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segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

"DESLUMBRAMENTO"


PEDRO DE SÁ





Deslumbramento



 



Há uma vaga brisa.
Mas a minh'alma está com o que vejo menos.
Com o paquete que entra,
Porque ele está com a Distância, com a Manhã,
Com o sentido marítimo desta Hora,
Com a doçura dolorosa que sobe em mim como uma náusea,
Como um começar a enjoar, mas no espírito.

In Ode Marítima
Álvaro de Campos





ÍNDICE








PASSADO
PRESENTE
FUTURO







PASSADO




 

- Porquê? Consegues explicar-me? O que se passou ao certo?
- Explicar? O que há para explicar? As coisas são como são. Para quê, agora, estarmos a teorizar acerca de factos?
- Porque o hoje constrói-se no ontem, e não acho correcto seguirmos em frente, sem compreender o acontecer… Não sei, gostava de saber a tua opinião, agora que já passou tanto tempo.
- É curioso! Mudaste tanto nestes anos. Até em termos lexicais. Para quê levantar esse assunto? Logo agora! Qual é a tua intenção? Ver se ainda, por aqui, algum sentir? Precisas de elevar o ego? É isso?
- Sabes bem que não! Apenas gostava de perceber onde nos perdemos. Quantas vezes, num instante do dia, aqueles segundos balsâmicos que nos permitem regressar, pensar-nos, dou por mim às voltas com esta questão: “E se…?” Percebes, certo?
- Sim, claro… Desculpa, nem perguntei pelo teu irmão.
- Fui visitá-lo ontem. Hoje não consegui. Às vezes questiono-me se fizemos algum mal para merecer isto! Meu irmão, um resto do que foi! Custa-me tanto! Ontem, antes de sair, olhei para trás, tinha de me certificar, não sei porquê, que ele continuava a olhar o mundo por uma janela, como se uma súbita compreensão de aqui não ser o seu lugar, de lhe estar vedada a tão propalada “felicidade” ou lá o que isso significa, meu irmão, o olhar vítreo, braços caídos sem prenúncio de gestos num amanhã, apesar da tarde, lá fora, pegar na mala, ele de pijama, ou seria o uniforme, nunca questionei tal, confesso, perdi a conta às tardes ali passadas, nos fins-de-semana, em monólogos estéreis, porém, sei que tenho de ir, chego impreterivelmente um pouco antes da hora de visita, saio do carro e fico a olhar o robusto edifício em tijoleira, de dois andares, envolto em vegetação, por vezes, penso ali está a “última estação”, engano-me, essa é sempre pretérita, é quando algo se parte em nós de forma irreversível, foi o que sucedeu com ele, um sentir demasiado deixou-o caído, de uma forma ininteligível sempre o compreendi, e isso aconteceu muito antes de também eu cair, não por um sentir demasiado, mas pela sua falta, é curioso, como os inversos nos podem atingir da mesma forma, a questão extenuada (“Como está ele hoje?”), a enfermeira de turno com respostas evasivas, já nem se detém a olhar-nos, tudo numa impessoalidade fria e mecânica, ontem só lhe encontrei espelho no céu lá fora, plúmbeo, o chuviscar ininterrupto, como se fosse parte integrante da paisagem, aqueles dias em que o longe se liquefaz para nos relembrar o aqui, mas a questão ficou suspensa na tarde chuvosa (“Como está ele hoje?”), estava sentado na cadeira do costume, diante da grande janela que dá para o relvado, atravessei a vasta sala, cruzei-me com outras figuras de pijama, ou seria o uniforme, sentadas a olhar um ponto indefinível, como se aí um qualquer sentido só por si perscrutado, à sua volta outros que me acompanharam os apreensivos passos desde a entrada, suspiraram a mesma questão chuvosa (“Como está ele hoje?”), obtiveram a mesma resposta, que o longe se liquefaz para nos relembrar o aqui…
- É estranho, não achas? Sempre o achei tão concentrado, sabia o que queria, parecia ter a vida toda delineada. E, de repente, aquela queda: súbita, inexplicável, tão estranha…
- Imagina para nós!
- E houve respostas dos médicos?
- Não precisas de usar eufemismos comigo! Diz logo: psiquiatras! Tudo muito vago, houve um que falou de um baile e de um episódio deveras estranho…
- Então?
- Leu-nos um texto, aparentemente, escrito pelo meu irmão. De facto, era a letra dele.
- E o que dizia?
- Queres que te leia? Deve estar para ali na minha secretária. Por acaso, gostava de ouvir a tua opinião.
- Sim, claro. Mas espera um pouco. Antes disso, fala-me um pouco de ti. Como estás?
- Como estou?
- Sim, estás bem? És feliz ou lá o que isso seja?
- Sempre foste renitente quanto à felicidade. Nunca percebi porquê. Se havia alguém, de facto, que tinha tudo para ser feliz, eras tu.
- Estás tão enganada!
- Desculpa?! Sempre tiveste tudo: pais que te amaram, boa casa, andaste nos melhores colégios, quando uma novidade, brinquedo, roupa, ténis, eras o primeiro a vir para a rua exibir…
- E isso, para ti, é a felicidade? Bens materiais, pais numa aparência de sentir, colégios particulares onde aprendes a estar em vez de a ser? Pois, creio que estejas bastante equivocada. Quantas vezes não te invejei? A ti e aos outros miúdos lá da rua. A liberdade de ir para a escola a pé, em vez do espartilho da carrinha à porta, trocar o tecto de casa pelo tejadilho da viatura, nem vislumbre, por brevíssimos instantes que fossem, do céu do mundo, e a obrigatoriedade da língua estrangeira, como se não bastasse o Português, a Matemática, o Meio Físico, ainda o Alemão!
- Tens o passado tão presente! Não sei porquê, mas nunca te vi assim…
- Eu?! A partir de certa altura, acho que virei costas ao futuro. Daí já nada espero.
- Estás amargo.
- Tu ajudaste…
- Talvez estivesses mais, acredita!
- Nunca o saberemos!
- Isso é verdade! Mas, na altura, foi a melhor escolha, pelo menos a que se me afigurou mais acertada. Eu nunca ambicionei um papel secundário a tempo inteiro. Isso não! Lembras-te do que te disse na altura? Pois, nem uma  foto podíamos tirar… Pelo menos, para testemunhar o que fomos.
- O teu sentir não era assim tão profundo… Quando é, queremos mais que o mundo se dane! Levamos tudo à frente!
- Falas sempre preso ao instante, ao momento, não olhas as coisas com a distância, o tempo, o que tínhamos, acredita, não sobrevivia ao desgaste dos dias, perder-se-ia em semanas, no máximo em um ou dois meses.
- És profeta?
- Não, sou mulher.
- Lembro-me tão bem, cheguei a escrever-te, espero que te lembres: “Prefiro perder-me por ti, do que perder-te de mim”…
- Há zonas de ti que nunca amadureceram. Daí tivesse de pensar pelos dois. Mas não voltes, por favor, a julgar os meus sentimentos. Uma das coisas que mais me fascinou em ti, foi facto de seres uma alma desarrumada, davas-me espelho, atenuavas-me a solidão, sabes, há divisões de mim onde nem à porta passo, contudo, invadem-me os sonhos, aí, claro, nada posso fazer. Há uns dias, por exemplo, num momento da tarde, creio que regressava a casa, levantou-se-me esta memória: houve um Natal, teria cinco ou seis anos, o primeiro após o divórcio, lembras-te, claro, foi meu pai a sair de casa. Bom, ao contrário do expectável, tive o Natal com mais prendas: mãe, avós, tios, até vizinhos, parecia que todos procuravam compensar-me por ver os pais seguir em direcções opostas. Percebi, pelo soar da campainha, a chegada do meu pai, não me perguntes como, aquelas coisas que simplesmente sabemos numa zona de nós tão longe e simultaneamente tão próxima do mundo, mas, como dizia, foi após o jantar, ainda deu tempo de abrir mais de metade das prendas, estava tão feliz, lutava e lutava com papel de embrulho, de facto, há lutas que dão prazer, não me passou despercebido, logo após a campainha soar, o cessar das conversas, um silêncio que ampliava o próprio respirar, curioso, não me recordo de quem abriu a porta, minha mãe não foi, isso tenho presente, talvez uma das tias, a imagem de meu pai, à entrada, surgiu-me, tímido, renitente em avançar, olhou em volta à espera de um incentivo, acabou por surgir através do afável gesto de um dos tios, lá entrou, em tímidos passos, à medida que se ia aproximando, denotei-lhe uma crescente noite pelo rosto, parecia envelhecer à medida que se aproximava, como se lhe fosse exigido um esforço demasiado em ali estar, não me recordo se, naquela noite em especial, de luzes e aparente concórdia, onde se celebra o nascimento Daquele que veio apenas falar de Amor e Verdade, meu pai e minha mãe trocaram uma só palavra, não me lembro de os ver juntos, eu ainda absorvida pela minha guerra com o papel de embrulho, até que ele se abeirou de mim, baixou-se e abraçou-me, como só um pai sabe, não, não era impressão minha, havia tanta tristeza naquele rosto, ajudou-me numa batalha com mais papel de embrulho, estive quase para lhe perguntar pela minha prenda, contudo, no último momento, calei a questão, talvez o seu rosto tão anoitecido caminhasse por paragens distantes de luzes e papéis de embrulho, creio que estivesse desempregado, fazia umas horas no táxi de um amigo, a fábrica fechara, sabes, por muito que esforçasse a memória, não me recordo, nem por uma vez, de olhar os meus pais de mão dada, é curioso, as ideias que nos atravessam o pensar, nem lhes sabemos a fonte, simplesmente irrompem pela nossa mente, mas sempre de proveniência incógnita, nessa noite, por curiosidade, segui-lhes os passos, cumprimentaram-se de uma distância segura, através de cordiais acenos, após isso, os renitentes passos de meu pai conduziram-no até onde eu estava, deu-me a impressão, não sei porquê, de ele ter deixado cair algo atrás do sofá, antes de se abeirar de mim, pois, talvez fosse só uma impressão, abraçou-me, como só um pai sabe, beijou-me a testa e num terno murmurar disse “Feliz Natal, minha querida”, um dos meus tios, com uma sonoridade exagerada, convidou-o para a mesa, mais concretamente a zona onde se concentravam o maior número de garrafas, porém, ele declinou, deu-me uma festa na cabeça, enquanto “Recebeste tantas prendas! Meu Deus, tantas prendas! Que bom!”, apesar de olhar em volta, para se inteirar da sua circunstância, pareceu-me tão longe, tão distante, a sua voz um eco trazido por um vento de terras longínquas, apesar da idade, compreendia tudo isto sem o corpo das palavras, percebes o que quero dizer, certo? Dessa noite, pouco mais recordo, nem dei pela sua partida, mas o relevante aqui deu-se na manhã seguinte, peço desculpa se me demorei a chegar a este ponto, todavia, para compreenderes a essência do seu gesto, cada aspecto, por muito acessório pareça, conta bastante, lembras-te de ter dito, a certa altura, “deu-me a impressão, não sei porquê, de ele ter deixado cair algo atrás do sofá, antes de se abeirar de mim”? Pois, na manhã seguinte, talvez motivada pela inusitada quantidade de prendas, acordei espontaneamente, sem resquícios de esforço, a casa ainda dormia, pelos oblíquos vestígios de luz vindos do exterior, compreendi a hora matinal, preparava-me para rever e certificar da veracidade de todas aquelas prendas, quando tropecei em algo caído atrás do sofá, baixei-me para ver e reparei num urso de peluche, sorridente, bonacheirão, humilde, de repente, percebi: à vista de todas as prendas, algumas dispendiosas, que abria ininterruptamente, ele atirou o humilde peluche para o lugar mais recôndito da sala, onde nem as luzes dessa particular noite tacteiam, num incompreensível gesto de pudor, abracei-o espontaneamente, como se procurasse, nesse momento, despontar a reprimida lágrima de meu pai na véspera.
- Era aquele urso velho que tinhas sempre encostado à cabeceira da cama?
- Sim!
- Pois… Realmente… Que história! Quantos objectos não fazem parte da geografia de uma alma? Às vezes nem sonhamos a história que cada objecto carrega! E como está hoje a relação com o teu pai?
- Cordial.
- Só tens isso para dizer?
- Parece-me o suficiente. Parte de mim, não sei porquê, sempre achou que ele não se separou só da minha mãe, englobou-nos a todos.
- Não estás a ser injusta? Afinal, não raras vezes o encontrei em vossa casa.
- Respondo-te com uma questão: estar perto significa estar próximo?
- De facto… Lembro-me, uma vez, de ter dito a alguém: pai e mãe podem ser bênção ou maldição.
- Concordo plenamente.
- Acompanham-nos, para o bem ou mal, até ao nosso último respirar. Por muito que o tentemos negar! Sabes, às vezes, olho-me ao espelho e revejo o meu pai, ou ouço a sua voz numa expressão que verbalizo…
- Isso agrada-te?
- Confesso que não!
- Pois, compreendo, a mim também não. Mas, no caso do meu irmão, foi ele quem melhor percebeu a situação.
- E o tal texto?
- Qual texto?
- O que ias ler! Escrito pelo teu irmão.
- Ah, sim… Espera um pouco, deixa-me só procurar na secretária. Bom, aqui está. Sabes, não gosto nada, a esta hora, de falar destas coisas…
- Mas o que se passou ao certo? Qual a verdadeira razão do seu internamento? Falou-se de tanta coisa: tentativa de suicídio, depressão, drogas, jogo, meu Deus, diz-se tanta coisa…
 - Por favor, nem me contes mais nada! Só me mete nojo essa gentinha que fala sem fazer a mínima ideia do que se passa! Sempre uma necessidade de catalogar os outros. Como se só assim circulassem melhor no mundo. Tão previsíveis! Enfim… Não foi nada disso a derrubar o meu irmão. Foi algo bem mais sublime: virou costas ao mundo por amor. Existe melhor razão? Pois, não me parece. A sua narrativa vale o que vale, todavia, como pediste, vou ler-ta.
Quando me apercebi, falávamos disto e daquilo, pareceu-me que já nos conhecíamos, nesta vida, de facto, pela melodia da voz, a familiaridade peculiar de um gesto que risca o ar, a compreensão derramada por um olhar, há quem, manifestamente, pareça caminhar há muito a nosso lado, ela segurava um copo de sumo, embora o ignorasse, desde que encetáramos o diálogo, à nossa volta só ruído, porém, nós permanecíamos naquele peculiar universo velozmente criado para nos comunicarmos, nunca fui festivo, por isso, nessa noite, ali desaguei somente pela promessa de que seria uma pequena reunião de amigos para celebrar o aniversário do… Pois, não interessa, não vou chamar para aqui o seu nome, como dizia, fui dos últimos a chegar, em verdade, não havia muita gente, embora, para mim, sempre fosse gente a mais, entrei relutante, logo a demasia do som a empurrar-me para o Inverno da rua, as vozes histriónicas também concorreram para a hesitação dos meus passos, mas era o aniversário do… Pois, não interessa, não vou chamar para aqui o seu nome, apenas sublinho que ele vinha de um momento difícil e merecia ali a minha presença, falava-se que, certa tarde, os pais encontraram-no caído, ao lado da cama, próximo estava um frasco aberto, do seu interior rolaram pequenos cilindros coloridos pelo chão, ainda houve tempo, embora o desgosto de ver o filho caído, acompanhado de pequenos cilindros coloridos, fosse indelével, sobretudo para o coração de uma mãe, ainda houve tempo, mas se não houvesse, nem um “adeus”, nem um “adeus”, tudo porque, apesar da data próxima, dos preparativos, de ela, inclusive, já ter experimentado o vestido, para uma mulher esse deveria ser o “vestido”, e ainda razões de outra ordem, mais próxima de nuvens e cumes, ele ter depositado o seu coração nas suas mãos, durante seis anos, naquela casa, longe, muito longe, de cilindros coloridos derramados pelo chão, o nome dela num tom meloso, perigosamente próximo da subserviência, quando um nome acompanha o respirar, o coração já não pertence ao peito onde bate, assim foi, Belinha, Belinha, Belinha, a mãe na dúvida se era o nome em si que a irritava, se a respiração que lhe acentuava as sílabas, além do ar apalermado do filho, sempre que pronunciava Belinha, os olhos resplandeciam, e a energia ia-se-lhe, pois, quando um nome acompanha o respirar, o coração já não pertence ao peito onde bate, o pai compreensivo com o persistente Belinha, antes por ali do que noutros cenários, e Belinha, Belinha, Belinha, continuou a ecoar, durante seis anos, até que, apesar da data próxima, dos preparativos, ela, por telefone, nem a face lhe mostrou, “Desculpa, estive a pensar, e acho que não devíamos dar este passo. Ainda somos bastante jovens. Temos toda uma vida pela frente. Acho que é uma precipitação. Compreendes, não é? Mereces ser feliz…”, ele mais nada ouviu, o telefone simplesmente caiu-lhe, pois, assim que Belinha, a energia ia-se-lhe, a única coisa boa dos cilindros coloridos derramados pelo chão foi o silenciar, definitivo, entre aquelas paredes, de Belinha, acompanhei de perto o seu reerguer, se bem que, depois de certas quedas, nunca se caminhe da mesma forma, por tudo isto, era imperativo que marcasse presença no seu aniversário, percebi que ele optara pela representação, não era de censurar, há momentos, na vida, em que um atalho é sempre a melhor das vias, assim o fez, colocou uma máscara e com a sua ajuda reaprendeu a caminhar, Belinha tornou-se uma palavra interdita, mais uma daquelas questões tácitas que se outorgam sem argumentar, pensava em despedidas quando, de repente, o meu olhar se imobilizou nela, de facto, foi o que sucedeu, estava sozinha, para meu espanto, detinha uma aura de timidez que me encantou, se adicionarmos uma genuína beleza e a graciosidade dos gestos afigurava-se um sonho esquecido pelo mundo, quando me apercebi, falávamos disto e daquilo, pareceu-me que já nos conhecíamos, nem o nome lhe perguntei, é curioso, há quem, manifestamente, pareça caminhar há muito a nosso lado, pressenti-lhe um desejo de partida, proporcional ao que em mim existia desde que ali entrara (apesar de ser o aniversário do…), ofereci-me para a acompanhar até casa, ela assentiu, havia no seu rosto e gestos uma dignidade de majestade sem coroa, assim que saímos para noite do mundo, sabia-me perdido, o meu coração assumira a forma de um rosto, ela estava de férias em casa dos avós, daí a novidade do seu rosto, ficava a escassas centenas de metros do local da festa, sugeri-lhe que caminhássemos junto ao rio, ela anuiu de imediato, acho que aguardava a minha sugestão, gostei particularmente de vê-la caminhar a meu lado, como se me completasse, mesmo a nossa passada logo se harmonizou, a noite convidava à palavra, ficou amena, nem uma brisa para agilizar o mais ténue movimento, as luzes alongavam-se nas águas, pareciam desdobrar-se numa outra existência, gostava de caminhar pela margem, ela também, fazia-me pensar em que momento dar-se-á a foz do meu existir, não sei de onde se me levantou esta ideia, mas creio que ela leu este meu pensamento, olhou-me com serenidade, pareceu-me ouvir-lhe (“No fim, compreenderás, no fim, compreenderás… Não poderia ser de outra forma), continuámos a acompanhar o curso das águas, rumo a jusante, volta e meia ela detinha-se, eu perdia-me no seu olhar que reflectia o céu nocturno, para onde se evolam os sonhos calados dos homens, a certa altura, parámos num jardim, sentou-se num banco, sentei-me a seu lado, o mais próximo possível para sentir o calor do seu corpo, estava tão inebriado pelo momento que me escapou o desejado calor, ela contou que vinha ali em criança, bem à nossa frente ficava o carrinho do vendedor de algodão-doce, não me escapou o tom pausado das suas palavras, o peso da saudade acentuava-se a cada sílaba, olhei o vazio derramado pelo candeeiro onde, outrora, estava o carrinho do vendedor de algodão-doce, acrescentou que só no regresso a casa ali paravam, pareceu-me vislumbrar um brilho sem luz pelos seus olhos quando falou em “regresso”, o sentir precipitou-se-lhe discretamente pelo rosto, não o disfarçou, permaneceu imóvel, no banco de jardim, a meu lado, a olhar o vazio derramado pelo candeeiro onde, outrora, estava o carrinho do vendedor de algodão-doce, não resisti e peguei-lhe na mão, estava fria, achei natural, falávamos de despedidas sob a noite do mundo, poucos sonhos reflectiam-se na distância das alturas, levantou-se, “Já é tarde. Chegou a minha hora”, eu, tolo, tão longe do tom pausado das suas palavras, peguei no meu casaco e pu-lo pelos seus ombros, ela sorriu um agradecimento, percebi que faltava pouco para a deixar, os nossos passos continuavam em harmonia, perguntou pelos meus sonhos, respondi-lhe que vivia um, arrependi-me de imediato, achei forçada e demasiado óbvia, disse-me “É pena termos de acordar, não é?”, aumentava a insularidade das sílabas e o seu peso, até que, “Fico aqui”, um sentir de orfandade precipitou-se sobre mim, por deixá-la, compreender o tanto que ficou por dizer, talvez o essencial, acima de tudo o  rosto que se me alojara no coração, ela subiu os dois degraus até à sua porta, olhava um ponto indefinível ao fundo da rua, se um pouco mais de atenção da minha parte, talvez percebesse que procurava, num vazio agora derramado por um candeeiro, o carrinho do vendedor de algodão-doce, onde sempre paravam aquando do regresso, pelos seus ombros ainda o meu casaco, fingi esquecê-lo de propósito, tinha de revê-la, já me doía o corpo de sabê-la longe do meu olhar, subi num ímpeto os dois degraus que nos separavam, aproximei o meu rosto, ela recuou, apreciei o seu pudor, um gesto que a fez ganhar mais espaço no meu coração, porém, antes de descer os dois degraus, segurei-lhe a mão, entrelacei os dedos, pareceu-me segurar gelo, não lhe passou despercebido o meu espanto, suspirou “Mãos frias, coração quente”, não foi só o casaco, sobre os seus ombros, que deixei, nessa noite, no alto daqueles dois degraus, o meu coração também ali ficou, depositado no frio da sua mão, no dia seguinte, logo após o almoço, tomei a direcção da sua porta, sempre tinha a desculpa do casaco, caso a magia da noite se diluísse na cegueira do dia, mas a sua melodiosa voz ainda por aqui, como se uma promessa, “Mãos frias, coração quente”, com a luz, a rua outra, eu também outro, só o rosto que me ocupava o coração se mantinha, subi os dois degraus, também diferentes, nem mais altos, nem mais baixos, apenas diferentes, e toquei à campainha, uma senhora de idade fez-me encurtar o sorriso que ostentava na cara à espera que ela me surgisse, pareceu-me avó, embora receasse ofender, porque há maternidades tardias, daí o meu balbuciar, até que, perante a expressão de estranheza da idosa, lá consegui encadear palavras de forma a conseguir expressar-me sem ofender susceptibilidades alheias, especialmente se houver maternidades tardias, “Boa tarde. Vinha à procura da… Ontem deixei-a aqui à porta…”, só nesse momento me apercebi de continuar a não lhe saber o nome, como foi possível? A expressão de estranheza manteve-se no rosto da velha, retorquiu que morava sozinha, decido descer os dois degraus para confirmar a porta, não, não havia dúvidas, foi ali que a vi, do alto desses dois degraus, olhar um ponto indefinível ao fundo da rua, insisti, “Desculpe, mas tenho a certeza de que foi aqui…”, uma vez mais, “Desculpe, mas tenho a certeza de que foi aqui…”, a velha, quase num lamento, “Vivo sozinha”, eu “Mas…”, ela “Tão sozinha, às vezes falo para acreditar que ainda respiro…”, atrás da esguia silhueta, numa moldura, pareceu-me ver um rosto familiar, o meu indicador instintivamente, ela acompanhou o gesto, abriu a porta, nem dei conta de subir os dois degraus, de ali entrar, só me lembro de segurar a moldura e o rosto que se me alojara no coração quase junto ao meu, olhei a velha, permanecia na ombreira da porta, “Foi ela quem…”, aproximou-se, pegou na moldura com uma indizível ternura, abraçou-a, “A minha neta… A estrada levou-ma, juntamente com a minha filha, há dois anos…”, não ousei insistir, nem ao vislumbrar o meu casaco pendurado no espaldar de uma cadeira, antes de sair, beijei a face da velha, doravante, ela estaria bem mais acompanhada que eu, saí para o mundo, pelo menos o que de mim restava, não sei para onde fui, de repente, percebi-me na margem do rio, à minha frente só as águas no seu incessante caminho de jusante…

sexta-feira, 27 de dezembro de 2019


Todas as ruas deviam ter o mesmo nome: Rua dos Sonhos Sepultados.

in Deslumbramento

quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

Com a Idade Aprende-se a dizer Adeus




Desceu a escada na dificuldade própria do acumular do tempo. Uma mão na bengala, a outra numa súplica muda – para quem? Por fim, sentiu o chão do mundo e saiu para a rua. Era crescente a sua distância em relação a tudo o que via. Primeiro, pela ligeira traição do ouvir – embora daí não se importasse, algo de latejante, em si, sussurrava que nada perdia. Em segundo, pelo espectáculo oferecido: uma velocidade contrastante com a sua lenta fragilidade, automóveis no lugar de pessoas, que a obrigavam a odisseias rodopiantes, rostos fechados, num emudecimento obstinado, que a faziam suspirar pelo vazio crescente de espaços outrora ocupados.

Iniciou a sua jornada. Ao passar debaixo da sua janela, ouviu o matinal canto do seu pássaro. Olhou para cima, numa retribuição muda de agradecimento, pelo estímulo da familiaridade. Morava no primeiro andar, de um prédio sexagenário. Numa dessas ruas da capital, onde o sol pede permissão para entrar. Era uma casa pequena. Apenas duas assoalhadas. Agora parecia-lhe enorme, pelo silêncio devolvido. À entrada, tinha uma mesa redonda, pontuada com o devido naperon (orgulhosamente proclamava-se a autora de todos os naperons por ali existentes), e, sobre esta, fotografias – vestígios de uma biografia! A casa estava repleta desta arqueologia. Afinal, ali houve vida! Ainda há, é verdade, embora uma ténue centelha, que se alimenta desta saudade que um dia espera reencontrar (...)


terça-feira, 24 de dezembro de 2019


Nunca se esqueça: Nós somos enquanto formos! O eco apanhou-me já o elevador quase no rés-do-chão, e acompanhou-me durante dias, confesso que demorei o meu tempo, sempre o necessário de cada um, a compreender-lhe a essência. 

in Harmonia

sábado, 21 de dezembro de 2019

Uma Mão Estendida para o Nada



Ali estava ele, sentado na calçada de uma movimentada rua da cidade (Qual?), de mão estendida. Devia ser de tarde. Mas ele há muito desinteressara-se do tempo dos outros. Observava os passantes na ânsia da dádiva. Alguns devolviam-lhe uma certeza que, de alguma forma, conseguira soterrar em si, através de um olhar inflexível. Estes eram sempre os mais apressados. Geralmente, andavam munidos de uma pasta. Transpareciam uma confiança, em cada passo, que o deixava atónito. Como se soubessem, em algum recanto interior, que o destino era um servo submisso à espera das suas instruções no alpendre. E ele, a sentir, simultaneamente, o frio e a dureza da calçada, nutria compaixão por eles. Mas uma compaixão sincera. Como se os olhasse de um cume, e os soubesse na dura inclinação da encosta (...)

terça-feira, 17 de dezembro de 2019

Aproxima-se a hora da partida



“À noite falamos melhor!”, gritei para o interior escurecido da casa, apesar da manhã no seu auge, ela sempre com os estores corridos ou as cortinas fechadas, desde aquele dia, creio que foi por aí, antes de fechar a porta, ainda insistiu, “Mas pensa bem no assunto! Vê lá se reflectes! Fiquei de lhe dar uma resposta”, repeti “À noite falamos melhor!”, não tive alternativa, fechei a porta, desci as escadas e saí para a luminosidade da manhã, a vista demorou-se a adaptar, baixei o olhar, por uns segundos, antes de iniciar a marcha, como se um rito diário, tal a escuridão onde vivia, enquanto caminhava, o meu pensar regressou, não sei bem porquê, ao seu pedido, havia nele quase um tom de súplica (“Mas pensa bem no assunto! Vê lá se reflectes!”), sem me dar conta, era o que fazia, reflectir no seu pedido...

terça-feira, 10 de dezembro de 2019


Talvez no futuro, ele queira contar histórias passadas entre verdes e azuis, de quem olha por janelas, e sonhe alcançar num gesto aquele barco que vai em direcção a Sul.

in  Foi no alto de uma colina, que aprendi a olhar o Mundo

sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

Uma janela que não mais se iluminou



Perdi a conta, nesta vida, às janelas que não mais se iluminaram, sempre me fascinou, da rua, contemplar, ao alto, uma janela iluminada, como se um vestígio do dia na noite infinda, um obstinar de luz perante o inclemente avançar das trevas, e um pressentimento de calor, de partilha, de conforto, no fundo, o essencial do existir, porém, perdemo-nos tanto atrás de menoridades, por vezes, acabamos mesmo por nos perdermos, também eu procuro esta essência (calor, partilha, um pouco de conforto), e sempre, em mim, esta coisa de olhar o passado, de cristalizar o acontecer, afinal, no meu pensar não há passado, presente e futuro, tudo perdura num espaço (sem vozes silenciadas, rostos desvanecidos e gestos apagados)...