Livros

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terça-feira, 27 de outubro de 2020

sábado, 24 de outubro de 2020

Ecos de vozes idas


 

Neste momento, ia em viagem algures debaixo do céu do mundo. Sem pressa. No fundo, a melhor forma de se viajar. Gostava de viajar só. Sinal que gostava da sua companhia. Estes são os que reclinam a cabeça com facilidade. Aos outros, resta-lhes experimentar a contínua aspereza de cada travesseiro. Não há outra forma: nunca se encontra no mundo aquilo que não trazemos para ele. Mas ele, neste exacto momento, guiava na gratidão de um silêncio compassado. Fruía cada instante do percurso. Diante de si, abriu-se uma longa recta. Àquela hora matinal, ainda pouco trânsito. A visibilidade era boa, apesar dos resquícios de uma noite ida. Reparou, um pouco à frente, na berma da estrada, numa mão suplicante. Desacelerou espontaneamente, fruto de uma vontade de génese incógnita. Porquê? (Questionar-se-ia ele, mais tarde. Como resposta, apenas a memória de um gesto irreflexo, nada mais. Mas, ainda assim, tinha como resposta a memória de um gesto. Quantas vezes nem isso? Apenas os amargos frutos colhidos a jusante, por uma vontade obscura emergida do aparente nada.) Desse modo, imobilizou a viatura diante de uma mão estendida. Após três ou quatro frases de contextualização, a porta direita do carro abriu e fechou-se, e as preces de um gesto foram atendidas. Ele reiniciou a marcha. Iam para o mesmo destino. Só mais à frente, o diálogo foi retomado. Como se, de certa forma, houvesse a necessidade de um preâmbulo. É compreensível, neste caso, esta carência. Ninguém está de mão estendida, para um horizonte amanhecido, e, ainda a familiarizar-se com o interior da viatura, com a serenidade que ele ostentava no rosto (habitual naqueles que gostam de ir ao cinema sós), com aquela condução sem amanhãs, enceta um diálogo de naufrágio anunciado. Por sua vez, ele deixou que as coisas fluíssem, de mãos no volante e com o pensar no destino. Começou-se, como sempre acontece entre estranhos, ou para se retomar uma familiaridade algures perdida, por falar do tempo. Porque será? É um tema recorrente, como aquelas moedas que interessam sempre quando se trata de trocos, porque afecta a todos. Afinal, todos vivemos debaixo do mesmo céu, sim, é verdade, mas nem todos olhamos para cima… O diálogo foi-se instalando de forma natural, um pouco como aquelas melodias que, numa primeira fase, se anunciam, para, depois, nos enlevarem na sua corrente rumo a um jusante de reencontros. Ele, quando se apercebeu, falava de si. Tão raro, isto suceder. Nem com os rostos dos seus dias. Era comum censurarem-lhe a escassez de verbo. Ele retorquia apenas com um sorriso. E, interiormente, reencontrava a falibilidade da palavra. Sempre preferiu o gesto. Não sabe porquê, mas sempre achou que dura mais. Ocupa mais espaço de memória. Mas, hoje, no espaço interior do seu carro, redescobre o enlevo encadeado das palavras, como se saísse de si para as seguir, tal o seu encantamento. A viagem prosseguia num espaço e tempo balizados por emoções. Houve, ainda, tempo para um café. Um desses estabelecimentos, à beira da estrada, em que tudo assume um cariz transitório: como se fizesse, também, parte da viagem. No fundo, é parte integrante, quem ali pára é que procura esquecê-lo. Após o café, ouviram-se menos frases no interior amanhecido do carro. Algo se terá perdido. E ninguém o reencontrou. Talvez o ar matinal tenha arrefecido as emoções e despertado a razão (e as suas defesas naturais). Talvez, no café, o temor do contacto frontal dos rostos. Talvez a proximidade do fim. Deixou a outrora mão suplicante no seu destino. Despediu-se com um obrigado mecânico, como se saído de uma gravação, e afastou-se sem olhar para trás. Ele permaneceu, no interior da viatura, num espanto mudo. Ainda olhou para trás, mas nem um sinal de súplica, no vai e vem de vultos que, àquela hora, já preenchiam os passeios. A mão diluíra-se do seu horizonte. Já lhe povoava a memória. Ele ainda no espanto do sucedido nos instantes pretéritos. Havia frases que ainda povoavam o carro. Frases não, desculpem, sentires. Há quanto tempo ele não dizia quem era? Certamente, alguém espera, nalgum lugar, que ele o diga. Alguém sem gestos fugidios, sem entoações mecânicas, e que se sente diante dele. Talvez aí não sucumba à primeira súplica ilusória do destino.


terça-feira, 20 de outubro de 2020

sábado, 10 de outubro de 2020

O silêncio contido da alma no adeus ao corpo


 

Acordou numa sala demasiado branca, àquela hora iluminada apenas pela passividade indolente das frestas do estore, que horas seriam? Pelo alaranjado da luz, pensou em despedidas… Mas as auroras também se pintam pela timidez indecisa de uma cor intermédia. E ele deitado, num estar além-tempo, uma voz de si na entoação de um conselho: Não te levantes, não te levantes… De alguma forma, compreendia, sem sentir, o saber das palavras. Não se levantou. Assim permaneceu, naquele estar do desconhecido, apenas com a tepidez familiar da luz. Mas o rosto submerso na sombria alvura da divisão. Se ao menos um pouco de calor em si… Por uns momentos, sim, até à leveza reconfortante de um sonho sem corpo, deteve-se naqueles pregões iluminados de alvorecer. Se porventura um lhe passeasse pelo rosto… Por fim, cedeu a uma lei gravítica que nos impele a um regresso, sistemático, a algures de nós. No fundo, trata-se de uma queda. Sim, um pouco isso. Cedemos a um peso de outra ordem, e abandonamo-nos ao desamparo de uma viagem sem bússola nem mapa. Sim, a queda é o início de um trajecto. E, no regresso, quantas vezes, não trazemos, nos alforges, dores e mágoas adormecidas nos caminhos do mundo? Talvez no seu lugar tenhamos depositado tempo: o único crédito da existência.

 Compreendeu, naquele lugar, que descansar e sobreviver são conceitos distantes. Sim, ali não se respirava fundo, apenas havia tempo para retomar o fôlego. O estrépito matinal afigurou-se-lhe ensurdecedor. Primeiro, carrinhos metálicos que transportavam aquilo que, noutros contextos, se denomina de primeira refeição. Assim que lhe depositaram um tabuleiro, do qual o carácter asséptico se sobrepunha ao do paladar, cresceu nele a distância: como se, de súbito, compreendesse o desespero do viajante que se sabe perdido. Olhou os uniformes, uns brancos outros azuis, que entravam e saíam incessantemente do quarto. Nada. Nenhum olhar de compreensão. Apenas sorrisos mudos na distância da indiferença. E ele a saber-se longe. Alguém o questiona: Então, não vai comer nada? Num mutismo contido, sabia-se aquém de uma resposta. Como se não encontrasse em si uma voz capaz de se dizer. Sim, sem dúvida, ele formulou as frases, mas não encontrou a voz para as proferir. Espontaneamente, esboçou-se-lhe o sorriso estéril de ocasião: o véu do sentir. O sorriso que clama ao mundo: sentei-me em mim, e aqui vou repousar, até que o tempo vos dilua da minha circunstância. Assim permaneceu, até que rostos de há muito o despertaram. Então, como estás? Não tarda nada, estás novinho em folha! Agora, deixara cair qualquer sorriso estéril de ocasião. Não há véus possíveis para os rostos de há muito. Só o mestre tempo nos ensina a contemplar um rosto. E só compreendemos isso quando, demasiado tarde, o gesto prevalece sobre a palavra. Esmagado contra aquele leito artificial, procurou, naqueles que o visitavam, a familiaridade. Não a encontrou. Só se deparou com uma reprimida consternação. Não desistiu, levantou-se de si, e saiu em busca de passado à sua volta. Por fim, emergiu, na desolação do seu eu, de mãos vazias. Chegou à conclusão, como se de um recente náufrago se tratasse, de que familiaridade e contexto são velhos companheiros de viagem. À sua volta, continuou uma chuva cansada e repetida (Quando deres por ti, já estás em casa! Ainda nos vamos rir disto. Tem calma, o que é preciso é que recuperes). Regressado a si, deambulou um pouco, a chuva persistia (Ânimo! Tens de ser forte! Olha que há gente bem pior do que tu!). Olhou-os, agora de uma distância segura. Intuiu que não valia a pena. Não ia defender a sua tese. Apenas se protegeu da chuva sob o velho e usado capote de um aparente cansaço. Ainda ouviu as preocupações, dos rostos familiares, sussurradas corredor fora. Agora sim, inspirou. Olhou o companheiro de infortúnio, adormecido na cama ao lado. Ainda não tinham trocado muitas palavras. Apenas as necessárias para sustentar a cortesia. Afinal, partilhavam um quarto, numa situação limite. Não tivera visitas. Nada mais cinzento: aguardar por sombras, deitado num leito hospitalar, em hora de visita; e orar, num canto invisível de si, para que Deus avance a ordem do mundo. Mas ele dormia num sorriso de rosto. Talvez já se tenha despedido. Talvez já tenha deixado tudo em ordem. Talvez o esperem em alguma estação. Ou tenha aproveitado aquela chuva repentina, e de um leito agora jangada navegue, de alforges vazios, rumo a um lugar de gestos lentos e de palavras alaranjadas.

domingo, 4 de outubro de 2020

Cansaço


 

Compreendemos que a vida nos venceu quando a nossa maior ilusão (“Vamos mudar o mundo!”) nem na memória se passeia, o hoje apenas resignação, brinda-se “A tudo o que podíamos ter sido…”, logo eu que nunca fui de conformidades, porém, vejo-me a levantar o cálice neste brinde (“A tudo o que podíamos ter sido…”), sim, estou cansado, vou interromper aqui, pelo menos por cinco anos, estas prosinhas, depois verei se lhes regresso, sinceramente não queria, chega, faz mais de dez anos que escrevo estes textos, o primeiro foi no dia 19/02/10, já se completou mais de uma década, é tempo de caminhar por outras paragens, ou de regressar, não sei, confesso, a vida há-de decidir, numa destas tardes, em conversa, levantou-se a memória de uma amiga que já partiu, tinha por hábito correr restaurantes e cafés onde degustava as especialidades do seu agrado, ora se deslocava a um pelo bife com queijo, ora ia a outro pela coxinha de frango, por norma tudo iguarias bem calóricas, nada contribuía para melhorar o seu estado geral de saúde, partiu nova, nem aos sessenta chegou, para agravar a coisa fumava incessantemente, enquanto me deparava com a sua memória, compreendi que a comida constituiu o seu refúgio, ninguém a pode censurar, ainda menos eu que busco sofregamente um, tenho assistido ao desmoronar de todos os meus refúgios, um por um, sem desespero, apenas com resignação, e bastante tristeza, os equívocos, pois, apenas a conclusão de que ainda sou um estranho para mim, nunca é fácil esta inferência...