Livros

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domingo, 29 de abril de 2018

Talitha Cumi



A primeira vez que a vi foi quando me abriguei na entrada daquele prédio, por causa de um repentino aguaceiro, o Inverno renitente em partir, como se procurasse estender a sua estadia por um qualquer capricho de última hora, ou talvez encantado pelo rosto fresco e florido da Primavera que se aproximava, pois, é possível, eu, incauto, apenas a olhar para o calendário, daí que, nessa manhã, ao sair, desprezasse o guarda-chuva, porém, ao final da tarde, no regresso a casa, assim que saio da estação, os céus resolvem limpar da terra os nossos pecados, surpreendido, corro até à entrada mais próxima, ali fico durante o necessário, mais dois ou três incautos, recém-chegados no mesmo comboio, juntam-se-me, no hoje evitam-se olhares, não compreendo, nem quero, olho à minha volta e descubro-a a um canto, muito encolhida, com uma mesita, à sua frente, que quase a cobria por completo, sobre a mesa umas agora esquálidas florezitas, deslustradas, enterneceu-me aquela visão, nisto uma mulher, creio que fosse mãe, aproxima-se, a tossir ruidosamente, percebo-lhe veemência nos gestos, repreende a menina por não ter acautelado uma protecção para as flores aquando do aguaceiro, espanta-me que não se tenha apercebido de que os céus igualmente sobre a menina, tal o dó de a olhar, também ela deslustrada, esquálida, as roupas, já de si pobres, agora encharcadas, apenas acentuavam a carência de dignidade nas refeições (...)

quinta-feira, 26 de abril de 2018



Como sempre acontece debaixo do céu do mundo, num certo momento, os nossos olhares demoraram-se um pouco mais, de seguida, o verbo, a musicalidade da voz, tudo em consonância, quando consegui, de novo, alcançar-me, já juras de amor pelo ar, uma opressão no peito quando ela não por perto, e a certeza pétrea de que me fora apresentado o conceito de amor…

in A noite aproxima-se e o dia está quase findo

A alma reflecte-se num espelho d'água - Pedro de Sá


terça-feira, 24 de abril de 2018



Percebi-lhe, aos primeiros olhares, uma miríade de emoções, entre a alegria de me ver e a dor infinda de se saber sentado, esmagado de encontro aos seus sonhos moribundos, mas é curioso, assim que trocávamos as primeiras frases, restabelecíamos a nossa singular empatia, que nos levava, madrugadas infindas, a confidenciarmos a alma, enquanto ouvíamos melodias que nos relembravam quantos já fomos nesta vida… 

in Harmonia

sábado, 21 de abril de 2018


De certa forma, acho que ainda estava naquela praia, perdido naquele deslumbramento, é possível que parte de mim ali permanecesse para sempre, pois, é possível, afinal, há lugares de onde nunca partimos...

in Àquela que me trouxe as estrelas à terra

quarta-feira, 18 de abril de 2018

segunda-feira, 16 de abril de 2018



Li uma vez, já não me lembro onde, que para fazermos Deus rir devemos contar-lhe os nossos planos. Mas, naquele tempo, nós éramos os próprios deuses. E ríamos bem alto… Até que os risos se tornaram um eco longínquo. Até o tempo o silenciar por completo. Até que, por fim, nos alimentamos de memórias do que fomos para nos esquecermos daquilo em que nos tornámos. Porque só olha para o passado quem sente o desconforto do presente.
in Queria rever o teu rosto ao entardecer

sexta-feira, 13 de abril de 2018


Por fim, o sol obrigou-o a desviar-se. Olhou um ramo próximo. Admirava, agora, a graça com que se alongava, em contínuas multiplicações, numa harmonia de matéria e céu. Como se abraçasse o todo, e tangesse a impossibilidade. De súbito, levou a mão ao rosto. Contemplou as inscrições gravadas na palma. E, então sim, compreendeu…

in Queria rever o teu rosto ao entardecer

terça-feira, 10 de abril de 2018


Recordou aquela vez, há muito passada, em que acompanhou, precisamente dali, a lenta e cantada aparição do nascer do mundo. Nessa altura, o alaranjado do horizonte soube-lhe a vastidão. Já não se recorda de há quanto tempo foi, parecia-lhe, agora, ter sido numa outra vida. Sim, é verdade, quantas vezes se morre e nasce ao longo de uma vida?

in Do outro lado do rio, há uma margem

domingo, 8 de abril de 2018


Compreendo, com tristeza, que a felicidade é sempre retrospectiva. É sempre a estação deixada para trás. Toda a tristeza do mundo desenha-me no rosto a ténue linha de um sorriso compreensivo – aquele que provém do tempo.
in Queria rever o teu rosto ao entardecer

sexta-feira, 6 de abril de 2018


Com o tempo, aprende-se o desperdício do barulho, afinal, a última estação é a do silêncio.
in Do outro lado do rio, há uma margem


quinta-feira, 5 de abril de 2018


Somos cemitérios de afectos.

                                                        in Harmonia