor demasiado silencioso. Quantas encruzilhadas cabem numa vida? Talvez as do arrependimento. Foi um prenúncio de noite, sentido no rosto, que a fez regressar. Já não havia sinais de uma luz de cozinha. Nem de meio século com gestos de talhante. Já são imagens de uma vida longínqua. Estava sentada. A seu lado, a amiga, já sem qualquer papel na mão. Também o perdera. Parecia uma estação de comboios. Agora, ambas de mãos nos bolsos. Talvez para disfarçar vazio. Sim, de si apenas um eco. Como essas casas, na obscenidade de apenas paredes, que não se cumprem. Um comboio anuncia-se na noite. Custa-lhe a levantar-se, de tão vazia. Quantas encruzilhadas cabem numa vida? Talvez as do arrependimento, sim, talvez… De novo, uma mão amiga a içá-la. As portas do comboio abrem-se num frémito, ela tenta-se perceber, mas apenas vazio, entra, inicia-se o regresso, sem se aperceber, ouve infância… Não, não vai olhar para trás.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

O Belo viaja com o Longe


 

Qual foi a última vez em que acordei para nascer? Numa manhã ida, talvez demasiado ida, difusa numa memória tão cansada de o ser. Acordar com o sopro do novo… E a criança a descer os degraus, ainda na obscuridade, a sentir aquela frescura no ar pretérita da luz, abre a porta, branca, de madeira, sai para um quintal, ora em sombras, ora sob uma esperança iluminada de não sei bem o quê, como se essa revelação, talvez de tão nítida, soasse como um fechar de porta, sim, afinal, é apenas aquilo, nada mais, e, ainda há pouco, podia ser tudo… Quem nos traz a promessa? A criança, agora, atravessa o quintal, como se para mais perto da luz, ainda aquém de lestes (que idade teria?), sobe uma decrépita escada de madeira, encostada a um muro, e, no cimo, vê. No horizonte, de montes não longínquos para o olhar, nascia uma evidência: a de um começo. E a de um fim. A escuridão agora reduzida a ténues sombras. Sim, algumas alturas a resistir àquele abraço da evidência. Nisto, um hino intemporal, emitido com uma abnegação imperativa, por uma majestade alada, saúda aquele reinício. A vida a reiniciar-se em sons, cheiros, movimento… A criança ainda de olhar na luz distante, mas também próxima. Do cimo do muro. Ecoa, de novo, aquele cântico da aurora. Sim, a ave incansável a anunciar o novo. Como se uma fé renascida. Mas a criança em desilusão. Afinal, tudo é o mesmo. Ouve um carro na manhã. Já uma luz na casa. A chaminé anuncia lume. E o horizonte já nítido. Dentro de si, algo se quebrara. Como se lhe faltassem à palavra. Afinal, tudo é o mesmo. Como é possível? Debruça-se sobre o pensar: cotovelos no muro, rosto nas mãos, olhar na luz crescente, pensar nas estrelas fugidias. Sentiu compaixão pelas companheiras nocturnas, como se aquela voragem luminosa a inquietasse. Olhou para trás. Aqui e ali ainda um tremeluzir obstinado da altura dos sonhos. A criança sorriu-lhes. Como se lhe confiassem um segredo. De certa forma, compreendeu. Sonho ou evidência: optou pelas luminosas companheiras nocturnas. Talvez, aí, visse melhor as coisas. Afinal, a evidência é um limite. E, com o olhar repousado nos vestígios nocturnos a Oeste, escuta a incessante multiplicação de vida no mundo amanhecido. Ouve o seu nome gritado no interior da casa. Desce a decrépita escada de madeira, num sentir de derrota muito subterrâneo. Afinal, tudo é o mesmo. A promessa não se cumprira. Ao regressar, reparou nas poucas sombras ainda do quintal. Como se as coisas do mundo também fiéis com o sonho. O seu pensar em compaixão com aqueles fragmentos de noite. O que é uma sombra se não um pouco de noite no dia? De novo, ecos do seu nome por casa. Retoma os passos do lar. Antes, um último olhar à sua volta. A ave silenciara-se. As poucas sombras esmoreceram. Os múltiplos barulhos do mundo num só. Afinal, tudo é o mesmo. Sim, é verdade. Muitos anos depois, a criança de ontem seria um fragmento de noite no chão da vida.