Livros

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quinta-feira, 25 de junho de 2020

domingo, 21 de junho de 2020

Uma pauta musical aberta na madrugada




Naquele instante, sobre o precipício de si, nascera uma decisão. A decisão de um passo. Que importância tinha isso? Afinal, quantos passos damos na vida? E em que direcções? E ele longe de tudo isto. Sob o crescente inebriar da vertigem. Como se a saboreasse. Voltemos à sua decisão. Mais em concreto, à sua génese. Nunca há uma razão. Isto devia ser uma lei de carácter universal. E cansada de tanto se repetir. Há, isso sim, razões. Dito de uma outra forma: a razão é sempre plural. Sim, soa melhor. Neste momento, uma brisa com aroma de sul no seu rosto. Esboça o agradecimento na forma de um sorriso. Desde que ali chegara, mantém-se de olhos fechados. Não por cobardia. Mas para exponenciar o sentir último das coisas. O corpo num balançar ligeiro. Não, não se trata de qualquer vislumbre de nervosismo. Apenas um sinal de que o movimento encontra o pensar. Ele, neste momento, à janela do passado. A paisagem demora a aclarar-se. Puxa mais o estore. Abre, por completo, a janela. Demora a amanhecer. Por fim, surgem uns vestígios de luz. Acompanhados de sons. Coloca a cabeça de fora. Repara na extensa fila que se avoluma para passar sob a janela. À frente, surge um casal. De novo, em si, um sorriso e um ligeiro frémito no braço (sim, ia nascer uma saudação). O casal olha-o, mas, à medida que se aproxima da janela, ele repara numa turva linha riscada sobre os rostos: a de uma genuína tristeza. O casal, agora, afasta-se, talvez fosse uma ilusão, mas pareceu vê-los, com um gesto, a mandá-lo afastar-se da janela. De seguida, passa uma rapariga, com uma boneca debaixo do braço. A boneca com um vestido gasto do brincar, duas tranças rematadas com laçarotes cor-de-rosa. O rosto da rapariga desconhecia a idade vinda dos anos. Assim permanecera. A boneca debaixo do braço, numa candura própria do feminino. Tinha o inato da maternidade em si. Também olhou para cima. Disse-lhe um adeus demorado. Um adeus sem desilusões. Um gesto nascido de quem provou pouco do sal da vida. Talvez tivesse havido, e muitos, sonhos inconclusos naquele rosto de criança. A rapariga afasta-se. Sempre com a boneca debaixo do braço. Ele a olhá-la, mas nem sinal do verbo. O rosto, de novo, para a sua direita. O cortejo continua a avolumar-se. Neste momento, um casal idoso. Trajes de aroma campestre. Olham-no sem recriminações. Com um amor genuíno. Como se fosse um acto da natureza. Por conseguinte, não é questionável. Acontece, e pronto. Se chove em Fevereiro, ninguém questiona o porquê. Bom, talvez seja um pouco assim o amor espontâneo, nas suas diferentes manifestações. Manifesta-se, nada mais. Afinal, é do ser das coisas. A velha levanta, um pouco, a mão, sob a janela. Um gesto de pensa bem, apenas isso, e encerra, nesse erguer de mão, um mundo de significações. E ele: tenho saudades; os velhotes, ao olhar para trás, afinal é breve a passagem por debaixo de um peitoril, tudo a seu tempo, tudo a seu tempo… 

domingo, 14 de junho de 2020

Deste caminhar entre o céu e a terra





Quando me falam em reféns do álcool, a primeira imagem a erguer-se na memória é a dele, parecia tão concentrado, senhor absoluto dos seus domínios, embora fossem apenas vinte metros quadrados subalugados num café, para mim era o mundo, um quiosque onde, entre jornais aborrecidíssimos para adultos ainda mais enfadonhos, brilhavam as revistas de super-heróis e as cadernetas de cromos, recordo-me ser alto, de facto quando crianças tudo é alto, depois, em adultos, percebemos quão errónea era a nossa perspectiva, neste ponto discordo, há vozes do ontem que, se ouvisse hoje, baixava-me de imediato, nem que tivesse de me ajoelhar, para continuarem a provir do alto, a de minha avó, por exemplo, jamais a voz de minha avó virá da terra, sempre proveio das alturas, mas como dizia, parecia tão concentrado, certa tarde, munido de uma providencial moeda, que possibilitava a aquisição de mais uma carteirinha de cromos, afinal, havia uma caderneta para completar, corro em direcção àquele universo de vinte metros quadrados, o meu espanto quando, em vez dele, parecia tão concentrado, surgiu-me o rosto da filha, definitivamente mais baixa, um pouco acima da minha meninice, porém de idade já folheasse os aborrecidíssimos jornais para adultos ainda mais enfadonhos, tinha um aspecto de roedora, talvez pelos incisivos saídos, era de gestos rápidos e ágeis, ao contrário da parcimoniosa concentração, creio que, nesse momento, compreendi o carácter volátil das coisas, permanente só a inconstância do acontecer, adquiri a ambicionada carteirinha de cromos e regressei, para meu espanto, demorei a abri-la, perdi a vontade durante o necessário, incomodou-me bastante não ter encontrado um sujeito alto, parecia tão concentrado, senhor absoluto dos seus domínios, embora fossem apenas vinte metros quadrados subalugados num café (...)

sexta-feira, 12 de junho de 2020

A Alma reflecte-se num Espelho d´Água




Assim que ela entra no parque, num gesto próprio do rito, baixa a cobertura do carrinho de bebé. Por vezes, sem motivo. Como é o caso de hoje, em que as coisas surgem num indistinto pardacento, o que lhes confere uma angústia de grito sem eco. Como se proviessem de uma distância sem vislumbre. No fundo, como se não fossem tangíveis. E nestes casos, só nos resta o nosso refúgio. O que, na maior parte das vezes, é insuficiente. Aí chegados, vogamos numa corrente indistinta sob uma tonalidade com o aroma da indiferença. E, num lugar de nós, que teimamos em negligenciar, compreendemos o miserável da nossa condição. Mas regressemos aquela mulher que, num ritual de perfeição, cobre o carrinho à entrada do parque. Caminha no passo decidido de quem conhece, há tempo suficiente, a próxima paragem. Senta-se, como sempre, num dos bancos da praça da fonte. Mais precisamente, naquele que fica debaixo do choupo, que tem uma das traves, do encosto das costas, partida, e a tinta, verde-escura, estalada em vários pontos, num apelo continuado à renovação. Neste momento, olha à sua volta, ao mesmo tempo que embala o carrinho. Talvez a criança ainda durma. Casais de idosos aqui e acolá, num passo em sintonia com o tempo. Ela olha-os com a inevitável distância da idade, mas na crescente compreensão de uma indesejada meta próxima. Outras mães e filhos aproveitam o precioso verde da urbe. Em bancos próximos, grupos de velhotes discutem temáticas próprias de quem enfrenta o vazio do tempo. Uma das mais duras batalhas da vida! Como resultado, sempre a derrota… Nada mais. Ou se sai louco, ou na amargura de quem bebeu o absurdo de ser…


Sem saber porquê, o seu olhar, neste momento, com um casal jovem que se dirige, no passo arrastado de quem chega de longínquas paragens, para a beira da fonte. Sentam-se na berma. Um sentar exausto, sofrido, como se proclamassem derrota. O rapaz, de costas para a fonte. Ela, de onde estava, via-o de frente, mas ele olhava muito para além dela… A rapariga sentara-se de lado. Uma das mãos mergulhada na água fria. Um súbito raio de luz ressuscita a alegria daquele espelho adormecido. Sem saber porquê, a rapariga sorri à vista daquela nova realidade, como se tudo fosse novo, a sua mão mergulhada naquele mundo líquido, agora iluminado, a mobilizar-se, em lentos movimentos, como se aquietasse o tropel de um coração em fuga de um peito… Ela de mão mergulhada na água. Numa gratidão silenciosa, pela luz das alturas. Recebe-a, agora, no rosto. Um gesto de agradecimento é uma oração sem reza. No fundo, a mais fidedigna. O mais é pedir… Assim continua, por mais uns minutos. Rosto na luz, movimento, numa harmonia de sentir jusante, sob a superfície. Ela, do banco sob o choupo, com uma das traves do espaldar partida, o verde-escuro estalado em vários pontos, no gesto ritmado de embalar o carrinho da criança adormecida, continua a observar aquele casal jovem recém-chegado. A rapariga, ainda sentado de lado, uma mão derramada nas águas, o rosto sorridente para a luz. Baixa, neste momento, o olhar para as águas. Um olhar cansado e de compreensão. Vista dali, a rapariga afigurou-se-lhe vazia. Afinal, era ela a fonte daquele lago. O rapaz levantara-se. Um, dois passos, uma mão no ombro dela, e um gesto suficiente de Temos de ir… A rapariga levanta-se. A mão imobiliza-se, emerge das águas, e detém-se no seu ventre. Ela pára de mover o carrinho, e leva também a mão ao ventre. Assim ficam, numa mímica além-verbo...

domingo, 7 de junho de 2020

Balanço



Há uns tempos escrevi que, no fim de tudo, só dois ou três momentos valeram a pena, e devido a esses fugazes instantes conseguimos levar adiante esta caminhada, de facto, não é muito (dois ou três momentos…), não é nada, se contabilizarmos a imensidão de dias que preenchem um viver, o fastio do seu desenrolar, decidi, aqui chegado, realizar um balanço, se terá valido a pena ter caminhado por este lado das coisas, não é fácil uma conclusão quando não temos memória de outros trilhos, porém, resolvi aferir se valeu a pena, e nunca gostei de declinar desafios, ao olhar para trás retenho dois ou três momentos, um em particular, fantasias de um sótão abandonado, neste ponto, creio com sinceridade que as fantasias é que foram abandonadas pelo caminho, o sótão sempre por aqui esteve, como é triste largar fantasias pelo caminho, ocupam muito espaço, e a vida não lhes permite respirar...

terça-feira, 2 de junho de 2020

segunda-feira, 1 de junho de 2020

Era uma vez…



Esta história passou-se há três ou quatro décadas, numa aldeia algures no interior deste país. Tudo começou quando ele subiu para cima do tractor, naquele início de tarde estival. Mas, de facto, terá sido aí que tudo começou? Qual o irredutível ponto inicial de uma história? Onde, de facto, foi dado o primeiro passo? Às questões sem resposta apenas silêncio e o inevitável encolher de ombros. Por conseguinte, regressemos a ele, ao seu tractor, e a um calor de olhares baixos. Mas não esquecemos as anteriores questões. Não é nossa pretensão, ao relembrar esta história, sombrear recantos, para que floresçam, numa avidez sedenta, os inevitáveis pontos de vista do interesse. Enquanto a mulher descascava as vagens do jantar, sentada num baixo banco de madeira, e as atirava para uma bacia de plástico, com a cor dos anos, ele cobriu a cabeça com a boina, e saiu. Àquela hora, os filhos, um casal, ela mais velha dois anos, ainda na escola. Por enquanto… Ele, neste ponto, a olhar a terra e a suspirar por um não sei quê... Mas sempre um suspiro. Não se vá dar o caso de… A mulher, neste aspecto, numa sintonia coral, talvez porque o banco cada vez mais baixo, as costas gritantes, os óculos a cair mais do que as vagens, e a filha com umas palavras incompreensíveis, sempre agarrada a livros, que só lhe inculcavam ideias estranhas, havia que pôr um termo a isto, mas a visita da professora, que lhes apelou ao coração para que ela não deixasse a escola, eles ficaram de reflectir, a professora simpática, um pouco sofisticada, notava-se que não era daquelas paragens, talvez o rosto num além estações, e o espelho deles a reflectir, desde sempre, a geada de Dezembro, a chuva de Março e a canícula de Julho… Esta visita foi há uns dias. No fundo, não gostaram. Nunca gostamos dos ventos contrários à nossa rota. A visita ocorreu após a janta de uma quinta-feira. Eles foram cordiais. Afinal, era a Senhora Professora! Todavia, ele não evitou, ao longo da conversa, o acentuar dos sulcos da testa. A mulher, mais democrática, como é próprio do feminino (quem melhor sabe dizer um sim com um sabor a não?), ouviu na complacência de um sorriso. No fundo, sorria para aquela jovem mulher, para o seu entusiasmo inocente, próprio de quem coxeia, afinal, de que serve a teoria, quando tão pouco mundo se conhece? Finda a prelecção da professora, a mãe, ainda com as mãos no regaço, olhou primeiro para o marido, no olhar apenas um silencia-te, por fim, deteve-se no rosto sorridente e entusiasmado da docente, e proferiu, numa clareza inesperada, apenas uma questão: Sim, compreendo… É uma pena ela largar, ainda por cima se tem tantas capacidades, como diz… Mas onde vamos arranjar esse sustento? O sorriso entusiástico a entrar no seu ocaso, um silêncio a cair empurrado pela fatalidade, braços pendentes ao longo do corpo, olhares com o desamparo do soalho, a filha a regressar ao quarto, ouvia atrás da porta, e a compreender que a lucidez materna se estendia além portas…