Livros

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domingo, 31 de março de 2019

Rua das Hortênsias


Ele é assim, o que hei-de fazer? Muito metido consigo mesmo. Nem imagina o que custa arrancar-lhe uma palavra! Eu sempre de verbo fácil, como sabe, o Augusto também fala que se farta, sobretudo com os amigos, agora aquele miúdo… Não sei a quem puxou! Mal chega da escola, enfia-se no quarto, e para ali fica, agarrado a um livro, desses escritores estrangeiros com nomes pomposos, enfim, é daquelas coisas complicadas e chatas, trá-los lá da escola, pois, nós não temos dinheiro para esses luxos, onde já se viu, gastar dinheiro em livros… Deus me livre! Há tanto onde gastar dinheiro e tempo! Agora, em livros! Realmente, não sei a quem saiu! Mas, como lhe dizia, desde que chega da escola, para ali fica, deitado, agarrado a um livro, às vezes, nem ouve quando o chamo (…)

sábado, 30 de março de 2019


… retoma o caminho, passeio fora, pensa se haverá alguém que saiba o porquê de tudo isto, não, não lhe parece, uma frase atravessa-lhe o pensar vinda de fonte incógnita (“Nada se irá alterar depois de mim…), uma verdade que o fez resignar-se, esta ideia há muito se alojara em si (“Nada se irá alterar depois de mim…), como se uma inevitabilidade, como se nada adicionasse ou subtraísse à corrente dos dias…

in Morrer é deixar de ser visto por aqui

segunda-feira, 25 de março de 2019


Ele era diferente! Havia nele, simultaneamente, uma alegria contagiante e uma tristeza melancólica, tão estranho… Por vezes, dava-lhe, subitamente, para revisitar lugares do passado, como se vivesse em vários tempos, não sei se me faço entender… Talvez fosse o contrário, e quisesse apenas trazer o ontem ao hoje.

in Harmonia

sábado, 23 de março de 2019

Morrer é deixar de ser visto por aqui



Não diria que ele recebeu a notícia, diria antes ter recebido a confirmação, não a estranhou, manteve-se sereno, imperturbável, não, não creio que representasse, não havia necessidade de tal, nem tinha nada a provar, lágrimas só nos olhos do médico, bom sinal, muito bom mesmo, ainda vestígios de humanidade por ali, apenas uma questão (“Quanto tempo tenho?”), justa, devida, afinal, um direito seu (“Quanto tempo tenho?”), a resposta hesitante, tímida, envergonhada (“Uns meses…”), enquanto respondia olhava os sapatos, ele, pelo contrário, olhava-o de frente, quase em desafio, quando ouviu (“Uns meses…”), ficou algures entre o alívio e o terror, sentiu-se a caminhar na orla de um precipício…

terça-feira, 19 de março de 2019


… somos todos tão miseráveis, e é naquele espaço, antes de sonhos ou pesadelos, que compreendemos a noite da nossa alma…

in Almas dilaceradas



domingo, 17 de março de 2019




"Sempre que via um barco assim, no regresso a casa, ele percebia onde não queria estar. E o seu olhar nem o barco via, apenas que vogava rumo à única réstia de luz do mundo. Enquanto o comboio, de estação em estação, apenas derramava despojos de ilusões."

in Olhei para trás e sorri...

segunda-feira, 11 de março de 2019


"... a chuva e o vento como testemunhas de um beijo sem amanhã, ele agora passa-lhe a mão pelo rosto, a dúvida se são lágrimas ou chuva a demarcar-lhe os contornos, assim ficam, abraçados, por momentos, breves de facto, talvez se julgassem os dois únicos habitantes do mundo…"
in Sonhos Inconclusos

domingo, 10 de março de 2019

Almas dilaceradas



Se sou feliz…? Pois, bem, o que é isso de se ser feliz? É ter uma família? Dinheiro? Casa? Carro? Objectos? Já agora, tão importante, saúde? Diga-me você: o que é ser feliz? Sem teorias de pacotilha, escritas em compêndios, algumas já com um sabor deveras bolorento, o que é ser feliz? Tem razão, eu é que vim procurar a sua ajuda, e aqui estou, neste final de tarde, olhe, acho que está a chover, vou só aqui à janela, sabe, sempre gostei de ver a chuva atrás de uma janela, não sei porquê, acalma-me, fico melancólica, parece que descem as alturas à terra para limpar todo o nosso mal, já reparou na musicalidade da chuva a cair? É irrepetível! Cada uma tem a sua pauta. Curioso, há coisas que ainda me chamam a atenção, já viu?  (…)

quinta-feira, 7 de março de 2019


… se tudo pudesse ser uma outra coisa, talvez aí o Ideal e o Ser se encontrassem, e não houvesse lugares neste mundo com tantos sonhos enterrados.
in Sonhos Inconclusos

sábado, 2 de março de 2019

Sonhos Inconclusos


Ele queria manifestar-lhe inequivocamente o seu amor, assim, segue até à praia de sempre, pára o carro, sai de rompante, nem sente o frio da hora, tal o calor do sentir, abre a porta do lado dela, estende-lhe a mão, ela corresponde ao gesto, levanta-se com lentidão, como se em reticências de timidez, essa leitura só o instiga mais, àquela hora uma chuva miudinha conferia às coisas do mundo um carácter de irrealidade que apenas acentuava o facto de a amar, os corpos fundem-se enquanto os lábios se descobrem (…)