Assim que ela entra no parque, num
gesto próprio do rito, baixa a cobertura do carrinho de bebé. Por vezes, sem
motivo. Como é o caso de hoje, em que as coisas surgem num indistinto
pardacento, o que lhes confere uma angústia de grito sem eco. Como se
proviessem de uma distância sem vislumbre. No fundo, como se não fossem
tangíveis. E nestes casos, só nos resta o nosso refúgio. O que, na maior parte
das vezes, é insuficiente. Aí chegados, vogamos numa corrente indistinta sob
uma tonalidade com o aroma da indiferença. E, num lugar de nós, que teimamos em
negligenciar, compreendemos o miserável da nossa condição. Mas regressemos
aquela mulher que, num ritual de perfeição, cobre o carrinho à entrada do
parque. Caminha no passo decidido de quem conhece, há tempo suficiente, a
próxima paragem. Senta-se, como sempre, num dos bancos da praça da fonte. Mais
precisamente, naquele que fica debaixo do choupo, que tem uma das traves, do
encosto das costas, partida, e a tinta, verde-escura, estalada em vários
pontos, num apelo continuado à renovação. Neste momento, olha à sua volta, ao
mesmo tempo que embala o carrinho. Talvez a criança ainda durma. Casais de
idosos aqui e acolá, num passo em sintonia com o tempo. Ela olha-os com a
inevitável distância da idade, mas na crescente compreensão de uma indesejada
meta próxima. Outras mães e filhos aproveitam o precioso verde da urbe. Em
bancos próximos, grupos de velhotes discutem temáticas próprias de quem
enfrenta o vazio do tempo. Uma das mais duras batalhas da vida! Como resultado,
sempre a derrota… Nada mais. Ou se sai louco, ou na amargura de quem bebeu o
absurdo de ser…
Sem saber porquê, o seu olhar, neste
momento, com um casal jovem que se dirige, no passo arrastado de quem chega de
longínquas paragens, para a beira da fonte. Sentam-se na berma. Um sentar
exausto, sofrido, como se proclamassem derrota. O rapaz, de costas para a
fonte. Ela, de onde estava, via-o de frente, mas ele olhava muito para além
dela… A rapariga sentara-se de lado. Uma das mãos mergulhada na água fria. Um
súbito raio de luz ressuscita a alegria daquele espelho adormecido. Sem saber
porquê, a rapariga sorri à vista daquela nova realidade, como se tudo fosse
novo, a sua mão mergulhada naquele mundo líquido, agora iluminado, a mobilizar-se,
em lentos movimentos, como se aquietasse o tropel de um coração em fuga de um
peito… Ela de mão mergulhada na água. Numa gratidão silenciosa, pela luz das
alturas. Recebe-a, agora, no rosto. Um gesto de agradecimento é uma oração sem
reza. No fundo, a mais fidedigna. O mais é pedir… Assim continua, por mais uns
minutos. Rosto na luz, movimento, numa harmonia de sentir jusante, sob a
superfície. Ela, do banco sob o choupo, com uma das traves do espaldar partida,
o verde-escuro estalado em vários pontos, no gesto ritmado de embalar o
carrinho da criança adormecida, continua a observar aquele casal jovem
recém-chegado. A rapariga, ainda sentado de lado, uma mão derramada nas águas,
o rosto sorridente para a luz. Baixa, neste momento, o olhar para as águas. Um
olhar cansado e de compreensão. Vista dali, a rapariga afigurou-se-lhe vazia.
Afinal, era ela a fonte daquele lago. O rapaz levantara-se. Um, dois passos,
uma mão no ombro dela, e um gesto suficiente de Temos de ir… A rapariga levanta-se. A mão imobiliza-se, emerge das
águas, e detém-se no seu ventre. Ela pára de mover o carrinho, e leva também a
mão ao ventre. Assim ficam, numa mímica além-verbo...
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