Levantar…………………………………………………………………………………
Caminhar………………………………………………………………………………..
Cair………………………………………………………………………………………
Nós somos feitos do mesmo estofo dos sonhos, e a nossa curta vida está
encerrada entre dois sonos.
Shakespeare
(in A Tempestade)
… pois a vida e a morte são uma só coisa, como uma só coisa são também o
rio e o mar.
Tende fé nos sonhos, pois neles
se encontra a porta da eternidade.
Kahlil Gibran
Levantar
I
O tempo é o homem
Os primeiros acordes do alvorecer
insinuaram-se na penumbra. A luz sempre encontra uma forma de se anunciar. De
se dar a conhecer. É da sua essência. Nessa manhã, ele encontrou-a na porta do
armário. Como se lhe relembrasse uma urgência: talvez a da vida. Assim ficou: a
descobrir os veios de uma porta, subitamente revelados. Cansou-se. Afinal, todo
tem o seu tempo. E o tempo é o homem. Subiu a perspectiva, e observou as
partículas dançantes, felizes e aquecidas, naquela chaga das trevas. Estariam
só ali? Embaladas por aquele vestígio de felicidade? Desde quando? Levantou-se.
Arranjou-se. Antes de sair, olhou para ela, que, através do rosto, transparecia
o indizível de uma felicidade de outras paisagens. Por fim, saiu.
Encontrou a sala de refeições, àquela
hora, já com bastante gente. Na sua maioria casais com filhos. Colocou a chave
numa mesa e foi-se servir. Esperou algum tempo pela sua vez. Sentiu, no ar, a
urgência do açambarcamento, como se fosse um imperativo encher os tabuleiros,
uma forma de equilibrar as contas. Talvez a recepção, avistada através das
portas de vidro, potenciasse este súbito e repentino apetite. Chegada a sua
vez, avançou. De súbito, viu-se ultrapassado por um garotelho, com os seus dez
anos, que se precipitou, numa urgência sem retorno, a reabastecer a caneca e
respectivo cesto de pães e croissants. Ficou siderado. Não tanto pelo gesto do
garoto. Mas sim pela forma, que denotava grande experiência, com que o
executou. É um outro mundo, pensou.
Ao qual não queria pertencer. Admirou-se como o tabuleiro, sustido pela mãozita
de uma década àquela velocidade, sem vislumbre de inclinação. Ele tinha que
agir. Aproximou-se do miúdo por trás, enquanto este aumentava consideravelmente
o peso do tabuleiro, e pisou-lhe, como se tratasse de um singelo acidente, o
calcanhar direito, o que fez com que o ténis saísse. O garoto, entre o espanto
da pisadela, o olhar para trás e manter o tabuleiro equilibrado, a escolha de
doce ou de mais fiambre, acabou por ficar a meio caminho, e ele aproveitou para
o ultrapassar, saúdo-o com um sonoro Ah,
peço imensa desculpa, e no seu íntimo regozijou-se pela vitória do passado
face à ignomínia do presente.
II
Uma sombra vertical proclama harmonia
O seu olhar, neste momento, perdia-se
entre o espectáculo em volta e um solitário que se equilibrava, em harmonia
messiânica, numa exígua canoa no meio do grande lago, emoldurado pelas janelas
da sala. O dia amanhecia, de novo, pardacento, como se esse véu emergisse das
águas, e colorisse os céus. O solitário das águas estava, agora, num estatismo
arrogante. Como se apelasse a um artista anónimo. Como se cumprisse um ritual.
Como se aquele fosse, de facto, o seu lugar no mundo. Ele pousou, nesse
momento, a chávena com mais leite do que café. O seu olhar apenas naquela
sombra vertical – que proclamava harmonia.
Ele, agora, era o outro: na
imobilidade, no equilíbrio da chávena, na arrogância de uma certeza, no
silêncio de um grito por um olhar. Num lento adeus, a canoa afastou-se, e ele
ainda ficou um pouco assim: entre o encantatório do movimento e a efémera memória
do Sentido.
Tudo se diluiu, na estridente dor de
uma chávena, desafiadora de gravidades. Também ele caiu no desconforto de si. Estremeceu,
primeiro. Depois, buscou a génese do estrépito. Sem saber muito bem o porquê.
Sim, soube desde logo que se tratava de uma chávena. Então, porquê esta quase
obsessão de localizar, no espaço da sala, o ponto exacto da ocorrência, e
visualizar o rosto do infeliz? Ele não o sabia. Apenas sentiu, em si, esta
necessidade, quase orgânica… Tinha sido uma criança, a fonte do seu súbito
desassossego. Crianças e ruído são íntimos de há muito. Não desistiu do epílogo
da caneca. Esperava, sabia que em vão, pelo castigo do meliante. Acabou por
emergir: a mãe afagou-lhe o cabelo, o rosto do pai sustentava o sorriso
apatetado daqueles que não vincam o solo. Não, ele já não pertencia a este
mundo. Olhou cansado o absurdo de uma cena recorrente. Enquanto o fazia, apoiou
o rosto na mão direita. Por fim, suspirou… Longos corredores, silêncios
obedientes, temores aquém verbo, imagens que revisitava balizadas pelo infinito
de uma expiração. Na velhice, o futuro reside no passado. Só assim tem sentido.
Afinal, de que outro modo o podiam encontrar? Esta é uma das grandes verdades
da vida: passado e futuro, com o tempo, acabam por se fundir.
E ali estava ele, sozinho a uma mesa,
oscilando entre o grande lago, no exterior de uma natureza paciente pelo sempre
adiado regresso, e o civilizado ruído
do movimento interior da sala. O seu olhar, reflectido na caneca, anunciava
fim. Apesar de terminado o café com leite, ainda permaneceu sentado. Outrora,
sentir-se-ia constrangido pela solidão. Nunca se deu bem consigo mesmo.
Achava-se insuficiente. Sempre careceu de um espelho. Pelo menos um que o
sossegasse. Só, sentia o apelo da elipse, e, do abismo de si, sempre emergia
envolto nas roupagens da inquietude e da desilusão. Ao longo da vida, sempre se
compadeceu daqueles cavalheiros que ocupavam, numa proclamação de derrota, uma
mesa, de um qualquer restaurante, sem saber muito bem porquê… E porquê esta
analogia com a derrota? Porque não associava ele, a imagem de um homem só, a
uma mesa, com a de um farol, por exemplo? Afinal, solidão e luz são velhas
companheiras. Não, ele não conseguia. Os seus olhos partiam sempre toldados por
um véu de tristeza. Quem o terá bordado? Que delicadas mãos terão confeccionado
tal peça, indelevelmente inquilina de sua alma? Sempre esta fonte inexorável de
questões… E respostas, onde? E uma mulher só? Sem saber muito bem o porquê, não
se compadecia tanto. No fundo, ele sabia há muito que o porquê é a porta
da desculpa. Uma mulher, só, encerra em si uma aura de dignidade – daí a
naturalidade de uma viúva –, um homem sozinho é o rosto do abandono e da
incompletude – e de viuvez, estamos conversados!
Agora, olha o lago. Soube, há poucos
dias, que lhe chamam a Lagoa Adormecida. Sim,
faz algum sentido. Porque adormecer inspira tranquilidade. Dormir, já não. Mas
aquelas águas apelam a sonhos tranquilos. Por contraste com as manhãs daquela
sala de refeições. No fundo, aquele espaço em nada difere das salas de
refeições dos outros hotéis. Há um lastro comum de excitação e de bocejo: o que
origina estados de espírito a roçar a insuportabilidade. Continuou a observar
os seus vizinhos da manhã. Numa mesa distante, um casal de anciãos, com a sua
digníssima coroa prateada, saboreava a refeição com gestos lentos, próprios de
quem já assimilou o saber dos pequenos nadas – o sempre tardio saber da vida –,
ela muito direita, poucos imaginam o esforço da pose, ele mais curvado, mas numa
curvatura honrada, de vez em quando uma palavra, o resto num harmonioso
silêncio dialogante, como se nada fizesse sentido naquela sala sem a sua presença.
Do casal infantilizado e da sua cria, já falámos. Numa mesa próxima, havia
outro casal com duas filhas adolescentes. Reinava entre eles um respeito
traduzido nos gestos. Nos gestos, não. Mas sim na sobriedade com que os executavam,
como se tivessem uma profunda consciência do cerimonial que preside a uma
refeição. Como se só sob esta luz, o acto de se sentar a uma mesa tivesse algum
sentido. Tudo ali era lentidão e silêncio. As raparigas contrastavam a idade
com a parcimónia dos gestos. Apesar de cumprirem os requisitos etários da moda,
exalavam uma aura de anacronismo indecifrável. O pai era um sujeito anafado, com
a ruralidade bem visível no rosto, apesar dos subsequentes anos de urbe, a mãe,
inexplicavelmente, só se faria notar no quadro familiar. Sim, ela ali estava:
era a mãe… Mas, em qualquer outro contexto, o seu lugar seria o da
invisibilidade. Uma dessas pessoas que nem a memória ilumina. As raparigas,
pelo contrário, talvez se iluminassem fora daquele palco. De certa forma, era
como se representassem, não, não é bem isso, havia uma fatalidade que lhes sombreava
a face, uma aceitação incondicional de um cálice amargo, por uma esperança
algures reconhecida. Ele continuou a observá-los, com uma curiosidade
crescente. A forma cerimoniosa como o patriarca limpou os lábios, análoga à de
um sacerdote durante a eucaristia, como se uma multidão observasse o seu mais
ínfimo movimento, e uma palavra adveio-lhe ao espírito: uma palavra de outras
paragens, eivada do espontâneo, com outros protagonistas, outros ritmos… A
palavra felicidade. Quão longe daquela mesa! Estaria a ser injusto? É possível…
Não, ali não havia vestígios de risos, de… Mas é isso a felicidade? Risos,
movimento, brincadeira? Não haverá outras manifestações? Em alguma parte de si,
ele compreendeu a tranquilidade emanada de cada gesto, a leveza do silêncio
(tão rara de encontrar), a comunhão subterrânea daquelas quatro pessoas. E esta
sintonia, não se poderia denominar de felicidade? A resposta, demasiado óbvia,
verbalizou-se pela voz sem voz de si mesmo. E continuou a olhar aquela família,
seduzido pelo véu da felicidade inaudível dos gestos.
III
Quando o apelo da madrugada se desvanece
Saiu para o amanhecer cinzento. À sua
frente, o lago. Atrás, o edifício, de dois pisos, do hotel. As cortinas
fechadas, do seu quarto, denunciavam o sono da mulher. Dirigiu-se para a margem.
Estranho este fascínio humano por margens e água! Deixou-se estar, de mãos
atrás das costas (uma última tentativa de resistir à gravidade), a ouvir as
águas e a sentir o afago sedoso da neblina no rosto. Uns metros ao lado, um
sujeito preparava uma manhã de anzóis e paciência. Aproximou-se dele, enquanto
este se debruçava sobre baldes e iscos de longa espera. Saudou-o com um Bom-dia, entre o educado e o alegre, a
indiciar ao outro predisposição para a conversa. O indivíduo levantou os olhos
dos baldes, e retribuiu um Bom-dia enformado
de cautela e surpresa.
- Então,
por aqui abunda o peixe?
- (O sujeito olhou-o o tempo que
considerou suficiente. Entretanto, devolveu à terra algo que trazia emprestado
na boca. As bocas lusitanas são pródigas nestas devoluções às origens.) A sua cara não me é estranha!
- (Não esperava esta resposta. Sentiu
um desconforto crescente. Recuou um passo, para melhor se equilibrar do golpe
verbal. Sim, é verdade, nunca gostou desta frase. Sempre a interpretou como uma
ameaça velada. Como a promessa de uma reminiscência dolorosa. Mas que ameaça
poderia conter aquele humilde homem àquela matinal hora? Todas! É a resposta. Porque ele via-o com o seu presente, passado e
futuro. Cada homem assim vê o mundo. Raramente olha a realidade fora deste
espartilho. Quando assim acontece, está para além dela. E nessas ocasiões, esta
sob a inebriante espiral da liberdade: sem ontem e sem amanhã. No fundo, sem o
tempo. Mas, como anteriormente se afirmou, o
tempo é o homem, e se esta é a sua medida, ou uma das possíveis, que homem
é esse para além da sua mensurabilidade? Ele conhecia a resposta, sempre
aspirou a um Absoluto, sob as mais
diversas formas ao longo da sua vida. Já lá iremos. Neste momento,
confronta-se, à beira de um lago, com um sujeito que o perturbou com uma
exclamação corrente.) Não sei como! Somos
da capital. (Refugiou-se num chavão chauvinista e deselegante: próprio de
países que vivem a duas velocidades).
- Se
é por aí, também já por lá andei. E não guardo saudades. Mas a sua cara não é
da capital que recordo (A capital não tem rosto. Sim, são faces sem rosto,
pensou ele, enquanto o ouvia.). É de
outro lugar…
- Lamento
desapontá-lo, mas não estou a ver de onde será.
- Está
aqui hospedado?
- Sim.
- E não tem familiares por aqui?
- (O cerco
estreitava-se. Aqui chegados, só restavam duas alternativas: a fuga ou a
hostilidade. Nenhuma delas se lhe afigurou atraente, sobretudo àquela hora.
Após a questão, baixou os olhos instintivamente, e apercebeu-se de que toda a
sua aparente sofisticação citadina ruíra perante a argúcia de quem observa a
metamorfose lenta das coisas.) O que o
leva a concluir isso? (Optou pela primeira, camuflado pela questão.)
- O
seu rosto, já lhe disse. (O sujeito emanava uma espontaneidade, nos gestos
e na voz, que começava a irritá-lo. Falava com a mesma naturalidade com que
tratava das lides. Um dom só ao alcance daqueles que conhecem e sentem as
texturas das coisas.)
- (Acabou por capitular.) Sim, tive. Mas já não me resta nenhum. (Afastou-se,
no vagar de uma indesejada reflexão.)
Regressou ao quarto. Ela já acordara.
A porta da casa de banho estava entreaberta e ouvia-se a cascata matinal do
duche. Ele aproveitou para abrir a cortina e assomar à varanda. Sempre gostou
daquele cenário: horizontes por alcançar, as águas sussurrantes (ou serão águas
sonhadoras?), as copas impressionistas da outra margem… Transmitia-lhe serenidade.
Assim ficou, encostado à porta de vidro, de mãos nos bolsos, não a olhar, mas a
sentir o silêncio melodioso das águas. Recordou aquela vez, há muito passada,
em que acompanhou, precisamente dali, a lenta e cantada aparição do nascer do
mundo. Nessa altura, o alaranjado do horizonte soube-lhe a vastidão. Já não se
recorda de há quanto tempo foi, parecia-lhe, agora, ter sido numa outra vida.
Sim, é verdade, quantas vezes se morre e nasce ao longo de uma vida? Ele também
já fora outro. Ou outros… Quem é ele agora? Acordara, nessa madrugada longínqua,
sem porquê. A seu lado, dormia aquela que já partira. Sim, estamos sempre a
deixarmo-nos. Ele levantou-se, numa ânsia crescente de harmonia, desvelou um
pouco a cortina, correu a porta de vidro, e saiu para a varanda por amanhecer.
Ainda os distantes pontos luminosos no tecto nocturno, aqui e ali o salto de um
peixe, cantos da madrugada em aparente dissonância, e ele sem a obstinação do
pensar, apenas a leveza do sentir, submerso nas sensações de uma aurora irrepetível,
recorda-se de fechar os olhos, assim que sentiu um tímido calor no rosto, e da
sua voz se juntar a um coro imemorial de saudação ao ser da vida.
Nunca mais experienciou tal sensação
de plenitude. Também o apelo da madrugada se desvanecera. Sim, há coisas que se
deixam pelo caminho. E outras que se apanham? Não, o caminhar da vida é uma
crescente solidão. Ele regressou ao interior do quarto, na mesma altura em que
ela saía, enrolada numa toalha, do seu banho. Sorriram-se.
- Não
me acordaste…
- Preferi não fazê-lo. Precisavas de uma noite assim.
- Sim, há muito que não me conciliava com o sono.
Enquanto falavam, ela primeiro
desvelou-se, para depois escolher a sua roupa. Ele, fruto da experiência,
preferiu sentar-se. Observou, num encantamento espantado, e com um natural
sabor de primeira vez, a feminilidade dos seus gestos. O feminino. Uma graça
liberta de qualquer resquício de gravidade. Em cada gesto, ela inteira. São
gestos cantados, cantantes, pensava ele. Ora aqui, ora ali, a forma de pegar
numa peça de roupa, de a olhar, numa análise além tempo, como se aquele acto,
revestido de uma falsa aparência de futilidade, contivesse, em si, o futuro de
nações. É curioso, nunca se ouviu alguém nomear uma flor de fútil. Por ser
bela, por ser colorida… No entanto, uma mulher, que procure os mesmos
desígnios, expõe-se a tal impropério. E qual é a diferença entre uma mulher e
uma flor? Não sei, ainda não a descobri. Se alguém já a descobriu, deixo-lhe
este espaço, de seguida, para o preencher.
Após
deixar cair a toalha, sucedeu-se um silêncio. Como aquele particular silêncio
indizível entre as notas de uma peça. E nem o esquecido passar dos anos, disfarça
o embaraço da nudez. Ele vestido, chegado da varanda, ela saída do banho,
apenas com a toalha. O arranjar-se. A toalha, de repente, a seus pés. Ele
disfarça, sentando-se. Continua a conversa de ocasião. Ela, nua, escolhe o
enxoval do dia. E ele procura manter, ao longo da conversa, os olhos com os
dela. Mas ela está nua! E o tempo não apagou, por completo, a vontade do um. O
olhar dele acaba por descair. Era uma questão de tempo. Mais de oportunidade. A
gravidade já fez os seus estragos naquele corpo. E, nestas coisas, o tempo é um
aliado precioso. O corpo, com o tempo, assemelha-se mais a um mapa. Todavia, ele
olhava-a além tempo. Era, ainda, um olhar de início. Sem mapas, estradas,
curvas, trajectos sinuosos… Daí que ela lhe surgisse envolta naquele brilho, de
há tantos e tantos anos atrás, e ele, de lábios ligeiramente entreabertos, não
a olhava, olhava-se, sim, a si mesmo, num espanto interior perante uma
revelação… Que idade teria? Ao certo não se lembra, apenas se recorda de
conhecer a gilete há pouco tempo, mas vê-se, a si mesmo, sentado naquele sofá,
com um tecido creme pontuado por umas cornucópias verde-escuras, à frente uma
estante com pouquíssimos livros, no meio espaço para a televisão, era uma sala
rectangular, pequena, apenas espaço para o sofá, estante, e, à sua direita, uma
mesa redonda com quatro cadeiras. À esquerda, uma pequena varanda,
transformada, como sempre acontece por estas paragens, em marquise. Provinha
daí uma ligeira aragem. Bastante agradável. Esta não era a sua casa. Talvez a
de um amigo. E foi aí, sob a leveza dessa aragem, que ela se lhe revelou.
Apenas isso. Ele, lábios entreabertos, sem saber que postura assumir, e um
desejo obstinado de gravar cada detalhe, mas apercebia-se do malogro dessa
aspiração, tal o inebriamento do instante. E, neste exacto momento, ele
apercebe-se de uma aragem vinda de tempo incerto. Não, aqui não há estantes de
poucos livros, sofás com cornucópias verde-escuras, mesas redondas
circunscritas por quatro cadeiras, nem marquises, mas persiste aquela peculiar
aragem, tépida, agradável, que convida a olhar o presente de lábios
entreabertos.
IV
Um silencioso e horizontal espelho de pedra
Seguem, neste momento, por uma
estrada à sombra, ora de pinheiros ora de eucaliptos. Ele concentrado. Em silêncio.
Ela, a seu lado, olha a paisagem. Apreciava aquele cenário. Bosques cerrados
que dão lugar a campos agrícolas, longos vales atravessados por rios
caudalosos, horizontes que prenunciam céus e alturas… Toda esta paleta, no
fundo, se cinge a três cores: verde, castanho, e azul. E no ar, sempre, um
aroma campestre e um sentir da terra. Ela cedeu ao momento, e abriu
ligeiramente o vidro. Para compreendermos este seu gesto, temos de a conhecer
melhor. Ela nasceu no litoral. Nos arredores de Lisboa. Aí foi criada, numa artificialidade
própria da urbe. Mas essa foi uma paleta unicolor: ela só conheceu o azul.
Afinal, cresceu com um só horizonte: de mar e céu. O mais, estruturas, sempre
demasiado altas, de betão, vidro, e ferro… E quem cresce, apenas, voltado para
a efémera inquietude do mar, acaba surdo à respiração serena da terra. Ela da
surdez não se libertou. Todavia, o seu olhar despertava, em si, sinestesias adormecidas.
Temos, então, um casal dentro de um
carro, no final de uma manhã. Ela enlevada pela paisagem, e ele pelo
pensamento. Convém salientar, aqui chegados, que já, anteriormente, percorreram
este percurso. Ele, mais vezes, é certo. Muito antes de a conhecer. Talvez por
isso, o seu silêncio. E o silêncio é passado. Porque só se silencia quem olha
para trás. Quem está em silêncio, nunca está no presente. O presente é, sempre,
acto. Nada mais. Por conseguinte, nunca se poderá harmonizar com o passado, por
se tratar de uma total impossibilidade. Quanto ao futuro, nada tem de
silencioso. Ou de estrepitante. Apenas, porque o futuro ainda não o é. E ao não
ser, não se pode classificar. Do futuro, apenas um anseio. Ou um temor… O mais
é somente suposição. E isso não nos interessa. Interessa-nos, sim, compreender
a génese daquele seu silêncio. Por vezes, mão no rosto. Uma mão inquieta, que
agradece a aspereza daquela barba de três dias, como se lhe atenuasse o
torvelinho do pensar. De certo modo, como se o aquietasse, ao relembrar-lhe a
matéria exterior das coisas. Perto do destino, ela pousa-lhe a mão sobre a sua,
entre uma mudança e outra, ele compreende, e devolve-lhe um sorriso. Por fim,
pára o carro, diante de um muro branco, intervalado por um portão de ferro,
preto, gasto, com um qualquer indizível de dor, oxidado nalguns pontos, talvez
nos interstícios mais interiores, silencioso, como se compreendesse a sua
função de vigilante imemorial do adeus. Ela sai primeiro do carro. Olha à sua
volta. Mas, primeiro, inspira. Ela, simplesmente, não se cansa daquele ar
fresco que cheira a terra. Como se, de alguma forma, renascesse a cada
inspiração. Por fim, ele deixa o carro, e ladeia-a. Olham, lado a lado, durante
um tempo ainda suficientemente longo, para o portão aberto, primeiro, depois para
o interior, por fim, olham para si mesmos, e avançam. Transposto o portão,
observam aquele quadro feito de sal, pedra, cera, e silêncio. Ele enfiara as
mãos nos bolsos, a partir dali não sabia o que lhes fazer: afinal, que
utilidade têm num lugar de adeus?
Aqui e ali, vultos estáticos, numa inclinação dolorosa, como se perscrutassem um
reencontro (sempre adiado). O sol, aquela hora, no seu ponto mais vertical.
Incomodava-o a inclemência daquela luz. Como se, naquele contexto, fosse
desajustada. Luz e silêncio são antagónicos, pensava ele. Continuaram a
percorrer aqueles trilhos de terra batida, à sua volta apenas a crescente
compreensão da efemeridade das vagas. Por fim, deparam-se com o seu destino.
Duas campas discretas, lado a lado, como se irmanadas naquele horizontal adeus de pedra. Eles, ainda verticais,
de olhares rasos, num mutismo do sentir, contemplaram aqueles rectângulos que
se ladeavam. Duas datas, em cada um deles, prendiam o olhar: a da chegada e a
da partida. De permeio, nada. E, no entanto, esse nada foi o todo. Eles
sabiam-no. Sobretudo, ele. Afinal, partilhou uma parte desse mesmo todo. De
certa forma, pertence-lhe: duas totalidades que se interseccionam. Agora,
apenas um espelho de pedra. E as datas. E ele, em si, a memorizá-las, como se
precisasse, mais com o olhar, ao mesmo tempo que se irava contra os
balizamentos do social. Duas datas: parecia um bilhete tornado epitáfio; e da
viagem, nem um vislumbre… Procurou os rostos, a luz turvava-os, mas conseguiu,
neste preciso instante, ouvir-lhes a voz. O seu nome, por cada um deles. De
olhos fechados, tudo mais vívido. Curioso, do filtro da memória, neste momento,
diante do único irreversível abismo, apenas emergirem momentos de luz. Ele
sabia o quanto haviam semeado para essa colheita. De alguma forma, naquele
lugar de um adeus nunca cumprido, sentia-os mais próximos. Quase como o calor
de uma presença. Mas no fim, apenas contempla as suas sombras, num horizontal
silêncio. Deles, apenas ecos de vozes, de gestos, e de sorrisos idos. Nada
mais. Sentia-lhes a falta. Sim, é inquestionável. A sua aceitação das coisas
assenta no dogma de um reencontro. Nunca discutiu isto com ninguém. Nem se pode
falar de uma fé. Para ele, trata-se de um princípio. Ponto final. Há
necessariamente um reencontro. Como se de um diálogo, algures interrompido, se
tratasse. Esta ideia parecia-lhe poética. Nunca procurou aprofundá-la.
Bastava-lhe a sua superfície: um diálogo retomado no tempo, talvez com uma
outra linguagem, talvez com um outro sentir. No fundo, este era o seu Sentido.
E este lastro mitigava-lhe a angústia de um fim. O fim, em si mesmo, não pode
ter um Sentido, pelo contrário: é o absurdo! Ressuscitava-os, agora, com mais
veemência no espaço da sua memória. Tanto ficou por dizer. Não, é falso. Nunca
fica muito por dizer: apenas o essencial… É aquilo que o tempo silencia. O
verbo cede à voragem dos dias, e apenas comunicamos sobrevivência. E o que nos
aproxima? Como esquecemos de descrever a luz que ilumina aqueles que nos
aquecem o peito? Sim, ele teria de encontrar as palavras aquando do reencontro.
Ela, a seu lado, aquém destes sentires. É normal, viajara menos tempo com eles.
Neste momento, deu-lhe a mão, num silêncio de verbo. Contudo, ele preferia ter
continuado a sentir por inteiro, mas não lhe afastou a mão. Sentiu as vozes a emudecerem,
deixou de ouvir o seu nome, regressou aquela luz de olhares baixos, passos
lentos, e de sombras suspiradas, mas sem lhe largar a mão. Apenas o fez quando
se baixou, para, por breves instantes, colocar a sua mão sobre cada pedra.
Ainda hoje, não sabe o porquê, mas compreendeu, num recanto se si, aquilo que
sempre esvoaça da palavra… Só sabe que, ao levantar-se, sentiu uma leveza repentina
no peito. De novo, de mãos dadas. Ainda permaneceram, por um par de minutos,
diante das sepulturas. Há volta, apenas uma horizontalidade além palavra. Afinal,
aquele não é um espaço de verticalidade. Dos poucos, neste mundo. Não há
memória, dentro daqueles muros, de alguém olhar para cima. Sim, é verdade,
ninguém se lembra, por ali, de tal coisa. Como se a gravidade se acentuasse.
Talvez seja verdade. Por qualquer razão, todos inspiram profundamente antes de
entrar. Como se cada passo simbolizasse um antagonismo da vontade. Não podia
ser de outra forma. Afinal, esta é uma realidade paralela do quotidiano. Uma
realidade que se quer esquecida. Circunscrita por muros altos. Não se vá
escapar, e relembrar, diante do rosto de cada um de nós, a nossa temporalidade.
Por fim, o regresso. Ele, neste
momento, perdido em si, a relembrar episódios descontínuos, fragmentados,
anacrónicos; como se vidas se retratassem num revivalismo parcelar e difuso…
Mas, e o passado? O que nos sobra, ao olhar para trás? Um pouco como quem sai
de um jantar, com bons e maus momentos, e, no fim, ao levar as mãos aos bolsos,
repara que lhe sobraram apenas três ou quatro moedas. É um pouco assim o
passado: sobram sempre três ou quatro momentos: é o que nos cabe nos bolsos…
Nada mais. Já dentro do carro, e após o baque familiar das portas, houve um
indizível sentir de segurança: como se o micromundo deles se reajustasse e
retomasse o seu normal fluir. Atenção: até este momento nada foi dito. Ele
ligou o carro, o barulho do motor reforçou este sentir, o mundo retomava o seu
trânsito quotidiano, a título de curiosidade, ela, neste momento, desce o vidro
e contempla o céu, vira-se para ele e questiona: Onde queres ir agora?
V
Antes de falares, espera pelo meu
regresso
Ele, antes de iniciar a marcha, ainda
tem de regressar. Neste momento, estava com as ausências. Remexia aquelas
parcas moedas, como se, de alguma forma, sentisse que, com esse gesto, as
homenageasse. A verdade é que nunca vivemos a morte dos outros: em verdade,
vivemos sempre a nossa. A palavra morte,
fora as conotações poéticas, é sempre recepcionada com incómodo, como se uma
súbita e indesejada fria corrente de ar. Não, não estamos vocacionados para
esse tema. Carecemos, estruturalmente, de protecções, de ordem vária, na sua
abordagem. Como se fôssemos insuficientes. Daí a relevância da religião, no
horizonte humano. No fundo, a religião é a higiene da consciência. Nada mais.
Ele, à sua maneira, tacteava, ao de leve, estes e outros pensamentos. No
preciso momento em que virou costas àqueles símbolos pétreos de existências
idas, algo se desestruturou em si. Como se sublevasse um sentir incógnito que
lhe desarmonizasse o eu. Já havia
sentido isto antes. Sim, com aquela partida. Inicia, agora, a marcha. Ele olha
à volta: tudo de acordo com o seu pensar: não se vê ninguém: a demografia das
ausências: sim, a única que só conhece a soma; e um vazio irrecuperável no
interior de cada um. Ela, de janela aberta, inspira campo e de olhar nas
alturas. Ao contrário dele, ostenta um aparente sorriso no rosto. Sempre gostou
destes cenários rurais. Não nos esqueçamos da sua biografia. A novidade é o pão
da alegria. Daí a ligeireza do seu estado de espírito. Se bem que, por
natureza, não fosse de revirar e revirar assuntos. As questões, após se lhe
apresentarem, não deixavam de se submeter ao crivo do pragmatismo. Por
conseguinte, nesta óptica, há sempre duas possíveis abordagens: ou se resolvem
agora, ou são tratadas a seu tempo (aquando da possibilidade). Sem mais. Aquilo
que o silenciava, e que ele revolvia numa incessante busca por ecos de vozes idas,
para ela, é uma problemática pertencente à segunda categoria. Ela ainda ostenta,
neste momento, um olhar vertical. Nada a condiciona à sua actual circunstância.
A sua fé está com o tempo. Sim, podemos falar de fé. Se há pouco tecemos considerações
acerca do pão da alegria, podemos, agora, e sem qualquer equívoco, afirmar que
a fé é a ordem da existência. Mas atenção, a fé dela está num contínuo devir. Como se, de alguma forma, a jusante
se restabelecesse uma harmonia algures fragmentada. As ausências, para ela, são
fruto das circunstâncias próprias das coisas. Para quê questionar?
Compreendia-lhe a angústia, inclusive respeitava, mas o seu pensar obedecia a
outras colorações. Ele, no entanto, apesar de perceber o desprendimento dela em
relação ao acontecer das coisas, não aceitava. Com isto, não queremos
transparecer que discutissem ou qualquer outra coisa. Enfim, posturas tão
antagónicas face ao real, já se terão, com toda a certeza, digladiado em algum
momento ido. Mas quem procura um companheiro, para a mais longa das viagens,
compreende a importância de se harmonizar o silêncio com o verbo. Ele ainda com
as ausências. De novo, a dor. Mas um instinto, como que um bálsamo, a despertar
em si. Talvez o de sobrevivência que o impele, inexoravelmente, a sentir a pele
enquanto fronteira do real. Sim, agora de novo ao leme do pensar. Apesar
daquela nostalgia indelével pelos rostos subtraídos. E uma dor excruciante pela
dúvida de um reencontro. A dúvida, sempre amenizada por um talvez, e suportada
por uma fé com a lonjura de uma promessa. Será que...? Com o tempo, de certa
forma, ele começou a compreender que o rio das questões amenizava o próprio
desconhecimento. Como uma distracção que nos turva a verdade. Curioso: um
caminho, o do questionar, que nos enleia da verdade: como alguém que, chegado a
um precipício, senta-se, de costas para o abismo, acende uma fogueira, e assim
fica, a aquecer as mãos, extasiado pela luz quente e dourada, enquanto uma
brisa, nascida das funduras, se insinua nas suas costas, com melodias de outras
paragens.
Ele ainda com as ausências. E o
tempo. Sempre o tempo. Errado: a ideia de tempo só se enraíza, em nós, a partir
de uma certa altura. Sem cair em generalizações, isso é para os tolos e
especialistas (no fundo, sinónimos), a assimilação deste fenómeno ocorre entre
a terceira e quarta décadas de vida. Após a assimilação, como é óbvio, ou se dá
a maturação ou o refutar. Quanto à segunda hipótese, qualquer sociedade
ocidental é pródiga em exemplares. Normalmente pautam-se pelo seu cariz
excêntrico. Mas regressemos ao interior de uma viatura, que, neste momento,
entra na recta que dá acesso a uma estalagem, ladeada por um lago de águas
sonhadoras. Após saírem do carro, dirigem-se para um recanto fresco da margem.
Como se não resistissem a um canto encantado vindo daquele reflexo de céu. Por
fim, ela povoou o momento de palavras:
- Então,
como te sentes. (É de notar, que ela formulou a questão sem o olhar. Como
se sentisse, algures em si, remorsos por não partilhar daquele hermetismo
férreo, da paixão pelas ausências; no fundo, por não ostentar um olhar
horizontal.)
- (Neste momento, ele estava com as
águas. Avistou, de novo, aquele vulto familiar no meio do lago. Algo sorriu em
si, sem saber o porquê. Como se aquela figura, equilibrada no invisível, a
vogar no impronunciável de uma doce lentidão, rumo a uma promessa só sua, lhe
restituísse familiaridade, agora traduzida num sorriso; como se lhe despertasse
uma súbita ternura, talvez por, toda a sua vida, aguardar por uma promessa
algures por cumprir. Por fim, virou-se para ela, tudo o gesto eivado de uma
certa teatralidade – não o fez de propósito, note-se –, inspirou, e ainda a
saborear aquela lentidão vogante, respondeu-lhe num tom sussurrante e
comedido.) Vazio. Pensei que, ao vir
aqui, tudo faria sentido. Ou que, pelo menos, reencontrasse algo de mim. Mas
não. Uma vez mais, enganei-me. Talvez por já ser outro. Ou por me ter
distanciado em demasia de certas coisas. É estranho: reconheço os lugares, os
cheiros, as coisas, mas não me reconheço a mim.
(Ela admirou-lhe a honestidade. De
certa forma, já conhecia a resposta. Daí a questão. Gostava desta retórica,
sempre rebuscada, que traduzia algo de singelo: a dificuldade inultrapassável
de ele assumir sentimentos. Como se lhes fugisse. É de relevar, aqui chegados,
que ele ainda não falou de uma mão sobre a pedra. Como se esse momento jamais
tivesse ocorrido. E ela sabe que dificilmente esse instante receberá a luz do
presente. Também deteve o seu olhar naquele vulto emergido das águas.
Admirou-lhe o equilíbrio. Questionou-se acerca da rentabilidade da sua
actividade. No fundo, qual seria? Pesca? Recolha de algo para fertilizar as
terras? Teria uma família numerosa à sua espera na mesa diária? Denotava-lhe,
sem saber porquê, a passagem do tempo. Talvez pela lentidão dos gestos. É
estranho: uns veem poesia, outros o somar dos dias.) Anda para dentro. Estás cansado.
- Espera
mais um pouco. Sempre gostei deste cenário. Tranquiliza-me. Sabes, sempre o
conheci assim. Nada mudou, desde criança. É bom que haja lugares assim: onde as
coisas ocupem os mesmos sítios. Como se fôssemos esperados. Sim, é isso, parece
que nos esperam. E isso é cada vez mais raro. Não achas? (De novo, ela
dá-lhe a mão. Ele agradece num estremecer de dedos. O diálogo prossegue, circunscrito
a um entrelaçar de emoções, num lugar onde a palavra sobeja.)
Por fim, num passo lento, dirigem-se
para a estalagem. Tanto foi dito naquele instante de silêncio e de dedos
entrelaçados. Apenas, dessa forma, se compreende a dor. Porque só, assim, é
possível comunicá-la. E havia tanta dor neles e entre eles. Como se os
submergisse. No fundo, a dor é a noite da vida. Turva horizontes, mas ilumina
essências. De repente, ele larga-lhe a mão e regressa à margem. A um ponto
específico, por si conhecido, com sabor a infância. Ele aproximou-se de duas
árvores, que se ladeavam, com as raízes submersas, e daquela moldura natural contemplou
a outra margem. Assim ficou, durante alguns instantes, inebriado por aquele
cenário de verde e azul. O murmurar das folhas, o canto suspirado das águas, e
o aroma da brisa entardecida a Verões de meninice. Já ali estivera noutro
tempo, talvez num outro eu. Mas o
olhar com a mesma geografia. Em quantos lugares do mundo isto acontece? Ele não
deixou de se aperceber disto. Daí o fascínio. Como se, naquele lugar
específico, saciasse as saudades de si. Sim, nascemos um e transformamo-nos
noutro. É a lei da natureza. No fundo, amadurecer é regressar. E a compreensão
disto é sempre tardia. Ou nunca chega. Ele começava a ter vislumbres, entre
aquelas árvores, que ainda se lhe afiguravam altas. O murmúrio das águas a
evocar dias que continham a vida, num tempo que se arrastava na sapiência de um
velho e que permitia olhar o momento… A outra margem: como se lá viver
obedecesse a uma outra ordem, como se, sim, houvesse a diferença, o olhar se
aquietasse, e o pensar não fosse um quadro com as cores da noite. Olhou as
copas irmanadas, inspirou, e regressou para junto dela. Ela, de onde estava,
compreendeu-lhe os passos. Não sabe explicar o porquê, mas pareceu-lhe ver um
miúdo, com vestígios de brincadeira por toda a roupa, a luz da novidade no
olhar, uma fisga a descair-lhe do bolso, a aproximar-se. Sim, um miúdo de horizonte
cheio. Não lhe vislumbrou, durante aqueles passos, a inquieta sombra de
qualquer ausência. Ali, de facto, só viu o todo.
No átrio de entrada da estalagem,
sentada numa das sedutoras poltronas, estava uma senhora, com a idade do
Inverno, um sorriso de Primavera, um olhar de Verão, e gestos de Outono.
Folheava uma revista na indolência da tarde. Já se haviam cruzado. Enquanto ele
pedia a chave do quarto, ela trocou algumas frases com a anciã. Ele esperou, de
chave na mão, por ela. Não gostava desta sua verve. Ela sabia-o, mas ignorava.
Continuou a dialogar com a senhora, que permaneceu sentada, desculpando-se com
a idade. Ele não deixou de lhe apreciar a espontaneidade de diálogo, a
facilidade com que apresentava assunto à mesa, o timbre de voz devidamente
sintonizado com o interlocutor em questão, a própria e adequada animação dos
gestos, o olhar embevecido da anciã, pelo súbito interromper da solidão, numa
ânsia muda que aquele diálogo não se esfume assim tão rápido, apesar do
chocalhar insistente daquela chave perto do balcão, a revista entretanto
pousada na mesa, a mão que a convidava a sentar-se, ela a declinar na elegância
do possível (Haverá mais oportunidades.
Ainda ficamos por mais uns dias.), a regressar para junto dele, e a
fulminar-lhe o barulho da chave com uma expressão elucidativa. Dirigiram-se
para a sala de refeições. Eram dos últimos para o almoço. De certa forma, era
compreensível este azedume da parte dele. Afinal, ele já não se lembrava de,
entre eles, haver diálogos com olhares de Verão.
VI
Perdemo-nos tanto a olhar o longe, que
não ouvimos a súplica perto
Quando, de facto, tudo começou? A
razão de uma história está no seu final. Por isso é que são contadas desde que
o tempo caminha sobre a terra. Dito de outra forma: ouvimos uma história,
sempre, mas sempre, para lhe conhecer o fim. Esta é uma realidade irrefutável.
Neste caso, e ao contrário do que se poderia supor, há questões paralelas, bem
mais relevantes, que se sobrepõem ao términus. Por conseguinte, caro leitor
pode sair já nesta estação. O final, neste caso, é de somenos. Interessa-nos a
viagem, ou seja, a aprendizagem. E quando foi dado o primeiro passo de Henrique?
A génese é sempre obscura. Deixemos as raízes das coisas e mantenhamo-nos no
solo iluminado do mundo. A luz clarifica os gestos, o demais fica ao juízo de
cada um. Henrique casou com Andreia, em Lisboa, na década de oitenta. Ele
formara-se em jornalismo, ela em História. Haviam-se conhecido através de
amigos comuns, numa, entre as muitas, esplanada da capital. Se não estou em
erro, foi no final de uma aprazível tarde de Março, após a faculdade, que
aceitou o convite de um colega para beber um copo, sabia de antemão o carácter
político destas beberagens, havia, julgavam eles, um novo país para edificar, ideias
para esclarecer, cores para definir, e, sobretudo, posições a assumir.
Parecia-lhes, em certa medida, que o futuro lhes residia na palma da mão. Como
se fosse algo de muito pessoal, que transportavam consigo, e, em qualquer
altura, jogavam como um trunfo. O futuro na palma da mão! Não vale a pena
falarmos em ingenuidade. Carlos, assim se chamava o colega, dissertava acerca
do equilíbrio de forças políticas, como o melhor garante para a estabilidade
social. Ele ouvia, mostrava interesse através de olhares e gestos redondos, mas
o seu pensar viajava embalado no entardecer da cidade, naquele expirar
espreguiçado, num movimento de regresso (em
que direcção?), como se fôssemos esperados em algum lugar, sim, apenas
isso, como se só nos restasse essa memória: a da espera. Porém, o lugar
varreu-se-nos da lembrança. Daí este entardecido e contínuo regresso a um
desamparo, velado por uma arquitectura social, que silencia questões e nos
grita certezas. Mas as questões regressam, sorrateiras, após se fechar luz,
como se repousassem no travesseiro, e, antes de cada sono, iniciam um bailado,
simultaneamente hipnótico e angustiante, sem as cores do tempo.
Henrique continuava a representar o
papel de bom ouvinte. E não é fácil fazê-lo. Carlos dissertava acerca da sua
utopia. No fundo, é a única coisa que nos é possível. Falar em utopias
colectivas é um erro grosseiro. Daí a contínua efemeridade dos ismos: capitulam devido ao ilusório
lastro do colectivo. De facto, cada um procura o horizonte político onde ressoe
mais de si. Dito de uma forma menos cândida: onde os alforges fiquem mais
pesados. Daí as mudanças de cor… Henrique revia-se em alguns pontos elencados
por Carlos. Mas havia outros que refutava por completo, embora mantivesse
silêncio acerca desta sua oposição. Algures em si, achava que devia silenciar a
discordância. Como se, de algum modo, pusesse em causa todo um projecto.
Inclusive, a própria amizade. Sentia-o como um tabu. Vivemos, de facto, na era
dos tabus. A aparente transparência é o seu solo fértil. Carlos estava
inspirado. Continuava de verbo fácil. Henrique apercebia-se daquele preciso
momento em que o amigo, inebriado pela vaidade, perdia o pé e elevava a voz, na
esperança de um público nunca aparecido. Neste ponto, Carlos irritava-o. Havia
nele uma assimetria de comportamento, consoante o contexto: como se tivesse uma
máscara nos bastidores, e outra em palco. Perante isto, Henrique inferiu que
jamais iria partilhar utopias com a incerteza. Não, gostava de sentir o solo
sob os pés; preferia a discrição da plateia à luz ofuscante dos holofotes;
optava, talvez pela educação, por um timbre baixo (como se, assim, iluminasse
as palavras). A cada frase de Carlos, a distância adensava-se, como se
estivesse num barco que se afasta, naquela peculiar lentidão marítima, do
porto, e os laços do sentir acompanham os espaços da vista, até se romperem num
regresso ao sentir de um peito ferido. Mas a ferida de Henrique, neste momento,
tinha a cor da esperança. E não é menor. Pelo contrário: a esperança pinta-se
de futuro. O que resta a um homem quando o futuro se turva? Regressar, por
inteiro, ao presente, e, possivelmente, assomar a uma janela e contemplar o ido.
Sim, é o que se lhe torna possível, enquanto espera por um vento na face com o
sabor da lonjura. Carlos nem se apercebia da distância do amigo. À vista da
esplanada desarmou um pouco, apercebeu-se da presença da namorada, que o
esperava acompanhada da irmã. Temos de
mudar de assunto (murmurou para Henrique. Esta frase soube-lhe bem, não
pelo conteúdo, mas pelo timbre. Regra geral, ouvimos melhor aquilo que queremos
dizer).
Uma esplanada ao entardecer citadino
é um lugar além-tempo. Passado, presente, e futuro, povoam aquele espaço no
singular de uma harmonia tacteável. Estavam a descer a rua, a umas dezenas de
metros ainda, o suficiente para se formarem imagens (sempre possíveis e sempre
efémeras) entre desconhecidos. Henrique já conhecia a namorada de Carlos. Uma
rapariga pertencente a uma classe média/alta, cursava História, e havia
entrado, recentemente, no universo da utopia política. Podia-se afirmar, sem
qualquer temor, que as suas convicções iam bastante além das do namorado. É
fácil ter-se convicções políticas sólidas, ou outras quaisquer, enquanto não se
está familiarizado com a subtracção. Era de estatura média, morena, agradável à
vista, mas ostentava um permanente ar de desafio, traduzido naquele narizito
sempre levantado, que, à medida que se falava com ela, derretia qualquer
vestígio de boa vontade dialogante. Por conseguinte, Henrique tornava-se
cauteloso. Evitava aqueles temas polémicos, em que a indiferença não vislumbra entrada,
por haver sempre tanto eu em jogo. Este
saber adveio-lhe com o tempo. Compreendeu, com o devido custo, a similitude
entre eus e ilhas. Por outras
palavras, cada um tem a sua geografia, e nada se lhe pode impor. Sim, podemos
falar de grupos, e, em linguagem insular, de arquipélagos. Nada mais. E esta
sua compreensão das coisas, após muita esgrima verbal, levara-o actualmente a
um silêncio ouvinte e a um falar pensado. No fundo, o princípio do saber. Sim,
é sempre um princípio. Henrique andava eufórico com a descoberta deste ponto de
equilíbrio social. Como se este insignificante pico de saber constituísse, por
si só, uma das cúpulas do edifício da sapiência. Mas a vida é pródiga em
esquinas, seixos, e aridez, assim, o apelo da realidade é uma constante. E a
próxima queda é uma questão de tempo. Carlos, assim que viu a namorada, assumiu
aquela expressão sorridente que traduz o sentir da formalidade. A namorada
devolveu-lhe com o mesmo semblante. Henrique sentiu a omnipresença do formal entre
eles. A espontaneidade diluíra-se dos seus gestos e olhares. Talvez seja uma
relação pintada de ocaso, pensava ele, enquanto o seu olhar percorria a irmã,
um ou dois anos mais nova, bebia um sumo, na procura de uma invisibilidade
atenta. Sim, não escapara a Henrique o facto de ela, ao beber, não fechar os
olhos. Interessava-lhe mais o mundo do que o sabor da bebida. Por fim, chegaram
à mesa, e, após os cumprimentos, e a apresentação da irmã a Henrique,
sentaram-se. A partir do indizível embaraço, de haver um casal de namorados e
um outro de estranhos à mesa, o silêncio entrou num galope triunfal. De súbito,
ninguém encontrava uma frase que pusesse termo àquele ensurdecedor e arrogante
triunfalismo. Henrique olhava para dentro do café, como se na urgência
irreversível do pedido, se bem que, o seu olhar periférico analisasse, pelo
menos à superfície, Madalena, assim lhe fora apresentada a irmã, Carlos e
Andreia entreolhavam-se inquietamente, o que indiciava o adiar de um diálogo de
muitas frases… E Madalena, ainda com o copo, de certa forma, aquele silêncio
agradava-lhe, como se fosse o seu habitat natural, talvez porque ela percebesse
que, nesse espaço sem verbo, o desvelo de todos. No fundo, o verbo é a roupagem
do eu. São poucos os que respiram, na
presença de outrem, do silêncio. E Madalena comprazia-se desta cena. A irmã
avisava Carlos, com o olhar, de que lhe queria falar a sós. Carlos compreendia
que ela o censurava pela presença de Henrique – guerras de dias idos. Henrique
incomodado por aquele interregno, talvez por Madalena ter preenchido o seu
espaço natural, o de observar, interpretava o papel de cliente apressado. Foi
com a chegada do empregado que se deu a retirada do silêncio e se recuperou
alguma espontaneidade. Henrique ficou a saber (ou já sabia?) que Madalena
estava em enfermagem. À medida que o verbo reconquistava território, o olhar
soltava-se. Ali estavam os quatro, naquela esplanada entardecida, rodeados de
carros, buzinares, pombos, e transeuntes apressados, com sacos, sem sacos, de
jornal debaixo do braço, a fumar, de olhar cansado, de gesto lento, de sorriso
nos lábios, de desespero inaudível, de andar teatral, ou apenas ruínas
moventes…
Era latente uma certa tensão entre
Carlos e Andreia. Assim, Henrique e Madalena encetaram um diálogo paralelo.
Madalena ainda não descansara o copo. Este aspecto não escapou, uma vez mais, a
Henrique. Embora daqui seja possível retirar uma multiplicidade de
significações. Por conseguinte, a maior parte errónea. Henrique, neste ponto,
equivocou-se. Pensou em timidez. Sim, era isso, precisava de um ponto de apoio.
Estava longe. Se Henrique não estivesse tão preocupado com a sua performance
social, e em deslocar o seu sentir para os outros, e num certo fascínio pela
postura de Madalena, talvez se tivesse apercebido daquele traço de apreensão na
sua testa, do olhar ligeiramente descaído para a irmã, num misto de temor e
protecção. Carlos longe destas subtilezas. Aquém daqueles olhares comunicantes,
de Andreia. Para Henrique, de súbito, o tema hospital afigurou-se-lhe deveras
interessante. Madalena correspondeu, numa solicitude educada. O empregado
regressou à mesa com um café (Henrique) e uma cerveja (Carlos). Assim que o
copo readquiriu transparência, Andreia levantou-se, numa impaciência traduzida
na sonoridade demasiado metálica da cadeira, dirigiu-se a Carlos, e pediu-lhe
para irem ver uma montra próxima. Madalena sabia que montra era. Henrique
começava a ver Andreia com cores claras. Colocou as mãos sobre o joelho,
debaixo da mesa, para que o olhar de Madalena apenas se centrasse no seu rosto.
Assumiu uma postura confiante, assente numa serenidade representada. Madalena,
após a saída da irmã, pousara o copo. Este singelo aspecto escapara a Henrique,
tão ocupado com a sua encenação. Ainda falaram durante mais algum tempo, de
urgências, camas metálicas, batas brancas, acidentes, pré-operatório,
anestesias, até que o assunto se esgotou, e quando ele esperava que ela o
questionasse, de outra forma, que mostrasse algum interesse por si, ela não o
fez, deixando-o assim encurralado. Nunca tal lhe havia sucedido. Aqui chegado,
restavam-lhe duas possibilidades: insistir em hospitais (seria levar o assunto
à náusea), ou mudar de tema (mas qual?). Ela fora deselegante ao não perguntar
por ele. Ele olhou o tampo da mesa, e de novo via uma cavalgada pardacenta a
ganhar terreno. Entretanto, ela comprazia-se a observar-lhe o embaraço. Era
astuta. Sabia, há considerável tempo, que o assunto preferido de um homem é ele
mesmo. Sim, foi uma rasteira vil. Talvez a irmã pesasse nesta sua dureza. Mas
numa mulher inteira, esse lado de aconchego não é de sono fácil, e Madalena
acaba por proferir a questão que o faz erguer a vista e recuperar os destroços
de uma pose há pouco caída.
Entretanto, a poucos metros dali, mas
a coberto de uma das, intermináveis, esquinas da vida, Andreia e Carlos
assomavam à varanda do destino. Enquanto ela continha lágrimas, não era de
ceder, as mãos dele percorriam-lhe os cabelos, num murmúrio de quietude, e,
depois de lhe lançar as recorrentes questões (O que tens? Estás assim porquê? Diz-me o que se passa! O que te pôs
assim?), de abraços de segurança, de mais dedos no cabelo, ela, sempre a
olhá-lo, num tom distante, como se eivado de uma majestosidade ferida,
explanou-lhe a situação, ele, numa primeira reacção, num espanto incrédulo,
depois cresceu-lhe, demasiado rapidamente, aos olhos dela, uma impotência
repulsiva (E agora? O que vamos fazer?
Ainda por cima, nesta fase da nossa vida. Se fosse um pouco mais tarde. Mas
logo agora! O que é que achas? Concordas
comigo, não é?), que se transformou numa vil cobardia, Andreia desiludida,
a desejar que ele não lhe tocasse mais, num sentir próximo do nojo, Carlos
nervoso, a sentir o seu falhanço aos olhos dela, sim, compreendia a derrota, no
fundo, a única vez em que, impreterivelmente, ela o chamara para a vida, ele
num vacilar de ramagem ao vento… Só demasiado tarde, iria compreender que as
raízes de uma mulher são profundas, como todo o feminino. E quem mergulha na
vida, não se compadece com os viajantes da hesitação. De certa forma, ela não
ficou surpreendida. Em verdade, são poucas as vezes em que tal sucede. Regra
geral, na vida, as reacções dos outros acabam por simplesmente confirmar aquilo
que insistíamos em velar. Talvez por culpa nossa, devido a um interesse social,
económico, pessoal, conveniência de ordem vária, em manter uma relação que,
subcutaneamente, sabemos pintada de malogro. E são raras as que ostentam outra
cor. Por fim, dedos deixam de percorrer cabelos. Os olhos dela seguiam os
carros, rua abaixo. Como se a vida fluísse naquele sentido. De certa forma, ela
iniciava a compreensão deste fluir, como se estivesse direccionado rumo a uma
inevitabilidade, como se tudo se precipitasse numa incompreensão sempre distante.
Ele percebeu-lhe a lonjura. Sim, ela já estava com a distância. Quantas
esquinas teria ela somado naquela tarde? Carlos ainda ali, de olhar ávido
naquele rosto ausente. Ela virou-lhe costas e regressou para junto da irmã. Ele
permaneceu onde estava, num estatismo inominável, submerso no caudal invernoso
das emoções, a vê-la afastar-se (para
sempre, gritava-lhe uma voz de si). O silêncio a tiranizar-lhe o sentir.
A uns passos da mesa, ainda iluminada
por aquela luz generosa e cansada do entardecer, Andreia sentiu um estranho
alívio. Sim, um latejar antigo cessara. É verdade, a dúvida insinua-se por uma
janela, instala-se no nosso sótão, de vez em quando sai para passear, mas
regressa sempre de madrugada. Sim, é uma inquilina indesejada. E, neste caso,
não foi tanto a hesitação dele que a revoltou, mas sim aquela apatia
balbuciada, como se ele fosse apenas presente. Quem é presente, não vai além da
sua circunstância, ela, ao virar-lhe costas, já no seu tempo, a olhá-lo como um
rosto ido, só, numa esquina da cidade, por não comparecer à chamada dos actos,
de mãos nos bolsos, brisa de um fim prenunciado no rosto, ela altiva, a
afastar-se, numa inexorabilidade sentida, assim que lhe voltou costas, talvez
do movimento, talvez da forma como o cabelo ondulou, talvez do olhar dela, que
ele, sem ver, sentiu, ecoou um para sempre pelo entardecer suspirado da cidade,
ele teve de se apoiar na parede, não a seguiu, sim, estavam distantes, cada um
no seu tempo, mas, naquela tarde, numa esquina da cidade, o silêncio reinou, e
três destinos, sedentos da musicalidade de um verbo apaziguante, sucumbiram. Antes
de se sentar, a mão direita passeou-lhe pelo ventre, um gesto nascido de fonte
desconhecida. A sua vontade, naquele preciso instante, era ser um outro
distante, que não tivesse de obedecer a convenções, em vez de reprimir o grito
interior nuns lábios distendidos em forma de serena inquietude. Ela, agora, uma
estranha para si mesma. Como se estivesse desdobrada, e sem saber em qual dos
lados residia. No fundo, via-se nos dois, pelo menos em parte. Mas o todo, onde
se encontrava? Como pode uma fonte imolar-se? Era assim que se balizava o seu
pensar, mão direita sempre no ventre, o sorriso velado em forma de
interrogação, e uma súbita pressa de partir (Para onde? Sim, para onde?), isso de somenos, o que interessava era
sair dali, afastar-se, o máximo possível, daquela desilusão em forma de esquina
sombreada, sim, mover-se, e, desse modo, perseguir uma ilusão de mudança
(habitante do amanhã). Henrique, claramente, aquém de mãos no ventre e de
nativos do futuro, de novo crispado com o súbito regresso de Andreia.
Instintivamente, a olhar em volta por Carlos. Madalena, por seu lado,
agradecida. Ambas se levantaram (Temos de
ir), Henrique para Andreia (Onde está
o Carlos?), uma pergunta que expõe a sua total impreparação no elementar
campo das relações humanas, se atentasse em gestos e olhares, ou seja, nas
entrelinhas da vida, talvez aí, sim, compreendesse mundo. Mas, ainda sentado,
sem saber onde fixar o olhar, se nelas, praticamente de saída, ou na
omnipresente ausência de Carlos, elas (Até
a um dia destes!), ele levantou-se, num devagar surpreso, emudecido, uma
mão ainda reagiu num aceno de adeus, as irmãs afastaram-se céleres, Henrique de
regresso à cadeira metálica, na velocidade da derrota, de novo a olhar em
volta, por fim, da esquina sombreada, emerge Carlos, ainda de mãos nos bolsos,
num passo sem amanhã, sempre com a circunstância, aproxima-se da mesa, e
precipita-se, numa das três cadeiras vazias, de uma forma lenta e desencantada.
É curiosa a analogia nesta capitulação de ambos: um veloz, o outro lento, mas
ambos derrotados. Moviam-se sob velocidades distintas, mas obedeciam ao mesmo
sentir. Henrique olhava o amigo com avidez, sedento de um esclarecimento.
Carlos ainda a recuperar daquele atropelo emocional, num lento retorno ao leme
de si, para já, evitava o olhar de Henrique, mas assistia impassivelmente ao
alvorecer de uma ideia no horizonte da sua consciência: Andreia tornara-se um
rosto do passado. Algo, no olhar dela, o revelara. Ele, ainda sem saber bem
como, compreendera-o, nesse mesmo instante. O que leva um homem, jovem, com
pouca estrada da vida, a intuir algo com tamanha profundidade? Tornar-se na
página da esquerda? Se estas questões lhe fossem colocadas, Carlos não saberia
responder. Nem passados dois ou três anos. Numa outra perspectiva: Carlos
detinha a resposta, mas ainda não a iluminara. Isso levaria o seu tempo. Um
dia, ele irá compreender aquele olhar, naquela esquina de uma cidade
entardecida. E, a partir de então, viverá sob o signo da vergonha. Antes de um
último revirar na cama, de experienciar aquela leveza das angústias distantes,
aquela esquina surgir-lhe-á, numa nitidez crescente, e ele proferirá palavras
adormecidas, sim, é verdade, quantas palavras não adormecem no leito do nosso
sentir? Mas aquele olhar não desvelou verbo adormecido. Aqueles olhos apenas
espelharam um cobarde. Quando uma mulher assim olha um homem, ele compreende a
imobilidade da margem, e a crescente distância da corrente. Este saber
chegou-lhe tardio. Saber e oportunidade, noite e dia, estranhos desencontros de
viajantes tão próximos. Assim se cumpriu um adeus. Ela não lhe voltou a falar. E
ele nunca mais a olhou de frente. Quantas pessoas nos olham de frente? É uma
contabilidade que cada um deve realizar. Se o resultado for volumoso, é sinal
que se esconde da vida. Se, por outro lado, for escasso, é porque já deixou uma
pegada nos caminhos do mundo.
Por fim, Carlos relatou a Henrique o
diálogo silenciado nas sombras. Henrique, primeiramente, siderado com a lonjura
da proximidade, sim, tudo tão perto do olhar, mas tão distante do compreender,
de seguida, a questão ética, jamais a iria descurar. De certa forma, havia que
ripostar pela ignorância dos acontecimentos. Como se, ao confrontar Carlos com
a sua culpa, algo, em si, se saciasse – talvez uma sede infindável de fonte obscurecida.
Enquanto Carlos, de mão agitada no rosto, soterrava-se em justificações,
Henrique reanalisava o passado de há pouco, o nervosismo de Madalena, o
regresso penoso de Andreia à mesa, a súbita partida de ambas, quase uma fuga, a
invisibilidade de Carlos, nesse entretanto, até que emerge, de uma esquina
entardecida, parecia mais velho, envolto num manto de cobardia culposa.
Perdemo-nos tanto a olhar o longe, que não ouvimos a súplica perto.
VII
Há noites que nos engolem a alma
Nessa noite, uma questão foi
partilhada por quatro. Cada um observou-a da única forma possível: à varanda da
sua circunstância. Henrique, no seu quarto alugado, deitado de costas, olhava a
ascensão vaporosa dos anéis tabágicos, enquanto revia, instante a instante, a
estranheza daquela esplanada entardecida. Carlos, àquela hora, cumpria a
formalidade do jantar familiar, absorto por uma questão, e esmagado por uma
certeza: a da cobardia. Andreia perdia-se diante de um espelho. Olhava-se, sem
se encontrar. Iniciava a compreensão do longe. Não, não podemos falar de
encruzilhadas. Já a tinha transposto. Num lugar de sombra, ao contemplar um
olhar desconhecido. Madalena, ao telefone, procurava fundos, junto de amigos,
sob o pretexto de uma caridade, algures, por órfãos e desvalidos. Por vezes,
era traída pela gaguez da inexperiência na culposa arte de mentir. O peso,
regra geral, trai a fluência do verbo. Andreia, ainda com o espelho,
contemplava-se de perfil, sim, claro, sempre o ventre. A mão direita, em
movimentos circulares, pensava o possível: E
se tudo fosse outra coisa? Mas o seu olhar, devolvido por uma superfície
demasiado plana para incertezas, velado à possibilidade. A sua mão, agora, em
círculos mais rápidos. Talvez sincronizados com a velocidade do seu pensar.
Sempre a distância: ela, agora, viajante numa das carruagens de si. Como se
embarcasse apenas para partir. Nada mais. Adormecer uma vida em nós! Haverá dor
maior? Como se a vida, num repente, nos pusesse no papel de Deus! E como é
agradável protagonizar esse papel. O problema é quando despertamos para a
distância. Mas Deus constitui um problema maior para o homem, do que o homem
para Deus. Aqui reside um dos grandes equívocos da humanidade. A consciência de
Andreia adormecida, agora, em círculos sobre o ventre. Como se daí adviesse uma
qualquer paz. Em verdade, ela nunca havia equacionado outra saída. A cobardia
de Carlos apenas lhe aligeirou as coisas. E, no fundo, também não constituiu
surpresa. Sabia-lhe as fraquezas há muito, por pequenas coisas: palavras ocas,
acções estéreis, e gestos redondos. De uma outra forma: caminhava sempre longe
do precipício. Só o faz quem receia a mudança dos ventos. E o vento acaba
sempre por mudar de direcção. É uma questão de tempo. Andreia acomodara-se a
esta relação. Nunca se sentira, verdadeiramente, apaixonada. A partilha de
ideais, ao princípio, dera-lhe a ilusão de um espelho. Os pais, com o seu aval
à relação, após a devida certificação da proveniência familiar do candidato,
também alavancaram o compromisso. Mas público e privado são palcos distintos. E
só um casal pisa ambos. Ao assistir à representação de Carlos nos dois, Andreia
silenciava a sua perplexidade. À confiança pública, sublinhada com inesgotáveis
opiniões, tão inatas do povo deste rectângulo Ocidental, contrastava uma
timidez abúlica em privado, como se cada gesto de intimidade estivesse maculado
por um sentido de culpabilidade inquisitorial. A princípio, Andreia atribuiu
este temor à sua educação. Mas, com tempo, que tudo ilumina, até aqueles cantos
da alma mais recônditos, apercebeu-se da mais singela verdade, de nome:
inexperiência. O seu lado maternal enterneceu-se com esta descoberta, realizada
no silêncio de si, sim, estavam num palco, e aí não há lugar para confidências,
apenas para a representação. A inabilidade dele, nunca assumida, fazia-a
sorrir. Aqui chegados, devemos sublinhar o facto de ela não se mover pelo
desejo físico. Sim, neste particular, ele não a fazia tremer. Em verdade, entre
eles, nunca houve arritmias, insónias, ciúmes, nem beijos sem amanhã… Formavam
um jovem casal atípico. O que a movia era uma outra força, não menor: a curiosidade
dos factos da vida – que nunca deve ser menosprezada. Quantas consumações não brotaram
desta inclinação humana? Mas a curiosidade é uma força de curta duração. Assim
que satisfeita, extingue-se na efemeridade de um sonho esquecido na madrugada. Com
o tempo, pode-se afirmar que houve uma inversão de papéis. Ele, com o somar dos
dias, à medida que se desprendia da timidez, assumia o protagonismo da
iniciativa, ela, saciada a curiosidade, passou a fechar-se em recato. Sim,
reinava a dessintonia entre eles. Nunca caminharam lado a lado nos trilhos da
vida. Ou ia um à frente, ou era o outro a assumir-lhe a dianteira, olhares
perdidos em direcções opostas, e, por fim, a velocidade do passo na desarmonia
de um interior naufragado. Daí o desencontro, irreversível, na sombra de uma
esquina entardecida. Ela, no fundo, não queria adormecer a vida que florescia
no seu interior. Queria uma outra coisa: lavá-lo da memória. É algo bem
diferente. Há momentos, geralmente de dor, que nos chamam para a urgência da
vida. Foi o que sucedeu, naquele fim de tarde, quando ela vislumbrou aquele
rosto a velar-se, olhos no passeio, e nem raiva sentiu. Aquela reacção apenas
despertou nela uma tomada de consciência, até então desconhecida: a noção de
tempo perdido. Nada mais. Quantos saberes dormem em nós? Talvez demasiados. E
sempre por nossa insistência. Um momento na vida, e Andreia compreendeu tudo
isto. Partiu célere dali. Arrastou Madalena consigo. Queria recuperar vida. Mas
antes de tudo, havia que adormecer, para sempre, uma certeza em si. Há noites
em que cabe uma vida. Esta é uma delas. Caminhar no equilíbrio de uma decisão
tomada e na expectativa da concordância do outro. Era disto que se tratava, mas
as emoções turvam as evidências ao protagonista. E Andreia aquém de tudo isto.
Neste momento, olhava mais a porta que o espelho. A sua mão, agora, já se
imobilizara. Sai do quarto à procura de Madalena, os pais sentados, na sala, a
fruir da recém-estreada terceira telenovela brasileira, num pasmo de novidade,
pelas cores ainda recentes no ecrã, pela frescura do sotaque, o tal português
falado com açúcar, pelo materializar do futuro, sim, era o limite da novidade,
no fundo, é sempre assim, a novidade é, em si mesma, uma fronteira, encontra
Madalena ainda ao telefone, que leva instintivamente o indicador aos lábios ao
ver a irmã aproximar-se. Andreia detém-se, na expectativa de respostas. Ainda
levou o seu tempo. E sempre demasiado para quem o enfrenta.
Já a casa sustinha sonhos, pelo menos
os dos pais, quando Madalena apresentou as possibilidades. Andreia regia-se sob
o imperativo do tempo. Não havia muitas em consonância com tal desígnio.
Sentadas na cama, iluminadas pela luz do candeeiro rachado da
mesa-de-cabeceira, delinearam o futuro próximo. Andreia apercebeu-se de que,
nem por uma vez, Madalena emitira um juízo. De certa forma, agradecia. Mas, no
seu íntimo, buscava a aquiescência da irmã para a sua decisão. Por observações,
perguntas, olhares, Madalena não se esquivava, pelo contrário, mantinha-se numa
impassibilidade hermética. Debitava informações e possibilidades sem nada
transparecer. Quantas palavras ficam por dizer numa vida? É claro que Andreia
podia ser frontal, e colocar a questão sem rodeios à irmã, mas algo, em si,
silenciava-se numa incompreensão espantada. Madalena estava do seu lado, era
visível, mas não na totalidade. Sentia-o nas palavras por dizer e nos olhares viajantes.
Andreia, por momentos, precipita-se em si, e os outros? Que sentença lhe
conferiam? Os vários vultos de uma vida a desfilar à sua janela, os pais à
frente, com um olhar de resignada desilusão (Foi esta a educação que te demos? Se foste mulher para umas coisas,
assume agora as tuas responsabilidades! O que dirão os teus avós? Sinceramente,
é isto que aprendem nas faculdades? No fundo, a culpa é nossa! É nisto que dá
tanta liberdade. E os vizinhos, meu Deus, que vergonha! Tantos sonhos, tantas
ilusões, para nada! Nem casados são. Trouxeste a vergonha para dentro da nossa
casa. Mas pensa no inocente, que não tem culpa de nada. Vais matar uma vida.
Não podes decidir tudo sozinha. E ele, onde está nesta hora? Aproveitou-se de
ti, sua parva! Temos a nossa culpa, sim, sem dúvida, muita liberdade e muito
tempo livre. O resultado está à vista. Mas reflecte bem no passo que vais dar,
poder ficar com sequelas. Essas coisas nunca são cem por cento seguras. Fala
connosco, por favor), como se ela lhes tivesse roubado uma forma de
inocência, a seguir, no cortejo, os restantes familiares, avós, tios, primos,
padrinhos, os mais velhos com a desaprovação no rosto, os mais novos com a
indiferença, seguem-se os amigos, ostentam a compreensão, mas a fila é extensa,
agora lugar para vizinhos, numa incredulidade espantada (Sempre tão certinha. Quem diria! O rapaz só lá entrava, em casa, na
presença dos pais. Nem havia, entre eles, aqueles beijos escandalosos! Sempre tão
atiladinha com os estudos. Já andava na faculdade. Cumprimentava toda a gente
aqui no bairro, sempre com um sorriso. Não se esquecia de segurar a porta. Quem
diria!), desta vez a Professora Primária, ostenta uma expressão análoga à
dos pais (Sempre tiveste o teu quê de
rebeldia. Aquele estranho equilíbrio que exibias sobre o limite das coisas,
como se nos suspendesses sobre uma decisão irreversivelmente nascida de ti.
Não, não me surpreendes. Lamento-o. Desta vez, não te equilibras sozinha. Cuidado
com esse limite!), ela, pela primeira vez, baixa o olhar, há vozes que
perduram sempre acima da nossa consciência, desse modo, nem vê um sujeito, de
mãos nos bolsos, a passar debaixo da sua janela, encostado às paredes, com um
andar cansado, como se um peso invisível algures, já passou, lá vai, ela agora
levanta o olhar, não se apercebeu desta efémera figura, sim, já é passado, mas
agora alguém sustém o seu olhar, firmemente, e num aquém-verbo comunica-lhe
cobardia (Sempre foste a mais mimada.
Nunca soube porquê. É curioso, por ser a mais nova, protegeram-me mais, mas uma
protecção que, de certa forma, asfixiou a minha vontade. Como se tu fosses uma
obra da natureza, apenas para contemplação, e eu o barro que eles pudessem
moldar, segundo os seus desígnios. Não, não te censuro a escolha. No fundo, não
se trata de uma escolha. Antes de uma inevitabilidade. Mas se não o amavas,
este era o desenlace anunciado. Usaste-o para os teus caprichos, como veículo
para sair de casa, idas a festas, prendas, cinema, lanches, agora és vítima,
mas não única, de um vazio afectivo. Exploraste-lhe a fraqueza, e acabaste sua
vítima. Mas não única, repito. Censuro-te, também, a velocidade. Uma
sofreguidão que não pára para se debruçar sobre uma questão: E se eu abraçasse
o destino? Não, já tens tudo delineado. É verdade, criaram-te para seres
contemplada, daí a tua cegueira. Este episódio tornar-se-á, no futuro, uma
obscura e empoeirada memória. Nada mais. Estarei ao teu lado. Sim, tenho o
sangue aquecido com a tua provação. Embora não me adormeça o pensar), nada
mais, Madalena passou lentamente pela janela, e seguiu o cortejo a uma certa
distância.
VIII
Por onde pisa o pensar enquanto
andamos pela terra?
O que se passa em nós quando
caminhamos pelo mundo? Por onde pisa o pensar enquanto andamos pela terra? Elas
iam pelo passeio, àquela hora matinal preenchido por um vai e vem de desígnios
ocultos, num silêncio pensante, como se o verbo constituísse uma obscenidade, é
possível que sim, há alturas em que um singelo murmúrio grita sempre demasiado
alto. O destino sentia-se próximo. Afinal, a dor sente-se sempre antes de
chegar. Ficaram surpreendidas com a rua. Nada a distinguia das outras. Os
mesmos carros estacionados numa avidez caótica, os mesmos prédios de cinco ou
seis andares, com uma aura de cavalheiro idoso ofendido, os habituais postes de
iluminação, alguns detentores de uma escoliose aguda, talvez pelo esforço de
trazer a luz ao mundo, a resiliência vegetal personificada nas poucas árvores
visíveis, e, sem se aperceberem, diante do número metalizado da porta, o olhar
de ambas a percorrer os algarismos, um a um, como se incrédulas, chegaram, há
momentos que nunca esperamos viver, mas estes não viajam com o se… Madalena olhou a irmã, aquele olhar
falante que questiona, sem a intromissão do verbo, Tens a certeza? Andreia sentiu o olhar e compreendeu a pergunta,
mas preferiu manter-se com os algarismos metalizados, talvez se olhasse a irmã,
naquele instante, algo em si vacilasse. Andreia avançou e o indicador direito
pressionou o botão preto, redondo, do rés-do-chão esquerdo. Madalena assistia,
como se não ali, mas num longe demasiado. Talvez numa incredulidade de janela
aberta para as amenas brisas de terras ainda não sonhadas. A porta emitiu umas
boas vindas metálicas. De novo, Andreia, à frente, a segurar a porta à irmã.
Madalena seguiu-a. Curioso o facto de avançarem, prédio adentro, sem o despudor
da luz artificial. Assim, subiram os três degraus da entrada, e viraram para o
lado esquerdo. Estranharam a porta fechada. Nisto, ouviram a porta do lado
contrário abrir-se. Perceberam o equívoco, comum a muitos edifícios deste país,
esquerda e direita nem sempre respeitam a sua ordem natural. Depararam-se com
uma mulher baixa, de óculos, não com um ar maternal, mas de tia, acostumada ao
seu chá das cinco com os respectivos biscoitos de manteiga, que as olhava com
um sorriso tranquilizador, Andreia, de novo na dianteira, estendeu-lhe a mão, a
mulher baixa, de óculos, retribuiu, ao mesmo tempo que lhes dava passagem,
Madalena seguiu a irmã num denotado passo de contrariedade. Contudo, havia, em
ambas, um espanto sincero pela imagem de tia, de chá das cinco, da mulher.
Esperavam, claramente, uma figura grosseira, de gestos bruscos, algures entre o
talhante e o sinistro. As irmãs entreolharam-se, e, de novo, uma questão muda
ente elas Ter-nos-emos enganado? Mas
um segundo olhar ao chá das cinco, dissipou-lhes as dúvidas. Apesar dos gestos
contidos, do semblante sorridente, do discreto acolhimento, assim que a porta
fechada, o seu olhar, agora impúdico, desceu para as carteiras. Madalena, aí,
apercebeu-se de um traço, naquele rosto, até então velado. Quanto pode esconder
um rosto? Talvez uma vida… Mas aquele não era um rosto paciente, a gula é de
passada rápida, antes de questionar qual delas, uma pergunta antecipou-se,
providencial: Têm o dinheiro? Desta
vez, Madalena deu um passo em frente, e estendeu-lhe um envelope, com doze
notas de cinco contos, como se, com este gesto, procurasse, de certa forma, e
sem saber bem como, proteger a irmã, apenas isso, aquelas coisas que se fazem e
pronto, nada mais, só porque achamos que têm de ser feitas, e os outros
compreendem a ternura muda do nosso gesto. Pelo menos, assim o julgamos. O chá,
à vista do envelope, metamorfoseou-se em vinagre, indecorosamente abriu o
envelope, à frente delas, contou, uma a uma, cada nota, com um indicador que se
reabastecia de saliva na língua descaída. Terminada a contagem, e numa
atmosfera mais densa, por um desvelar evitável, o agora vinagre Então, qual de vocês andou a brincar às
cambalhotas? Assim que o silêncio engoliu aquela voz, num acto de
misericórdia, o olhar das irmãs, num só, na direcção da porta, mas Andreia deu
um passo na direcção oposta, apesar do olhar adormecido em algum canto de si, a
mulher volta à carga Está de dois meses,
certo? Madalena admirava a irmã, sim, não vacilava, perante aquelas
palavras. Há palavras que, em verdade, apenas reconhecemos adormecidas. São
aquelas que vivem no impronunciável de nós. E, naquele instante, Andreia
defrontava-se com parte de si, como se o seu eu se desdobrasse num confronto, causa e consequência colidiam na
exiguidade da entrada de um rés-do-chão. Mas esta era uma batalha silenciosa.
Como ecos apenas as incessantes vagas das falanges, que não passavam
despercebidas ao olhar condoído de Madalena. Está em jejum, certo?, de novo, aquela voz preenchia o espaço, com
questões que elas encaminhavam para a cave. Andreia respondia de um só fôlego.
Mas, o interrogatório continuou: É a sua
primeira gravidez? Quantos parceiros já teve? Com que idade começou…? Madalena
concluiu, com amargura, que não se expunha a intimidade da irmã, mas sim a sua
alma. Talvez Andreia, na sua determinação, aquém desta realidade. Afinal, ela é
que estava na arena. De súbito, a mulher, com os óculos cada vez mais
descaídos, lança-se num discurso desbotado, oco, risível… Como devem calcular, não faço isto por dinheiro. A humilde contribuição
que vos pedi, é para o material. Apenas e só. Não retiro daqui qualquer
dividendo. Entendo isto, como um serviço social, que, no fundo, ninguém quer
fazer. Este mundo não precisa de mais bastardos, de mais indesejados… No fundo,
de infelizes está ele cheio. Nós podemos comprová-lo! Só vos peço que, para a
próxima vez, tenham mais juízo. Sim, podem dar o meu contacto a quem precisar
dos meus préstimos. Estou aqui para ajudar. Vocês são filhos da pressa. E quem acelera expõe-se às arestas do
mundo. Não sei de quem teria mais pena… Se de vocês, ou se de quem já não vem.
Sempre vivi de consciência tranquila. Sou profundamente devota. Deus deu-me
este fardo. Aceitei-o com resignação. Alguém tem de ser porteiro do seu reino
terrestre. Apenas o retorno do silêncio expiou estas palavras. As irmãs
procuraram disfarçar uma longa e sentida expiração. Tudo se processou de forma
natural, como se algures um ensaio prévio. Madalena sentou-se, enquanto a
mulher se diluiu corredor adentro, secundada por Andreia. Entraram na segunda
porta à esquerda. Madalena baixou o olhar. Olhou aquela carpete verde-escura,
como se aí algum refúgio. Como se enganava! Talvez pela idade, ainda
desconhecesse que não há refúgios do lado de fora. O seu olhar, agora, na
janela. Embora o estore levantado, uma cortina rendilhada velava-lhe o
exterior. Permaneceu sentada. Não, não havia forças para mais. À sua frente,
uma mesa rectangular com duas ou três revistas demasiado fora de prazo. Nem as
olhou. Por ali, não repousavam as verdades de sempre. De novo, o seu olhar na
janela. Num súbito assomo de forças, ergueu-se e caminhou até àquele vestígio
de luz. Uma parte de si, indefinível, regozijou-se pela crescente distância
face ao corredor sombrio. Olhou a rua. Uma idosa passava, naquele preciso
momento, debaixo do seu olhar, na lentidão de quem desaprende os passos. Parou
para reabastecer pulmões e olhou para cima. Os seus olhares viram-se. Num
primeiro momento, Madalena em pânico, mas pelo tranquilo sorriso que subia do
passeio, deixou-se estar, e retribuiu gentileza da forma que pôde. A velhota
retomou o lar, talvez fosse próximo, enquanto a observavam daquele rés-do-chão.
Porquê aquele súbito alarme? Afinal, aquela era uma vulgar janela de um mais
que repetido rés-do-chão. Estes pensamentos desaguavam incessantemente na
efemeridade de uma consciência distante. Deixou-se estar, durante mais uns
momentos, a olhar qualquer outra coisa, que não carpetes verde-escuras e revistas
sem amanhã. Quem ali a visse, poderia considerá-la uma recém-casada, a
desfrutar da sua nova casa. Sim, apenas isso. Mas se, porventura, soubessem…
Que aquele é um dos lugares onde se fecha a porta do mundo. O seu olhar já não
sabe onde. Reparou que, enquanto esteve à janela, nenhum pássaro pousou no
parapeito. É verdade, há lugares onde os pássaros não pousam.
Madalena só se lembra de, ao olhar
para cima, se confrontar com aqueles óculos, incómodos, que a observavam. Quanto
tempo estivera ausente? O seu olhar já no relógio, percebe que não muito, os
óculos num sorriso Não se sobressalte,
está tudo bem com a sua irmã. Só está a descansar um pouco. Quer ir vê-la? Madalena
sem resposta: nem verbo, nem gesto. Como se tudo constituísse uma
impossibilidade, por si só. Ainda permanecia sentada, a olhar, com uma certa
perplexidade, os óculos altaneiros, tolhida num aquém-gesto de fonte indómita,
como se acordasse de um lugar povoado por risos brancos e pássaros pousados. Por
fim, deixa o sofá, ao mesmo tempo que Sim,
quero ir vê-la, mas… As palavras sempre insuficientes para o sentir. E ela
intuía que a irmã outra. Pelo menos, para si. Olhava aquele corredor com um
desprezo irreprimível, embora lhe reconhecesse a autenticidade, nem que fosse a
do terror. De novo, os óculos: Quer ir
vê-la? O cerco a fechar-se, o seu olhar na janela de há pouco, talvez um
sorriso, por ali, à sua espera, num ténue equilíbrio, por fim, cede à
insistência, e segue, corredor adentro, os passos daquele carrasco, à medida
que caminhava, por aquela ausência de luz, parecia-lhe pisar a alma, e uma
questão levantou-se-lhe: Iria reconhecer
a irmã?
Repare-se que não é uma questão de
somenos. Quão importante é a relevância de um gesto para um aproximar? A mesma
que a de uma partida! Madalena cedeu a entrar, embora não por inteiro. Em
quantos momentos somos um todo? Tão raros! Aquela divisão da casa estava
somente alumiada por um candeeirozito, com uma tonalidade esverdeada, em cima
de uma mesa de canto, no ar um demasiado aroma a éter, Andreia jazia numa
marquesa, ainda adormecida, o rosto numa candura sonhadora, como se abrisse
horizontes, quando, na realidade, acabara de fechar uma porta. Apesar disso,
Madalena passeia-lhe a mão pelos cabelos, no irreprimível do sentir, uma gota
brota-lhe da alma, e precipita-se-lhe no abismo do rosto.
Caminhavam, agora, pelo passeio, de
novo, num amparo mútuo. Para trás, um eco ensurdecedor e repetido de uma porta
a fechar-se. Quantos sons povoam uma ruína? Porventura as memórias de gestos
por cumprir. Ambas persistem no pudor do silêncio. Talvez fosse melhor, já que
os olhares gritavam tanto… A memória de Madalena ficara-se pelo gesto
enternecido de uma mão passeante por uns cabelos adormecidos. A partir daí,
correra para longe, e permanecera num lugar longínquo, apenas por si conhecido.
Só assim suportava a vida. Sim, com a distância. E, nesse lugar, descansava de
si mesma. O retorno fazia-se por um caminho crescentemente pedregoso e batido
por um vento demasiado agreste, de nome realidade. Enquanto esperavam pelo
autocarro, sentia-se-lhes o incómodo do estatismo. Como se a imobilidade fosse companheira
do verbo. Mas, neste preciso final de tarde, cada uma permaneceu consigo mesma,
numa súplica inaudível pela bênção de um esquecimento. Lavar a memória! Será
possível? Se alguém observasse aquelas duas jovens mulheres, com a sempre
necessária distância, talvez lhes compreendesse o peso. Não pelos rostos, mas
pelo olhar. Como se tivessem perdido a alma num qualquer canto deste mundo…
Andreia encostada à paragem, pelo lado de fora. Como se, de repente, também ela
fizesse parte da paragem. O que esperava Andreia? Talvez a sua caminhada fosse
a da espera. Madalena sempre a seu lado. Não, Madalena não fazia parte da paragem.
Olhava à sua volta. O seu olhar, agora, num pedaço de natureza, circular,
lastro de um abraço vegetal dos céus. Acompanha, com curiosidade, uma
disciplinada fila de formigas de regresso ao lar. Antes, porém, a ordenada fila
desvia-se para recolher os despojos de um habitante das alturas caído na
eternidade poeirenta da terra. Havia algo de inquietante, nos, agora
branqueados, globos oculares da ave. Como se um pânico gritado de vazio! Uma
imobilidade irreversível perpassava-lhe pelo diminuto corpo. Nem vislumbre de
asas e de voos. Como se da terra nunca se houvesse erguido. Madalena
inquieta-se com a indiferença daquela fila militarizada na recolha dos haveres
possíveis. Assemelhavam-se a saqueadores perante um despenhamento. Onde já
vislumbrara um similar pânico gritado de vazio? De repente, a memória
ilumina-se, enquanto o peito se lhe obscurece: no olhar da irmã, que caminha
passos com o sabor da espera. O autocarro aproxima-se com uma indiferença
monótona, porém, tudo se agita na paragem, à vista daquele profeta metálico,
Madalena um passo em frente, Andreia ainda irmanada com a paragem, como se
tivesse perdido o sentido do mundo, cumprem-se saídas e entradas com passos
distintos, talvez compassados pela saudade do lar, Andreia, por fim, cede à
súplica de um gesto demasiado insistente, sobe os incontornáveis três degraus,
inicia-se movimento com o relembrar de equilíbrio, pelos vidros rasgados, a
cidade acolhe a noite, respira-se regresso em cada luz acesa, no passo
acelerado, numas chaves procuradas, na montra escurecida, num êxodo precipitado
que despe a cidade anoitecida.
O serão decorreu normalmente naquele
lar. A insistência do telefone era a única nota dissonante. Os pais longe daquelas
conversas sussurradas. Nem estranharam o facto de Andreia se deitar tão cedo.
Vivemos tão perto, mas estamos sempre tão longe. Aquela menina que, ainda há
pouco, em jogos de meninice na rua, a sorrir-lhes o instante, como se não
houvesse mais, eles embevecidos pelo milagre, sim, afinal, é disso que se
trata, agora, a poeira a acumular-se nos rostos, e eles longe do eco de uma
porta que se fechou.
IX
Se eu pudesse, por um dia, ver o
mundo pelos teus olhos
É sabido que o mal marca sempre mais
que o bem. Mas porquê? As respostas são múltiplas. Mas esta verdade subsiste
insofismável. Nesta linha de raciocínio, podemos concluir que, o eco desta
porta irá ecoar, nas profundezas de Andreia, até ao seu último ocaso? Sim, é
uma forte possibilidade. Afinal, o bater de uma porta sobrepõe-se sempre à sua
abertura. As velocidades também são distintas. Talvez porque o abrir seja
tacteante, como se eivado de uma dúvida. Enquanto o bater, veloz, é a
concretização de uma certeza. Daí o acelerar do tempo. Como se o movimento
emergisse de uma carência: o encerrar de algo. É verdade, uma porta só se fecha
quando outra se prepara para abrir. Há quem defenda que o tempo tudo cicatriza.
Porém, o tempo é um rio. E só lhe sobrevive quem aprende a lição das margens.
Dali, no entanto, só se avistam os escolhos. Talvez, pelo peso, se demorem na
corrente. É que dos risos, nem ecos. Nada. Os risos são pertença dos ventos.
Sim, diluem-se pelos ares.
Na manhã seguinte, a estudante de
enfermagem valeu-se dos seus conhecimentos no auxílio da irmã. Andreia
despertou com a inquietante frescura viscosa de uma hemorragia. Primeiro, o
espanto da distância. De seguida, a consciencialização do acontecimento. Assim
que viu a irmã entrar, uma longa expiração brotou de si. Afinal, não se podia
levantar. Sem saberem muito bem porquê, havia um sentir de derrota entre elas.
Como uma história imoral em que o vilão sai ileso. Nunca mais falaram de
Carlos. De certa forma, Andreia sentiu que o expelira de si, diluído naquela
hemorragia sempre demasiado escarlate. Como se um exorcismo líquido. Sim, um
pouco isso. Madalena, por seu turno, apreendia as chagas da entrega. E, no
fundo, a essência da feminilidade. Com o tempo, o telefone serenou. A estudante
de História retomou os trilhos do passado longínquo. Afinal, o passado recente
ainda uma dor demasiada. Quanto à estudante de enfermagem, regressou ao seu
quotidiano, porém, a sua visão das coisas alterara-se definitivamente. Sempre
olhara o outro com interesse, como um complemento do seu eu, talvez por se considerar incompleta, uma sensação nascida de
parte incógnita, mas, no fundo, omnipresente em cada gesto por si esboçado, daí
o esforço impassível de erigir pontes que pudessem atenuar-lhe o monólogo
incessante de si, que lhe gritava repetidamente questões que não o eram, porque
uma pergunta existe na medida de uma resposta, uma só existe com a outra, de
outro modo, apenas despojos do pensar. Nada mais. Por conseguinte, Madalena
bebeu avidamente o cálice da desconfiança. Não houve mais pontes. É curioso, o
seu monólogo interior sossegou. Tal como as dúvidas. Como se uma dor demasiada
e plural anestesiasse a sede de um sentir ávido por um mundo sempre pequeno.
Apesar do curso em comum, Henrique
foi-se afastando de Carlos. Ou talvez não. Provavelmente terá sido o contrário…
No fundo, a distância nasceu em reciprocidade. Tal sucede quando as partes se
apercebem de que pisam solos distintos. Henrique não lhe perdoava a cobardia.
De certa forma, a distância que impunha a Carlos constituía, sem se aperceber,
um resíduo de fidelidade em relação a Madalena. Como se, imperceptivelmente,
aproximasse um passo na sua direcção. É sabido que o sentir é sempre múltiplo.
E, nesta linha de pensamento, podemos afirmar, sem qualquer erro, que Henrique
queria rememorar-lhe o rosto, contudo, apesar das gradações, habita-nos sempre
um ego, e este ditava-lhe uma imperiosa necessidade de se apartar, perante
elas, da acção de Carlos. Apesar dos gestos expectáveis do social, durante uns
dias, pensar e sentir num torvelinho veloz. Por fim, decidiu-se. A seguir às
aulas, pela hora de almoço, encaminhou-se para a Clássica. Antes de Madalena,
havia que transpor Andreia. A intenção – e como ele o sabia – era demasiado
baixa, mas o resultado – sempre velado – seria frutuoso. Não a encontrou da
primeira vez. Ainda pensou que, talvez, aquilo a tivesse derrotado, ou, pelo
menos, obrigado a desistir por um ano. Mas, para haver certezas, decidiu
regressar, desta feita, ao final da tarde. Nem de propósito, deparou-se com ela
logo à entrada, nos degraus, atrás os heterónimos pessoanos eternizados na
letra do mundo: a pedra. Observaram-se de uma forma inquietante, ou seja, no
perscrutar das intenções do outro, enquanto isto, o verbo em filtro, mas uma
certeza solar: aqui não havia coincidências! Ela desceu, degrau a degrau, enquanto
o seu pensar tropeçava de questão em questão, ele, entretanto, procurava-lhe
vestígios de hostilidade, não ousava avançar, receoso de ruir quaisquer
possibilidades comunicantes. Porém, não lhe passou despercebido um ligeiro
traço de derrota no rosto dela. Sim, as certezas haviam-na abandonado. Ela,
agora, estava diante si. Era outra. Tinha, neste momento, à sua frente, uma
mulher. Ele quase cedia ao calor da compaixão. Quanto sofrimento, dor,
humilhação… Mas havia nela uma dignidade ferida, que lhe conferia uma nobreza
restituída. Henrique intuiu a urgência de diálogo.
- Então,
como estás? (Ao contrário do habitual, ele arrastou as palavras, não só
para dar mais ênfase à sua aparente preocupação, como, também, para lhe compreender
o estado de espírito.)
- (Ela sorriu, um sorriso simples,
tímido até, inclinou o rosto para o lado direito, ao mesmo tempo que levantava
o ombro. Enquanto isto, baixara o olhar. No entanto, era palpável uma certa
satisfação por esta visita. Como se, o seu passado recente, não fosse um total
engano…) Agora, está tudo bem.
De seguida, Henrique perguntou-lhe se
queria tomar um café, ela acedeu, e dirigiram-se a uma esplanada próxima. Tal
como da última vez, a cidade recolhia-se antes de um longo espreguiçar final.
Curiosamente, ele não se sentou de frente para Andreia. Optou por ficar
ligeiramente para a sua esquerda. Henrique não o fez intencionalmente, embora
Andreia lesse, há muito, entrelinhas. Sim, não havia intenções secundárias
nesta visita. Ficou agradecida por este facto. Pelo menos, com ela. Andreia
esqueceu-se de Madalena. Há sempre algo que nos escapa – como a realidade é
esquiva! À medida que a conversa fluía, Henrique apercebeu-se de qualquer coisa
de majestosidade ferida, nesta nova Andreia, ali, de novo, diante de si. É
curiosa esta constatação: como se ela tivesse despertado, sim, a circunstância
alterara-se-lhe, daí os ombros descaídos, as frases reflectidas, um olhar sentido…
Mas o passado é o nosso vizinho da frente. E intrometeu-se na conversa com uma
naturalidade que deixou ambos desprevenidos no silêncio do constrangimento.
Andreia olhava a mesa. Henrique sentia-se acometido por uma nova e inesperada
vaga de compaixão. Sentiu vontade de se levantar e abraçá-la, de lhe beijar a
testa, passar-lhe dedos reconfortantes pela face, sussurrar-lhe esperança nos
ouvidos. Mas nada fez. Permaneceu sentado, a assistir, impassível, àquela
náufraga que, diante de si, esbracejava num esforço hercúleo para permanecer à
tona do seu sentir. Por fim, respondeu-lhe:
- Não,
nunca mais o vi. Desde aquele dia. Sabes como é… Foi uma porta que se fechou.
Aprendi que nunca conhecemos alguém por inteiro. É curioso: é sempre preciso uma
situação-limite para o outro se revelar. (Não lhe passou despercebido que,
à medida que as palavras lhe fluíam, ela erguesse o rosto e o olhar. Como se
algo se reorganizasse no seu interior. No fundo, a compreensão das coisas não é
mais do que o seu iluminar.) E tu? Têm-se
falado?
- (A questão deixou-o suspenso. De
todo, não a esperava. Ela limitou-se a ler-lhe o rosto. Por uns momentos,
recuperou a coroa perdida. Por fim, ele lá encontrou uma resposta, que lhe saiu
entrecortada…) Pouco… Sabes também como
é… A vida… Sim, vemo-nos na faculdade, mas…
- (Ela já não ouviu mais. A repulsa
ensurdecera-a. Diante dela, de novo, aquele rosto cobarde. É sempre a face o
que perdura dos outros. No fim, é o que resta. Sim, rostos próximos e os gestos
distantes. E uma memória que adoça e turva num escrutínio de que não fazemos
parte. De certa forma, ela agradada com aquele balbuciar cauteloso.) Compreendo.
Como é estranha esta mão invisível
que nos traz e leva os outros! Era-lhe inimaginável, há uns tempos, estar
sentado, numa esplanada, com Andreia. E o espanto da fluência do diálogo!
Falaram de trivialidades, num além-tempo, como se eles e o mundo se esquecessem
numa grata reciprocidade. Foram os primeiros candeeiros os faróis daquele
regresso.
- Já é tarde… (Não
lhe passou despercebido o tom de pesar. Como se ela acordasse de qualquer coisa
de bom. Ele opta pelo silêncio e refugia-se num sorriso. Assim, teria que ser
ela a despedir-se. Mas o feminino é uma ilha. E ele ainda muito aquém de
compreender essa insularidade. Ela, pura e simplesmente, obriga-o a uma
confissão de intenções, com uma singela e trivial questão, enquanto se
levantava…) Ainda vais ficar?
- (Neste ponto, perdido que estava na
circunstância, ele, em verdade, não sabia o que responder. Demorou a
regressar.) Bom… Se já vais, eu
acompanho-te. Nem dei pelo tempo! (De imediato, arrependeu-se desta
afirmação. Com quantas armas nos sentamos a uma mesa! Subtraímos a
espontaneidade do nosso horizonte. Em que altura? Porquê? Levantou-se de ombros
encolhidos e acelerou o passo, para o interior do café, com o intuito de pagar.
Pelo menos, sublinhava o seu cavalheirismo. Ela permanecera, de livros na mão,
no exterior, à sua espera. Assim que ele regressou, ela sorriu. Sim, ele era,
de novo, emissor. Por vezes, um facto demasiado cruel! Como o escritor perante
a ostensiva e desafiante folha branca. Havia que retomar o diálogo. Ele, na
procura de algo, a enfiar mãos nos bolsos, ela a compreender-lhe a falência de
recursos, e a decidir-se…) Acho que a
minha irmã ia gostar de te ver. Não queres jantar connosco?
Há frases que nos adoçam o viver.
Esta foi uma delas. Ele, primeiro, em sorrisos, só depois, em compreensão. Como
recusar? Quantas vezes, numa existência, o vento nos adeja a vela do sentir?
Através de um gesto, expressou a sua anuência ao convite. As palavras,
demasiadas nesta altura, atropelavam-se. Daí a preferência pelo gesto e por um
sorrir balizado.
Entrar em casa de alguém é, um pouco,
como desvelar parte de uma interioridade. Porque é da nossa essência rodearmo-nos
daquilo que somos. Por outras palavras, da nossa identidade. Alguém minimamente
atento, ao entrar numa casa, passa a conhecer o seu proprietário. Este facto
não era estranho a Henrique. Foi o pai quem lhes abriu a porta. O facto de
Andreia não ter usado a chave, e optado pela campainha, não lhe passou
despercebido. O pai estendeu-lhe a mão e, com a devida cordialidade, pô-lo à
vontade. Henrique simpatizou tanto com a figura como com os gestos. Era um
sujeito para lá dos cinquenta, informal, com uma distância segura das coisas –
são os que menos se ferem –, talvez uma consequência também da sua biografia,
seguiu-se a mãe na ordem dos cumprimentos, uma mulher observadora, daquelas que
respeita a natureza, sim, sabe que tem dois ouvidos e apenas uma boca, pelo rosto
percebia-se uma beleza anoitecida, embora fosse notória a atenção aos ventos da
moda, por fim, já diante da mesa de refeições, Madalena. Dirigiu-se-lhe com uma
expressão impassível, ele numa expectativa incómoda, e apenas um Olá seco, como se cumprisse uma
obrigação social ou profissional. Ele devolveu-lhe o cumprimento com uma
entoação similar, numa tentativa de ocultar um sentir descompassado, mas, a
partir daí, estava refém daquele olhar. Rapidamente criou-se mais um lugar à
mesa. Pelo que percebeu, durante a semana, como em muitos lares, o jantar era a
única refeição que reunia a família. A mesa de refeições situava-se na sala, de
facto espaçosa, rectangular, com uma janela de uma ponta à outra num dos lados,
a decoração num excesso de plásticos coloridos, conforme nesta altura, estranha
esta tentativa, nos anos oitenta, de fundir o futuro no presente, sempre o
receio do fim, é verdade, a ameaça nuclear, o pós-guerras, o términus de um
século, as previsões apocalípticas, mas roubámo-nos um futuro, daí o saudosismo
de quem viveu nestes tempos, não pelo passado, mas por um amanhã que não se
cumpriu. Regressemos àquela sala de jantar, rectangular, onde se colocava mais
um prato na mesa, pelas mãos de Madalena, sob o olhar demasiado atento de
Henrique. Um olhar percebido por Andreia. Antes de se sentarem à mesa, frases
de circunstância, como se um interlúdio de algo relevante. Sim, a mesa tem um
lugar central na história do homem. De traições a despedidas, os exemplos são
vastos e cansados. Neste caso, temos um apartamento citadino, um serão de
semana, à mesa cinco pessoas, o dono da casa num esforço palpável de etiqueta,
pela família, mas sobretudo pelo estranho diante de si, a pensar na tarde do
dia seguinte, na desculpa, médico, fisioterapia, revisão do carro, para não
aparecer no escritório a seguir ao almoço, a olhar o casaco pendurado à entrada
de casa, no pequeno embrulho depositado no bolso direito, que contém um anel,
pago com aquela quantia que retirou do depósito a prazo, sempre o receio que a
mulher perceba a subtracção, mas aquelas tardes, e depois há a adrenalina, isso
não tem preço, conheceu-a no café, aquele ao cimo da avenida onde costuma
almoçar, sim, trabalhava lá, um dia, entre a bandeja e a mesa, os dedos
tocaram-se, a chávena entre o parêntesis dos olhares, de novo, em si, aquele
sentir juvenil, é verdade, quem ama caminha para novo, as deferências
aumentaram, certo dia, A que horas sai
hoje? Ela a disfarçar o alcance da questão, com um aparente tímido inclinar
do rosto, Às seis da tarde… Mas porquê? Ele
Sabe, já a vi na paragem. Se quiser,
tinha muito gosto em dar-lhe boleia. Ela entre o anelar esquerdo dele e um
horizonte só por si vislumbrado, por fim, a decidir-se Se não for muito incómodo… Trocara, meses antes, a aldeia, a
enxada, as missas dominicais, as vindimas, pelas mesas de um café da cidade,
mas andava demasiado cansada, o barulho, os piropos grosseiros, um certo desdém
pela sua pronunciação temperada de ruralidade, até que aquele cavalheiro, de
gestos compreensivos, começou a olhá-la como se ela singular, sim, as mulheres
são números primos, passou a andar de escova no avental, antes do almoço, uma
paragem no espelho, já sabia que ele não gostava de canja, que preferia as
coxas ao peito no frango, evitava os fritos, de facto, era um homem que se
cuidava, e sempre com uma palavra simpática, fazia, também, questão de se
despedir sempre, com um Então, até amanhã
a olhá-la nos olhos. Há boleias que, por todos os motivos, não se podem recusar!
Ele, na primeira boleia, cumpriu o trajecto rigorosamente, apesar do joelho
dela próximo das mudanças, ainda lhe sentiu o calor, mas preferiu assim. Ela
ocupava um quarto na casa de umas primas velhas, para os lados da Almirante
Reis, ele estacionou o carro mesmo à porta. Antes de sair, ela Então, muito obrigado. Amanhã vai lá
almoçar? Ele não perdeu a oportunidade, Não.
Vou lá para a ver. Isto foi há uns quatro meses. Desde aí, multiplicaram-se
boleias, encontros, sorrisos, e muito mais. Leonor, assim se chamava ela,
trocou o quarto em casa das primas velhas por um pequeno apartamento no
Desterro. Claro que ele impulsionou esta mudança. Também largou as mesas. Ele
providenciou-lhe uma secretária vazia na firma de seguros. Assim, partilham o
almoço, em vez de um servir o outro. Ele sempre foi um democrata! Há uns dois
meses, deu-se o primeiro abalo na relação: ela com um atraso, ele com os nervos,
ouviram-se gritos num apartamento lá para os lados do Desterro, recriminações,
afinal, tudo não passou de um equívoco, os fluxos retomaram a sua normalidade,
ela um pouco sentida, não, não era nenhuma golpista, longe disso, o que é que
ele julgava? Assim, tiveram direito a um primeiro fim-de-semana juntos, nesta
altura, lá por casa, Andreia e Madalena ouviram falar numa convenção de
seguradoras, rumaram a Óbidos, passearam de mão dada por aqueles empedrados
históricos, sim, é verdade, eles também escreviam a sua história… Enquanto a
olhava, ele descobria-se. Afinal, quem era ele? Há questões a que só o momento
pode responder. A mãe fixava-se em Henrique, e procurava compreender qual das
filhas guiara os seus passos até ali. Sabia, por experiência própria, que, na
maioria das vezes, quem nos guia os passos é a imagem de um rosto. Os dela
também já obedeceram a uma face. É verdade que há muito, mas o lugar do sentir
é nas margens do tempo. Quem achar o contrário, equivoca-se. Era filho de um
casal amigo dos pais. Costumavam passar as férias juntos, dividiam o aluguer de
uma casa de praia. Geralmente, Algarve. Enquanto os casais, eles de jornal na
mão, elas sempre com as revistas, debaixo do guarda-sol, debatiam instantes de
actualidade, os jovens passeavam, conheciam-se, e, acima de tudo, aceitavam-se.
Ele teria mais dois anos que ela, ia para a tropa nesse Setembro. Uma noite,
enquanto os casais à volta de um envolvente jogo de cartas, por vezes, para
apimentar a coisa, puxavam da carteira e rolavam umas apostas, eles falaram de
um gelado, saíram para a tépida noite algarvia, sim, cumpriram o gelado, houve
mãos que se deram, beijos de luar, vontades confessadas, no regresso subiram
àquele terraço com aroma a figos e alfarrobas, em baixo ainda as vozes das cartas,
deitaram-se, primeiro, a ouvir os suspiros da noite, pareciam infindáveis, sim,
uma noite de sul parece uma das portas da eternidade, de repente, com um beijo
mais demorado, iniciaram uma viagem de rios e oceanos… Tornaram-se um. Diante
dos pais, nem as mãos se davam. Preferiram assim. Sem a vigilância paterna, o
mundo pertencia-lhes. Mas foi penoso o regresso desse Verão. O casal amigo a
morar em Abrantes, ela com os pais em Lisboa, as cartas sempre aquém do desejo
de o ver, e o Ribatejo tão longe, ainda por cima, a tropa no horizonte, num
certo Sábado, pareceu-lhe ouvir a voz dele lá em casa, talvez parte de si ainda
no território das possibilidades, não, era, de facto, a voz dele com a do pai
na sala, passos pela casa, a mãe a bater-lhe à porta, Temos visitas!, ela a trocar possibilidades por factos, de sorriso
no rosto, só regressou a si quando sentiu os braços dele a rodeá-la. Comprara
uma moto para aproximar Abrantes de Lisboa. Nesse Sábado, não falaram de
amanhãs. Sim, estavam numa margem, e olhavam-se, como se o mundo um lugar
longe. Deixou-a em casa já as sombras provinham dos candeeiros, ela receosa, Regressas de noite, ele a pôr o
capacete, os sorrisos agora mais desvanecidos, a moto a ligar-se, os gestos
agora pesados, umas últimas frases sussurradas, ele a partir, ainda olhou para
trás e, com um gesto de Adeus, desenhou-se amor na noite, por fim, uma esquina
subtraiu-o do horizonte. Já Domingo conhecia o mundo, quando o telefone chamou
por alguém. Ela, sem saber porquê, achou que o telefone gritava de uma maneira
diferente. Ouviu a voz do pai sumir-se. Escutou, depois, uma mão tímida,
demasiado receosa, bater-lhe à porta do quarto. Ela: Sim?! O pai abriu a porta, ela olhou-o e compreendeu. Nada foi
dito. Quantas vezes as palavras nos morrem por inteiro? Não se lembra de mais
nada. Nem de ter logo seguido viagem para Abrantes, de lá ter ficado durante
dois dias, de saber em si uma dor demasiado excruciante, uma dor superior à de
todos os outros, ainda por cima, uma dor invisível, porque sempre se dirigiam
aos pais dele, Que perda lamentável… Tão
novo… Todo um futuro pela frente… Ela tinha apenas a sua dor para abraçar.
Nada mais. Quanto dela não ficou naquela estrada? Debaixo daquele camião?
Talvez demasiado. Ainda se ouviu, por diferentes vozes, os analistas de
ocasião, sim, há quem procure, por uma vida inteira, pelo seu público, que a
mota em excesso de velocidade, por outra voz, o camionista gostava de parar na
Ti Matilde e aviar uns quantos gargalos, dizia que, assim, ficava desperto toda
a madrugada, houve também quem falasse de geada na estrada, ainda se aventou
que um animal a atravessar, daí a tragédia…
Era a sua primeira despedida. Ela
olhou o caixão, estava fechado, aconselharam a que assim fosse, cada um deve
ser recordado como foi e não como partiu, depois podia impressionar, mas
regressemos àquele olhar ávido, que permanece num terraço de sul, com aroma a
figos e a alfarrobas, dedos que se entrelaçam, sussurros lentos melodiados ao
ouvido, e algo se precipita de si, pelo abismo de uma face, sim, ela começava a
aprendizagem do ido. Ia levar o seu tempo. Talvez o tempo de uma vida. Porque
um despojo de si iria perdurar, para sempre, num terraço de sul.
Andreia vagueia por parte incerta. Os
seus gestos, de certa forma, habituaram-se a uma mecânica que lhe permite
corresponder, no imediato, às múltiplas solicitações do exterior (Um guardanapo, por favor, Passas-me aí o
vinho, Vais à cozinha buscar mais um copo…), enquanto permanece numa
qualquer janela, como paisagem apenas vidro, o mais desconhece, nem sequer
olha, a apreciar a presença de Henrique, uma luz diferente naquele serão,
admirava-lhe a espontaneidade contida dos gestos e a lisura das palavras, percebia o agrado dos pais nele, e
interrogava-se pelo hermetismo de Madalena. Evitou o contacto visual com a
irmã, não queria hostilizá-la. Hoje, sem saber porquê, sentia uma súbita
leveza, como se aceitasse o seu lugar no mundo. A compreensão está sempre a
montante do aceitar. E nem sempre a corrente aqui chega. Quando tal sucede, há
quem lhe chame felicidade. Daí o sorriso esboçado por Andreia, da janela
distante, a olhar um horizonte por se cumprir…
E Madalena? Por onde caminhava ela
neste serão de semana? Ao ver Henrique entrar, casa adentro, ao lado de
Andreia, sentiu-se desagradada. Talvez pelos últimos passos da biografia
fraterna. Talvez pela leveza que ela imanava. Talvez pelo sorriso apatetado que
ele ostentava no rosto. Talvez por si própria, que recorrentemente fugia do
sorrir para evitar o sal no rosto. Talvez pela surpresa, de todo inesperada, e
a memória que se ergueu diante de si, por aquele rosto ali, de um rés-do-chão
de todo um edifício de dor. E a irmã em leveza, como se não tivesse sido ela a
fechar uma porta. Não, havia coisas que não podia conceber. Cumpriria com a
etiqueta. Nada mais. Porém, a curiosidade é uma velha inquilina do feminino. E
Madalena não podia abafar os porquês que
se atropelavam na sala do seu pensar. Ao longo do serão, sentiu os olhares da
irmã, preferiu ignorá-los. Sim, queria respostas, mas não por ela. Considerava
indecorosa aquela presença no serão familiar. Sobretudo pelo contexto do último
encontro. Apesar da luminosidade tranquila daquela esplanada, só se recorda de
trevas, embora se tenha apercebido da ignorância dele face às ocorrências. Mas
será que ainda hoje ignora os gestos daquela tarde? Se não, é um intruso que
ali está. Madalena aquém da longa conversa entre Andreia e Henrique. O outro
sempre uma construção de nós. No fundo, a realidade é sempre nossa. Daí o
abismo entre nós e o mundo. E com o abismo, a queda, ou melhor, as quedas.
Sempre plurais, sempre múltiplas e recorrentes. Até que, um dia, nos
questionamos: para quê erguer? Sim, é verdade, não nos cansamos de reerguer,
apenas nos questionamos: para quê? De novo, o abismo inultrapassável: vivemos
em nós, mas caminhamos pelo mundo. O vento no rosto, mas o sentir algures em
nós; tangem-se lábios, mas aceleram-se corações; entrecruzam-se dedos, e uma harmonia
desce; olhos que se olham, almas que se tocam…
E como estaria a decorrer o serão de
Henrique? Desde que ali entrara, que o seu foco residia num rosto. O diálogo
com Andreia diluíra-se há muito da sua acuidade. Assim como outros pormenores.
Achara, de uma forma geral, os pais simpáticos. Contudo, se lhe perguntassem
pormenores de outra ordem, por exemplo da casa, não saberia o que responder, embora,
num dado momento, se tenha apercebido da decoração moderna, da amplitude da
sala, do ambiente familiar descontraído, mas havia um olhar que teimava em lhe
fugir. Se não fosse este singelo e relevante facto, talvez, quiçá, tivesse
reparado numa lâmpada fundida no candeeiro da sala, que não houve uma frase, em
todo o serão, trocada entre os pais, no hermetismo insondável de Madalena e
numa claríssima hostilidade à sua presença, por fim, no olhar perdido e carente
de Andreia que apenas ansiava por um gesto de compreensão. Pediria muito?
Talvez o impossível… Sempre o abismo. Mas também Henrique pintava a sua
realidade. Haverá alguém que não o faça? E esta noite será nuclear para a sua
aprendizagem do mundo. Ele entrou de alma cheia, mas irá sair oco. Sim,
Madalena nem o olhava, por outro lado, tratava-o na indiferença educada de quem
cumpre o seu papel. A princípio, ele atribuiu à timidez, à medida que a noite
avançava, ainda reflectiu acerca da memória dela, como estaria a relação com os
pais, talvez uma discussão recente, ou uma indisposição de ordem física, por
fim, enquanto se despedia, uma frase, suficientemente iluminada, perpassou-o a
uma velocidade considerável: Ela não quer
saber de ti… Foi Andreia que o acompanhou à porta. Madalena nem se despediu.
A dada altura, entre a recolha da louça, as conversas que procuram relembrar a
visita de se ir embora, deixou de se ver. Ainda pensou em perguntar se ela não
se vinha despedir, mas conteve-se. Perdia-se em porquês, apesar de lhes conhecer a esterilidade. Antes de sair,
voltou-se para um último adeus a Andreia. Algo demorou-o naquela face. Não
soube o quê. Apenas sentiu o prazer do viajante que, após uma dura subida,
compreende a relevância do horizonte. Sim, após o sonoro baque de uma porta,
uma brisa cantada insinuou-se por uma janela. Sorriram-se. Ainda trocaram umas
frases para alimentar um reencontro, que acabou por ficar agendado. À medida
que se distanciava, passeio fora, daquele lar, uma sensação de estranheza
desceu sobre si. Entrou com a omnipresença de um rosto, e saiu com o ténue
vislumbre de um outro. É verdade: um homem carece de rostos, uma mulher de
gestos. Henrique iria aprender esta verdade, mas a seu tempo.
Nessa noite, antes de se abandonar às
asas do sonho, cada um, na solidão de uma última hora, vislumbrou-se com as
suas pequenas grandezas e significativas iniquidades. O pai, enquanto sentia a
respiração pausada e suave da mulher a seu lado, o pensar com Leonor, amanhã
iria levá-la a conhecer um novo restaurante, esta promessa há muito repetida
pelos seus lábios, de amanhã não podia passar, além do mais, um pouco agastado
com aquele vizinho dela, morava no apartamento em frente, dizia-se artista
plástico, mais novo do que ele, de certa forma, mais bem-parecido, e depois
tinha aquela forma melosa de falar que parecia privilegiar a essência feminina,
de facto, era um sujeito que não lhe agradava. Talvez esteja na hora de lhe
arranjar uma casita maior, afinal, mais uma divisão nunca fez mal a ninguém.
Pelo contrário. E hoje, ela não deu aquele toque familiar, só por ele
reconhecido. O telefone num mutismo gritante. E como o jantar se arrastou! Não,
de amanhã não pode passar. Também seria importante outro fim-de-semana fora.
Onde seria a próxima convenção de seguros? Torres, Alcobaça, Caldas? Teria de
escolher. Talvez opte pela Foz do Arelho. Uns passeios à beira mar são sempre
revigorantes. E Leonor vai gostar. Afinal, provém de horizontes da
interioridade. A escolha da zona Oeste, para estas fugas, não foi um acaso.
Primeiro, é próximo de Lisboa. Segundo, não tinham por ali família nem
conhecidos. Talvez se enganasse. É possível. Desde que caminhamos pelo mundo,
temos sempre a possibilidade de sermos vistos. Neste exacto momento, por
exemplo, ele julga a mulher adormecida. Engana-se. Ela também perdida no
labirinto de si. Sabe, há tempo suficiente, que ele achou um novo brinquedo. É
uma forma eufemística de se colocar o problema. O homem é sempre a criança que
foi, sem nunca o reconhecer. A mulher, no entanto, deixa definitivamente de ser
criança a curto prazo. Sim, uma vez mais, a selecção natural a ditar, neste
caso, a maturação dos géneros. Percebeu-lhe a distância, sempre crescente,
primeiro pelo olhar, depois pelos gestos. No fundo, não se importou. Sempre o
olhou mais como um amigo íntimo, nunca conseguiu mais do que isso, apesar das
privacidades, dos filhos, enfim, há coisas, com o tempo, que se tornam
mecânicas, também nunca se recriminou por tal, uma vez que a instituição
casamento foi-lhe inculcada como uma inevitabilidade, um imperativo, e ele,
quando se conheceram, tão solícito, sempre com mesuras, um humor delicado, ela
ria-se (e como isso lhe era importante!), deixou-se conduzir, quando, um dia,
voltou a si, estava a contemplar-se, com um vestido de viajante celeste, a um
espelho. Quantos passos para ali chegar? Talvez de uma forma mais correcta:
quantos passos lhe recusaram para ali estar? A voz da mãe Estás gloriosa, minha filha! Não é um sonho? Ela a olhar-se ao
espelho, e, sim, uma gloriosa lágrima a desenhar-se-lhe no rosto, e a espelhar
um sonho de sul. Figos e alfarrobas aromatizaram os seus sentidos. O seu
coração jazia para sempre naquele terraço iluminado pela memória. De si restou algo,
indefinível, alguém que se apaixonou por ruínas, que olha esses testemunhos da
história numa proximidade de diálogo. Não tirou a carta. Em verdade, houve
coisas que nunca realizou. Como se lhe fosse impossível sorver a vida como um
todo. É verdade, aprendeu uma distância segura do mundo. E o seu olhar nunca a
mentiu. Sempre aquela tristeza a velar uma luz, outrora, promissora. Como
censurar uma criança que se cansou de um brinquedo tão monótono? Um brinquedo,
à partida, tão apelativo, mas que depois não cumpria, em nada, as suas
potencialidades. Um defeito de fabrico? Talvez… Pode-se recriminá-la por virar
a sua atenção para outro? Claro que não. De certa forma, estava grata pela
distância dos gestos e a ausência do olhar. Como se, subitamente, lhe fossem
dadas tréguas sob a forma de tempo. E como ela carecia de tempo para a ruína de
si! Talvez, assim, encetasse um diálogo, algures interrompido, e reconstruísse
qualquer coisa de possível…
X
Ansiamos pelo outro, mas as solas dos
sapatos gastas obrigam-nos a cumprir velhas leis, que apelam mais ao observar
que ao sentir
A indiferença entrara demasiado cedo
na vida de Henrique. A aprendizagem do invisível... É verdade, cedo provou o
fel da vida. Há quem lhe chame maturidade. Antes ou depois, acaba por bater à
porta de todos. Como se uma chamada da vida para o silêncio, cansada da
histrionia estéril da juventude. Todos acabam por beber do cálice amargo. Uns
compreendem-lhe o sabor. Outros vivem para esquecê-lo. E é um sabor tão
simples, é apenas o gosto da finitude… Mas só compreende este sabor, quem tem
uma alma nocturna. Regra geral, são aqueles que, na viagem, sabem da última
estação. Reencontraram-se uns dias depois. Henrique sentiu dificuldade em
romper aquele frio inicial, que precede o restaurar da confiança, o fluir do
diálogo, em que apenas debitamos lugares-comuns, para ocultar uma essência
envergonhada que correu a esconder-se no sótão de nós. Ansiamos pelo outro, mas
as solas dos sapatos gastas obrigam-nos a cumprir velhas leis, que apelam mais
ao observar que ao sentir. Quantos não desconhecem estes singelos factos dos
relacionamentos humanos? E como Henrique se habituara ao posto de observador!
Assim que se sentaram, talvez uns segundos antes, ele olhou à sua volta. Ela
não se apercebeu. Ainda bem. Mas o que receava Henrique? Ou, por outro lado, o
que procurava ele? Talvez a primeira questão se aproxime mais da resposta. Uma
imagem perpassou-o vinda de uma qualquer obscuridade de si. A imagem de Carlos
a sorrir, face à sua alegria diante de um despojo, que por ali deixara. Ainda
uns instantes para se recompor, entretanto, Andreia já encetara um diálogo, que
ele achava interessante, e, sem se aperceberem, os dois num outro tempo, uma
vez que fruíam de um início. Cada um estava ali por inteiro, com os seus cumes
e as suas ruínas, com a luz de Verão e as borrascas invernais e pardacentas, grande
e pequeno, nobre e miserável, é tão raro estar assim na vida. Num estado de
completude. Desvelado. Por outras palavras, a um horizonte do palco. Como se
esse estar fosse uma premissa, jamais pronunciada, por eles, para aquele momento.
Sim, é verdade, ambos possuíam uma alma nocturna. Havia, entre os dois, muitos
gritos silenciados, e um mar de lápides por sonhos inconclusos, contudo, hoje,
(Seria manhã? Seria tarde?) olhavam-se e brotava uma espontânea compreensão
pelo indizível nocturno de cada um.
Caminhar
I
Só se fala de trivialidades quando se
cala a essência
Ela pedalava na fúria do momento.
Sempre a pior… Lá ia, colina acima, numa lentidão contrastante com o empenho.
Regressava da escola. Porquê esta abnegação? Ansiava pelo lar? Carecia de algum
rosto? Não. Apenas queria superar, rapidamente, o sofrimento crescente daquela
subida. Tinha quinze anos. Era morena. Para o alto. E o rosto… Bom, possuía um
desses rostos, na aparência indecifráveis, a que é necessário regressar, para
mais um vislumbre, como se, ao regressarmos, nos aquietasse uma questão
incómoda, para logo nascer outra… No fundo, era um rosto de província, com o
anseio da novidade. Não, não era bonita. Ainda menos bela. Mas não se pode
afirmar que fosse um rosto desagradável. Muito pelo contrário. Podia-se
repousar nele o olhar, por largos instantes, com uma promessa demorada de luz.
E era esse rosto, derrotada a colina, que contemplava o vale, povoado por
milheirais, onde, perto do horizonte, se espraiava a vila que albergava a sua
escola. Aliviou o suor do esforço, numa espontaneidade juvenil. Higienizada a
palma da mão (as calças sempre foram além das pernas), manteve-se numa
suspensão, debruçada sobre o guiador. Estávamos em finais de Maio. O tempo já
anunciava Verão. Tudo, em seu redor, convergia numa emanação expectante. E a
isto, ela não podia ficar indiferente. Sentia-o, de uma forma muito profunda.
Como se tudo, subitamente, lhe fosse estranho: o límpido azul do céu, a
brancura lenta das nuvens, a aparente dissonância dos sons da natureza – a
caminhada das águas, o canto estival da cigarra, o lento conselho das ramagens…
E ali ela permaneceu. A respiração aquietava-se. Se lhe pedissem, não o sabia
explicar, mas aquele era único lugar que não lhe cansava o ver. Talvez por
olhar tudo a uma distância de si… Talvez por ver de cima… Talvez por tudo,
visto dali, sempre lhe surgir renovado… Talvez por ainda conhecer pouco do
mundo.
Começou a ouvir vozes. Estava na
altura de retomar o caminho. Eram os colegas da sua aldeia, ainda sem o
privilégio da bicicleta, que se aproximavam. Ao contrário dos outros dias, hoje
não esperou por eles. Porquê? Ela ainda não sabia muito bem o porquê. Antes de
começar a pedalar, apanhou algumas amoras. Sim, estavam reluzentes. Como não
havia reparado nelas antes? Afinal, o espírito sempre se sobrepõe a tudo. E o
dela inquietava-se com um episódio ocorrido durante o recreio. Sim, talvez
fosse isso que a impelisse ao caminho e a ignorar os colegas. Sim… Mas, eles
nada presenciaram. Ignoravam, por completo, o sucedido. No entanto, ela já
pedalava embalada pela doçura das amoras. Talvez para harmonizar o fel
incessante dos seus pensamentos, que a aprisionavam num reviver incessante de
uma cena que ela suplicava por esquecer.
Tudo se passara durante a manhã. Num
dos intervalos. Há umas semanas que se tornara próxima de Vítor. Passaram a
conversar em surdina e a rir estridentemente. Este era o primeiro ano de Vítor
na escola. Era filho de um médico, que havia sido destacado para o hospital da
vila. Dizia-se que provinham de uma grande cidade. A novidade sempre a atraíra.
Mas Vítor, para ela, constituía mais do que uma novidade. Representava toda uma
nova realidade. Desde a aparência, aos gestos, ao modo de se arranjar, a
própria dicção, tornavam-no singular. Para ela, era como se lhe abrissem uma
janela para os almejados horizontes… Não é necessário sublinhar que, para os
outros colegas, sobretudo para os que eram da sua aldeia, estas deambulações
suspirantes foram mal acolhidas. Ela não se importou. Passou a fazer o
trajecto, de cinco quilómetros, entre a aldeia e a vila, sozinha. Afinal, ela é
que ia de bicicleta. Oferecera-lhe o pai, há dois anos, numa manhã de férias.
Primeiro, ouviu a campainha. Desceu a escada, correu para o quintal da entrada.
O pai aguardava-a com uma bicicleta nova, que expirava feminilidade, a seu
lado, apoiada no descanso. Ela percebeu num ápice, mas, ainda hoje, não sabe se
foi a ternura facial do pai, o ar novo da bicicleta, o que mais a alegrou.
Talvez fosse o todo. Afinal, um instante é a sua totalidade. E ela, embalada
por aquele som metálico, no compasso acelerado da juvenilidade, mergulhou na
segurança compreensiva do abraço paterno. Amava o pai. Mais do que a mãe. A
questão do mais é sempre complexa. Porque nos reporta para as parcelas da soma.
E em cada parcela subjaz uma razão. Mas, sim, e dito de uma outra forma, amava
com mais intensidade o pai. É longa e cansada a comunhão entre mães e filhos e
entre pais e filhas. Com a mãe havia um conflito permanente, como se, no
indizível de um dilacerante silêncio, um grito de desespero ecoasse com a
exigência de um só rosto feminino naquela casa. Afinal, só se fala de
trivialidades quando se cala a essência.
Voltemos ao seu pedalar furioso. De
que se alimentava? Sim, de uma cena ocorrida num dos intervalos dessa manhã.
Mas o que sucedeu? Ela revivia, numa amargura crescente, e com uma dilacerante
nitidez, cada momento. Ela saíra na urgência apressada do sentimento da sala.
Vítor seguiu-a, numa hesitante lentidão. Como se cada passo correspondesse a um
pensamento. Ela dirigiu-se, como se de um rito se tratasse, para o pequeno muro
de pedra, debaixo de uns choupos. Dali podiam sentir o vale, atravessado pelo
caudaloso rio nascido das nuvens de pedra, longe do estrépito inato de um recreio
escolar. Mas, hoje, cada passo dele anunciava dúvida por aquele destino de
sombras e horizontes. De súbito, ela compreendeu… Não, ela viu, sob a evidência
sempre iluminadora, o que a doçura da ilusão sempre vela. Sim, ele não
disfarçava um sentir, sempre traduzido no indisfarçável espelho do interior,
algures entre a compaixão e a vergonha. Ela já o aguardava, sentada. Por um
breve instante, apesar de fugaz ainda pôde sentir vergonha de si, procurou
ocultar, numa obstinação visceral, a crueza fria da sempre impreparada
realidade. Ele continuava a aproximar-se, naquela veloz lentidão de quem se
quer afastar. Sim, já sabíamos. Tudo ocorreu sob a desencantada claridade daquela
manhã de Maio. Porém, a dúvida há muito germinara nela. Afinal, a dúvida sempre
foi planta de pretéritos há muito idos. Por fim, ele já estava próximo dela, a
mão direita na nuca, a esquerda no bolso, o olhar na terra. Ela inspirou o que
restava em si de dignidade, levantou-se, de olhar no horizonte (agora vazio), e
retirou-se dali. Deixou-o só, mas pôde sentir, em alguma parte de si, o sempre
suspirado alívio que ele sentira. Não se recordou mais nada dessa manhã. Tudo
se passou para uma interioridade que procurava obnubilar um facto concreto.
Porquê? Talvez por o orgulho possuir um vasto território da sua geografia
interior. Daí a dificuldade de ocupação por estranhos naquelas paragens. Desde
esse dia, ela nunca mais lhe falou. Mas, como quase sempre acontece, o verbo
exterior foi a antítese do verbo interior. Por conseguinte, ela dedicou-lhe
quase todo o seu pensar.
Mas foi no alto daquela colina, sob a
clarividência do cansaço, entre o doce afago das amoras, que ela compreendeu.
Sim, ela não suportava mais aquela máscara de compaixão, no rosto dele, ao olhar
os seus toscos sapatos, como naquela manhã; ou as suas remendadas roupas, noutras
ocasiões. Ela amava-o. Ou seria mais correcto: desejava-o? Como a um objecto de
cariz simbólico? Afinal, Vítor provinha de sonhadas aspirações. Mas, como
dissemos, o orgulho já é seu amo. E ainda tão nova! Há quem nasça com esta
forma. Dizem que não costumam morrer novos.
Seja como for, ela não podia, por
muito mais tempo, continuar a ler-lhe vergonha no rosto. Era-lhe insustentável!
Não a podemos recriminar por isso. Sim, advém-lhe de um sólido orgulho. E aqui
se delineava a sua trajectória futura. O eu
sempre se iria sobrepor ao mundo. Iria viver num constante em si. As lágrimas, é bem certo,
encontrá-las-ia sempre a jusante. Nem que fosse no cimo de uma colina ensolarada,
numa tarde de Maio. Mas uma questão impõe-se: podemos recriminá-la? Se
atentarmos no seu gesto a montante, ela deixou-o só no meio do recreio, porque
o seu orgulho assim determinou. Dito de outra forma: não foi por ter concluído,
sob a evidência da desilusão, que ele era fútil e snobe; não, isso não a faria
demover-se; o erro dele, se assim o podemos definir, foi tê-la ferido na sua
essencialidade, que é, simultaneamente, a sua força.
Pedalava, agora, ao sabor de um
desinteressado regresso a um lar que nunca sentiu como seu. Nem no futuro,
sentiria a sensação apaziguante de sentir-se
em casa. Este sentir desperta cedo. Neste aspecto, podemos traçar uma linha
divisória: os nómadas (são aqueles que se enamoram da circunstância, por outras
palavras, são os que olham o tempo), e os sedentários (encantam-se com a
familiaridade, de outra forma, são os que olham o espaço). Ela, claramente,
pertence à primeira categoria. A paisagem repete-se, na monotonia de uma lógica
extenuada: o horizonte pautava-se ora de campos agrícolas (por vezes, ouvia-se
canto rouco e teimoso de um tractor), ora por pinhais, pinceladas de castanho,
sombras e verde, com uma repetida promessa de frescura – mas a surdez
estridente de um grito inaudível sempre a impeliu por sendas claras e
familiares. Este temperado ar primaveril no rosto aquietava-a. Após a colina, o
caminho perdia a sinuosidade. As curvas eram escassas. Ela, por vezes, fechava
os olhos, apenas para sentir mundo. Hoje também o fez. Afinal, regressava
sozinha. Sentir mundo… Sim, apenas isso. Nesses momentos, tudo ficava tão
longe… Só o vento no rosto lhe era íntimo.
Aproximava-se do terreno dos pais.
Oitenta metros de comprimento por quarenta de largura: tudo aproveitado num
esmero nascido do saber da fome. Fome: não há palavra com mais sabor a morte.
Como habitualmente, reduziu a marcha. Sim, lá estava ele, de costas para a
estrada, pernas afastadas, tronco arqueado, e de enxada nas mãos. Sem saber
muito bem porquê, ela sentiu a aspereza do cabo da enxada. Não que a tenha
usado muito, mas talvez o suficiente para se lhe gravar nas palmas das mãos o
significado da palavra suor. Ela parou. Encostou-se à margem da estrada. Ele
continuava a cavar. Vestia um daqueles pares de calças que ostentava a
geografia do tempo, uma outrora branca camisa desabotoada, e na cabeça
pontificava uma boina que cheirava a sal e a terra. Raros são os objectos que
comportam estes odores: sal e terra: o sonho e a realidade. A enxada
continuava, através do seu movimento vertical, a trazer o céu à terra. De cada
vez que subia, o cabo reflectia luz, para, logo de seguida, mergulhar na seiva
da vida. Ela assim ficou, por uns instantes, sentada na bicicleta, a assistir
àquele labor secular, agora protagonizado por seu pai. Quantas tardes daquelas
teriam sido necessárias para a bicicleta? Ela, naquele momento, estava longe
destas questões. Apenas se enternecia pela familiaridade da figura paterna.
Puxou o descanso com o pé, saiu e encaminhou-se para ele… Mas, tão súbita
quanto indesejada, uma evidência imobilizou-a. Evidência e lentidão são
companheiras de viagem. Por conseguinte, esta habitava-a há muito. Ela cerrou
os punhos, e afastou-se no silêncio do possível. Não conseguia erguer o olhar,
se bem que nada visse. Retoma a marcha. Uma vez mais, neste dia, um pedalar
furioso eivado de culpa. De quê? Sentiu a pior das dores: aquela que dói onde
não se sente. De novo, a questão se impõe: porquê? No insondável de si, uma
ténue luz aclarava uma dolorosa evidência: estivera a contemplar o seu pai, com
a compaixão no olhar avistada, nessa manhã, no rosto de Victor…
Ainda olhou para trás, antes de
mergulhar na curva que precedia a entrada na aldeia. Lá continuava o pai. Um
difuso ponto no horizonte rural de uma tarde cansada. Ela olhou-o, e não se
apercebeu da leveza, porque a culpa ficara pelo caminho. A culpa raramente
termina uma viagem. Afinal, todo o viajante procura carregar apenas o
indispensável. Porque olhara o pai daquela forma? Ela não sabe. Lá continuava a
enxada, unificadora dos céus e da terra, a sua missão, num silêncio humilde.
Ela já não viu, mas, por um instante, o pai teve de parar. Encostou a enxada a
uma das pernas, e limpou o rosto com o lenço retirado do bolso direito. Já
perdera, nessa tarde, a conta às vezes que puxara do lenço. De seguida, colocou
as mãos nas ancas e arqueou-se para trás, na vã procura de aliviar uma dor há
muito presente. Respirou fundo. Não olhou à sua volta. Nem sentiu uma brisa
refrescante que anunciava ocaso. Foi surdo para um melodioso chilrear
proveniente de uma sombra próxima. De novo, a enxada. Sim, também estava além da
dor. Se atentássemos bem no seu rosto, apenas assim, víamos a ténue linha que
anuncia sofrimento.
II
A vida é isso: olhar, como se
primeira vez, o que outros já carregam na memória
Nesse final de tarde, ela
apercebeu-se, ainda na bicicleta, de que devolvia às coisas o indesejado olhar
sentido na manhã. Entrou na aldeia, como muitas vezes sucedia, atrás de um
carro de bois (estranha expressão: carro de bois! Uma tosca carroça de madeira
arrastada por um bovino de olhar suplicante e dorso enlameado). Não o
ultrapassou. Aproveitou aquele compasso ruminante, para organizar pensamentos e
aclarar emoções. Só perto da capela, é que se apercebeu das duas crianças
sentadas nas traseiras da carroça. Um rapaz com os seus doze anos, e uma
rapariga talvez um ano mais nova. Olhavam-na com a curiosidade do espanto
adicionada à mesquinhez aldeã. Uma forma singular de olhar a realidade. Como
alguém que se depara com uma vasta paisagem, mas obstina-se com a sua sombra. Há
muito que ela conhecia aquela expressão. Olhou as crianças com o rosto de
Victor. Elas permaneceram impassíveis. Como se não se apercebessem. Talvez
fosse por aí... Lá continuavam, sentadas, sujas, numa resignação útil pelo que
a vida lhes proporcionava. Ela não aguentou mais, e ultrapassou. Até chegar a
casa, ziguezagueou por entre os excrementos depositados no alcatrão. Ela
começava a partir sem se aperceber. Isto sucede quando olhamos o quotidiano
como se fôssemos um outro, distante, porventura mais velho, de uma outra vida…
Morava numa típica casa de aldeia.
Fachada principal para a rua, quintal nas traseiras. Nada que destoasse do
conjunto. A mãe estava à porta, segurava um coelho pelas patas traseiras, com a
outra mão ia-lhe batendo na nuca com um madeiro. O seu gesto revestia-se de uma
naturalidade doméstica. Falava com uma vizinha, que se apeara da bicicleta. Ali
estava ela, num ameno diálogo, e assim que passava para o papel de receptor,
aplicava nova pancada na nuca do desesperado coelho, que se contorcia num
sofrimento inaudível. Ela parou, a uns metros suficientes, para observar a
cena, a coberto da discrição. Mãe e vizinha num diálogo de trivialidades,
talvez ocorrências do dia-a-dia, e nem um olhar para a vida que se extinguia na
mão de uma delas. Por fim, após mais uma pancada, uma imobilidade fria,
irreversível, pétrea, reconhecida, desde sempre, por todos os seres na terra: e
a luz extinguira-se, de vez, dos olhos do animal… Agora, só espelhavam o horror
do vazio. Não podemos, aqui chegados, falar de horror. Nada disso. Ela
presenciou esta cena, e outras similares (o galo de pescoço degolado num andar
de exterior de taberna, na cegueira de uma esperança do momento; o grito que se
lhe gravou na pele, de tão humano, vindo da pocilga em véspera de certos
feriados) incontáveis vezes. Sim, sempre sentiu, numa profundidade de si, um
certo desconforto. Mas o horror implica sempre uma virgindade no olhar: um
espanto feito acto. E ela não se espantava, apenas um incómodo persistente nas
funduras do seu eu.
Ela, por fim, aproximou-se, na
hesitação da incerteza. A mãe cumprimentou-a numa desconfiança sublimada,
talvez se tivesse sentido observada. A vizinha, por sua vez, dirigiu-lhe o
cumprimento guloso – de quem procura saber sempre algo mais. Ela retribuiu-lhes
sob o escudo da educação. Sempre a melhor forma de contornar os enviesamentos
sociais. Entrou para o quintal. Sentiu, uma vez mais, aquele olhar peculiar da
mãe recair sobre a bicicleta. Várias vezes o sentira sobre si. Era um olhar
transparente, apesar do peso. Embora a transparência seja sempre uma aparição.
Ela suportava o peso. Não protestava, não ripostava… Nada. Apenas silêncio.
Talvez conhecesse muito bem a mãe, e se apercebesse de que o silêncio a ferisse
ainda mais. Talvez… E naquele olhar lia-se a destruição irreversível do
objecto. Como é evidente, não é só o objecto em si mesmo, mas toda a sua
extensão simbólica. Mas isto era a sua leitura. Talvez a mãe estivesse longe
destas intenções. Talvez ostentasse um olhar de final de dia. Talvez olhasse a
bicicleta com uma crescente preocupação materna. Sim, talvez fosse isso. Mas
cada uma vivia a sua realidade: a dos seus pensamentos. E enquanto houver
homem, cada um viverá, a sós, no seu mundo. Nele amanhece, vive, e sonha. O
resto são tentativas efémeras de evasão.
Após arrumar a bicicleta na adega,
cumpriu com as suas obrigações domésticas. Foi ao celeiro buscar uma saca, já
encetada, de milho, e dirigiu-se para o galinheiro. Sempre a surpreendeu, como
aquelas aves, de cabeça diminuta, conheciam a hora da refeição. Atirou-lhes o
milho, e elas, numa sôfrega precipitação, acorreram para a entrada.
Paradoxalmente, os ímpetos iniciais deram lugar a uma lentidão analítica no
observar do solo, de forma a perscrutar onde os grãos de milho aterravam. Ela
ficou a olhá-las, da cancela. No fundo, achava-lhes graça. Cada pescoço com o
seu compasso particular de movimentos. Como se sintetizasse aí a sua
individualidade. A cansada afirmação do galo. As lutas, os cacarejos, a efemeridade
dos voos (aves amputadas da sua essência), o constante esvoaçar de penas… E
ela, a cada final de tarde, contemplava, com o sorriso da novidade, aquele
microcosmos. E bebia, aí, uma crescente compreensão do seu mundo. Inspirava,
agora, entardecer. De seguida, pegou num balde, carregado de restos de frutas,
e serviu os porcos. Também estes conheciam a hora da refeição. Como se refeição
fosse sinónimo de sobrevivência: algo de transversal no código genético de
todos os seres vivos. Lá se arrastaram eles, ritmados por aqueles grunhidos
peculiares. Ela já não lhes passava a mão pelo dorso. Aqui se denota a
crescente distância. Ao entrar na cozinha, a lareira, como habitualmente, já
crepitava. Ela gostava daquele cheiro. Encostou-se à parede, para sentir o calor,
de olhos fechados. Um dia, bem mais tarde, também encostada a uma parede, fria
de lágrimas, lembrar-se-ia desses momentos de luz e calor: e a palavra lar
soar-lhe-ia cada vez mais distante.
De seguida, recolheu-se ao seu quarto
para cumprir as obrigações escolares. Antes disso, contemplou-se ao espelho, na
intimidade singular da sua essência feminina. Assim ficou, durante a
necessidade de reencontrar um vestígio de si na imagem desdobrada, até a
memória quebrar o encanto através do olhar comiserativo de Vítor.
Correu para a janela, assim que ouviu
a campainha da bicicleta do pai. Lá vinha ele, mão direita na cordialidade de
uma saudação, para um vizinho que passava, com um carrinho de mão cheio de
feno. Apeou-se à porta de casa, o vizinho também aproveitou para descansar. Daí
à política sussurrada, bastaram duas frases. Ela desinteressou-se da cena. Não
lhe interessava o tema. Mas pareceu-lhe que estavam tão distantes… Porém,
bastava-lhe descer a escada, abrir a porta, para os ladear. Permaneceu atrás do
vidro, enterneceu-se, de certa forma, ao contemplar os esforços diários, do pente
paterno, em mascarar a aridez desmentida pelas alturas. À medida que o diálogo
se desenrolava, apesar dos sussurros, percebia-se o ruborescer paterno e a
crescente velocidade dos gestos. Já lhe conhecia as frases, como se tivessem
uma ordem encadeada para entrar, até adivinhava, pela expressão do receptor,
qual a última que acabara de ser proferida. Olhou à sua volta. Não se espantou
pela estranheza que lhe alimenta o olhar. Afinal, não era a primeira vez. Sim,
o espanto é sempre um estado virginal. E este seu olhar, um velho companheiro
de viagem, está eivado de uma distância, como se soubesse que não pertence ali.
Detém-se, agora, a olhar especificamente certos objectos. Apesar da repulsa,
insiste: aquela Última Ceia, em
relevo, ligeiramente inclinada, que a mãe havia comprado numa excursão a um
desses lugares da fé popular, ainda se lembra, no regresso, do orgulho
desmedido com que ela segurava o objecto, embrulhado num tosco papel
pardacento, o espelho rachado, embutido numa moldura demasiado trabalhada para
o singelo bom gosto, sempre longínquo, como se o vislumbrasse de uma outra
margem, ou vida, e ali jazem, naquele final de tarde, na casa da aldeia, de
repente, um estrépito fá-la regressar, apenas um insecto que embateu no vidro,
era corrente, mas ela observa tudo já de uma margem…
Entrou na escola ainda com as sombras
por despertar. Queria chegar cedo. É o que sucede quando a leveza do sono se
emaranha no aqui. Porém, nada ficou por cumprir: leite fervido, animais
alimentados, sim, por vezes, tornava-se uma divindade sob certos olhares,
lareira a crepitar, e o portão fechado no vagar do silêncio. Hoje não havia
vestígios, no pedalar, da fúria pretérita. Pelo contrário, ostentava um pedalar
cadenciado, como se cumprisse um tempo muito seu, porém, sabemos nós, é uma
cadência com génese na dúvida. A escola já se encontrava aberta. Não se admirou
por não ser a primeira a chegar. Há sempre quem se nos antecipe. A vida é isso:
olhar, como se primeira vez, o que outros já carregam na memória. Apesar da
hora, já se cumpria a essência de um pátio escolar. Antes de puxar o descanso,
mãos ainda no guiador, e uma frase do jantar vespertino, proferida pela mãe, claro,
a ressurgir à tona das suas preocupações, Parece-me
que hoje alguém te relembrou para não olhares longe, como se, através
daquele diminuto conjunto de palavras, a mãe sintetizasse a deriva do seu
sentir. Por vezes, parecia clarividente. Isso assustava-a. Ainda por cima, a
expressão que acompanhou o proferir da frase, algures entre um certo gozo e o
tom de desafio sem réplica, esmagou-a de encontro à evidência de uma fria
derrota – verbalizada através da culposa e envergonhada compaixão de um olhar. Parece-me que hoje alguém te relembrou para
não olhares longe, de novo em si, e mais uma vez, e mais outra, ela a abrir
os olhos, sim, não suportava mais ecos, como se pulmões de regresso à tona de
água, a mãe asfixiava-a, talvez por sabê-la mais inteligente, aquele seu olhar,
enquanto descascava uma maçã, por exemplo, simultaneamente distante e tão à
flor das coisas, preenchia uma divisão, era-lhe, de todo, insustentável
permanecer por muito tempo no mesmo espaço que a mãe. Andava, no seu próprio
lar, numa fuga constante. Que paradoxo: no espaço de um lar, haver caçadores e
presas! Onde todos se deviam sentar a uma mesa, haver perseguições e fugas… Apesar
de tudo isto, respeitava-a. É natural, a mãe, quase sempre, acertava nos seus
ditames. Antes de se pronunciar sobre algo, baixava o olhar, e a sua voz surgia
sem o brilho dos olhos, como se, em certos momentos, o contacto visual a
perturbasse ou desconcentrasse. Apenas segundos depois, reerguia o rosto, para
compreender as consequências da sua frase. Era comum, na aldeia, pedirem-lhe
conselhos. Ela dava-os gratuitamente e de bom-grado. Por vezes, a filha ocupada
com os livros, à mesa, ela a auscultar os problemas de uma vizinha, por breves
e repetidos segundos, um olhar de desdém para os livros, tal não passava
despercebido à filha, que, nessas ocasiões, lhe sustentava o olhar, mas de
lápis na boca. Sim, carecia de um singelo escudo. Note-se que a mãe realizou apenas
a quarta-classe. De certa forma, e para a sua geração, já era uma privilegiada Mas
a sua rapidez de cálculo matemático, por exemplo, estava nos antípodas da
filha. E como ela fazia gáudio nisso! Aqui chegados, convém aprofundar a
história desta família. A filha, de nome Eduarda, é a segunda filha de Alberto
e Regina. Sim, tivera uma irmã, três anos mais velha. Há seis anos, no Verão, o
rio, num abraço demasiado, subtraiu-a, para sempre, do horizonte terreno dos
seus. Chamava-se Zilda, e, de facto, tirou, demasiado cedo, o bilhete para a
derradeira viagem. Foi numa tarde quente de Domingo. Três famílias da aldeia
desceram o vale para um piquenique nas margens frescas do rio. Havia mais
crianças. Tudo corria como esperado, os homens entregues a jogos da malha, as
mulheres, sentadas em cima das toalhas axadrezadas para a refeição, debatiam ocorrências
da vida aldeã, as crianças a banhos próximas da margem, perto do regresso, três
resolvem mais um mergulho, risos, jogos de água, alegria, gritos de felicidade,
volta e meia, irrompiam pelas toalhas axadrezadas para mais uma sandes, um copo
de água, uma fatia de bolo, Zilda entre os três, mas não regressou à
superfície, os dois que regressaram apenas na margem se apercebem da ausência,
dois homens atiram-se à água, o pai permanece, sob a sombra de um ulmeiro, num
estatismo incrédulo, a mãe rápida da toalha axadrezada até à água pelos
joelhos, em gritos inarticulados chamava pela filha, Eduarda, junto das outras
crianças, tremia, não pelo ocaso iminente, mas por um terror que se lhe colava
à pele, um dos homens regressa, numa correria ofegante e aterrorizada, à aldeia
em busca de socorro. Nessa noite, demasiado próxima, foram poucos os que
dormiram na aldeia. Regina fechou-se na capela. Na manhã seguinte, permanecia
na mesma posição: ajoelhada e a correr, entre os dedos, as pedras suplicantes;
Alberto sentado algures entre a desesperança e o desespero, à mesa da cozinha,
acompanhado por vizinhos e amigos, que debitavam esterilidades vãs para
preencher a certeza de um vazio; Eduarda no quarto, com os filhos dos amigos e
vizinhos, questionavam a certeza desesperançada e desesperada dos adultos. A
luz da manhã não aquietou os temores sombrios da longa jornada nocturna. Pelo
contrário, só os evidenciou. Nesse dia, ao final da tarde, encontraram Zilda
oitocentos metros a jusante, presa a um escolho. Aventaram-se, como sempre
sucede, várias possibilidades: a corrente sob a superfície, uma pancada durante
o mergulho, sim, havia um hematoma na testa, os pais ensurdeceram para as
teorias e abraçaram o silêncio final do vazio. Alberto sentiu o regresso de
Regina. Levantou o olhar e viu-a, apesar da noite de retiro e de orações, do
constante entra e sai lá de casa, das bocas que se abrem à sua volta, embora
eles as desejassem fechadas, da certeza crescente de uma subtracção lá em casa,
ele achou-a bela, com um caminhar altivo, apesar de um ligeiro coxear pela dor
sentida, mas, sim, sempre altivo. Não se olharam. Talvez por pudor, ou por
escassez de verbo… Contudo, a certa altura da tarde, antes da certeza
definitiva da partida, cruzaram-se no infindável vai e vem lá de casa, de novo,
olhares baixos, mas as mãos procuraram-se numa sofreguidão de fome, assim que
se encontraram, houve dedos entrelaçados e tudo se comunicou, numa linguagem
para além de emissores, receptores, e do verbo… Assim que Alberto retornou ao
seu lugar, à mesa da cozinha, sentiu uma bengala, de madeira, caminhante, a
aproximar-se, numa lentidão familiar, até que uma mão, com uma força doce e
segura, sobre o seu ombro, e uma frase, com a emoção quase a fugir-lhe,
suspirada ao ouvido: Meu rapaz, meu
rapaz, por favor, levanta-te… Assim que a bengala, de madeira, se dirigiu
para outra divisão da casa, Alberto ergueu-se, ainda a tempo de ver o vulto
paterno abraçar a nora. Percebeu-lhe as lágrimas pelas falanges que seguravam a
bengala.
III
E alguns com a soberba do saber,
quando nem a nós nos sabemos…
Encontrou a neta no quarto, demasiado
concentrada num jogo com os amigos e vizinhos, para dar pela entrada da
bengala, de madeira, caminhante. Tal como ao filho, pousou, em primeiro lugar,
a mão no ombrito da neta. De imediato, ele viu aquele olhar subir à altura do
seu, leu-lhe um súbito pânico por ser apanhada no momento de diversão, e vislumbrou-lhe
um azedume passageiro, na sua direcção, por este desvelar. Antes de se sentar,
tirou a boina, e meditou naquele azedume espontâneo em tão precoce idade. Olhou
o tecto e suspirou. Tinha uma frase à espera de voz, preferiu levantar-se e
sair. Eduarda permaneceu sentada, impassível, assistiu à partida da bengala, de
madeira, caminhante, como é verdade: há silêncios, na vida, que gritam
demasiado…
Eram onze horas, quando o pequeno caixão
transpôs o portão de ferro, preto, ainda novo, com um qualquer indizível de
dor, embora já oxidado nalguns pontos, talvez nos interstícios mais interiores,
silencioso, como se compreendesse a sua função de vigilante imemorial do adeus.
Praticamente, toda a aldeia o seguia num misto de espanto, incredulidade, e tristeza
demasiada… Regina e Alberto amparavam-se mutuamente. Talvez para os mais
distraídos. Se atentassem com mais pormenor, percebiam os passos decididos de
Regina, o rosto focado apenas no destino, enquanto Alberto olhava em volta,
como se procurasse um ponto de fuga, e a sua passada ainda mais lenta que o
pensar. Eduarda seguia ao lado da mãe, de rosto caído, algures, em si, uma voz
sussurrou-lhe ser esta a postura mais indicada, porém, tinha uma estranha
sensação de estar aquém da realidade circundante, um pouco como o viajante que
não domina o dialecto em vigor. Sim, um pouco isso. Somos tão estranhos! E
alguns com a soberba do saber, quando nem a nós nos sabemos… O cortejo
imobilizou-se perante uma escavação demasiado pequena para pertencer àquela realidade
de uma espantada dor sombria. O padre procedeu à sua récita, que é, no fundo, o
preâmbulo à materialização de uma certeza. Ou de uma esperança? De um regresso…
Ou do desespero? Do fim… Enquanto as cansadas palavras do sacerdote se evolavam
no calor jovem daquela manhã de Verão, cada um relembrava o rosto de Zilda,
sim, é sempre o rosto que nos surge no início e no fim de tudo, Alberto a vê-la
em todas as idades, desde que lhe imaginava uma face, quando pousava a mão no
ventre dilatado de Regina, a socorria do choro e a levantava do berço,
contrariando a autoritária voz materna, ainda se lembra do susto quando ela,
com seis anos, a erguer, a custo, a enxada, com um sorriso nascido da frescura
da espontaneidade, e no dia em que terminou a quarta-classe, a anunciar aos
pais que iria ser médica para cuidar deles quando fossem velhinhos, de repente,
já as pernas de Alberto cediam, e uma mão estendida para o segurar, de novo,
uma frase sussurrada Então, então, meu
rapaz, já falta pouco, já falta pouco… Aguenta-te! Deixa isso, para quando
fechares a porta da tua casa. Alberto não percebeu que, enquanto as
palavras ganhavam voz, uma bengala, de madeira, se afundava na terra. E que
recordações guarda uma bengala? Talvez o carinho, sempre plural, que umas mãozitas
lhe consagravam, sempre que o avô pedia por ela. Nunca um azedume, uma queixa,
uma contrariedade, os olhos procuravam-na, e as mãozitas traziam-na no respeito
de uma preciosidade. Afinal, como ela gostava de caminhar ao sabor das
palavras, com aroma a saber, sussurradas pelo avô. Com o tempo, aprende-se o
desperdício do barulho, afinal, a última estação é a do silêncio.
Assim que os olhares pousaram na
terra, e o adeus se materializava na invisibilidade crescente do pequeno caixão
– uma quase obscenidade! –, Regina preferiu olhar em volta, analisou aqueles
rostos compadecidos, de vizinhos, amigos, familiares, conhecidos, menos
conhecidos, e sabia-lhes a indiferença vindoura, talvez demasiado próxima, em
alguns daqueles lares, esta noite ainda, serão tecidos apenas alguns
comentários (Coitados daqueles pais… Tão
novinha, coitadinha… Meu Deus, que injustiça! Como tal foi possível! Toda uma
vida pela frente… E aquela família, que horror… Como irão ultrapassar isto? O
Alberto quase não resistia…), o mais, será vida a chamá-los, no mais ínfimo
pormenor, até que esta manhã se tornará uma memória demasiado longínqua, quase
como uma impossibilidade, no entanto, ela, doravante, passará a viver numa outra
realidade, sim, de facto, Regina soube-o logo naquela tarde, afinal, partiram
quatro de casa e somente regressaram três. A sua dor é inexpressiva. Talvez
pela profundidade. Sim, está além gestos e palavras. Quantas vezes o céu
contrasta com o que nos habita? Hoje, pensava Regina, o céu azul e chove no
tecto de mim. À sua volta, sentem o amanhã. Regina apenas o presente. Afinal, a
dor ensina-nos o momento. E ela ficou, para sempre, enredada numa margem a
olhar a corrente. É o lugar de muitos, nesta vida. Aqueles que conhecem uma dor
inexpressiva. Talvez pela profundidade. Sim, uma dor além gestos e palavras. E
assim que lhes é apresentada, no momento seguinte, já se sabem um outro…
Eduarda, por fim, a ceder à
curiosidade, ergueu o olhar, percorreu os rostos em volta, de certa forma,
constrangida pela insegurança que dali retirava, o abandono, o desespero, e, em
alguma parte de si, uma questão a brotar: E
o meu amanhã? O seu olhar, agora, num indistinto ponto, o que lhe permitia reflectir
se Alguma coisa iria mudar? De vez em
quando, surgia-lhe o rosto da irmã, sorridente, mas a sua atenção logo o
obnubilava, o rosto sorridente a insistir, a atenção de novo lhe fugia, e uma
certeza pétrea gravou-se-lhe no sentir, quando chegou a sua vez de depositar um
vestígio de beleza numa tampa de madeira tosca, Ainda é tão cedo para me despedir…
IV
Há dias que ensinam a vida
Os dias seguintes aconteceram. Sim,
só se pode retirar essa evidência daquilo que não ilumina a memória. O pai
entre a fábrica e a horta, a mãe absorta com os deveres domésticos, recorda-se
da rapidez materna na execução das tarefas, como se fugisse de espaços vazios
no viver, talvez, no fundo, Regina fugisse do pensar. De vez em quando, o padre
de visita. Sentava-se à mesa da cozinha, de madeira, rectangular, enegrecida
pela proximidade do lume, e falava pausadamente com Regina, que o escutava com
uma expressão de saudade confortada. Alberto mantinha distância. Há alguns
anos, começara a beber nos ideais da horizontalidade social. Desde aí,
destilava aversão às alturas. Se calhava cruzar-se com o sacerdote lá por casa,
baixava, pouco, o rosto, naquilo que considerava um cumprimento, e dirigia-se
para o quintal, a saber dos animais. Sempre a horizontalidade. Regina não o
censurava. Achava que cada náufrago tem o direito de escolher a sua boia. E,
apesar de tudo, sempre cumpria com o dever da educação. Para Alberto, a
situação era similar, desde que ela sobrevivesse. A bengala, de madeira, com o
tempo, cada vez menos caminhante. Até que, numa tarde de Outono, caiu, para não
mais se levantar, a caminho da praça da aldeia. Houve quem falasse de coração,
houve quem atribuísse à idade. Sim, talvez fosse a sua hora. Afinal, todos
temos uma, mas a maioria obstina-se em esquecer este singelo facto.
De novo, atravessaram o portão de
ferro, preto, já menos novo, com um qualquer indizível de dor, embora já
oxidado nalguns pontos, talvez nos interstícios mais interiores, silencioso,
como se compreendesse a sua função de vigilante imemorial do adeus. Foi uma
cerimónia mais recatada. A idade da bengala, de madeira, outrora caminhante, já
apelava à discrição. A maioria dos que viajavam consigo, há muito que iniciara
a descida da carruagem, ora em apeadeiros, ora em estações, alguns com o
comboio ainda em movimento, mas, o que é certo, a carruagem foi-se despindo da
familiaridade espelhada em faces sorridentes. Um dos primeiros abandonos, para
sempre marcante, foi o da sua mulher. Houve quem atribuísse a bengala, de
madeira, ao facto de ter desaprendido de caminhar, sem ela a seu lado, por esta
terra agora feita noite. Alberto já tinha pedido Regina em casamento. Chegaram
a adiar o enlace. A tuberculose, a ida para o sanatório, a restrição nas
visitas devido aos bacilos, a passada a desacelerar, as forças num abandono de
naufrágio, até que numa manhã, um toque demasiado insistente à porta… Houve
quem falasse que um dia se transformou em décadas. É verdade, há dias que
ensinam a vida. Alberto aportou na segurança de Regina. Nunca procurou outros
confortos. Além da palavra respeito, o conceito de gratidão era-lhe sumamente
próximo. Regina, nessa altura, chegou-lhes a organizar o lar: da cozinha ao
tanque, encarregou-se de tudo. Ao ver o filho com um pé fora de casa, sem um
porquê para o movimento, apresentou-se a uma bengala, de madeira, que o
acompanhou até ao último degrau da carruagem. Diz-se que, antes de pisar a
plataforma, a ouviram cair, talvez alguém o esperasse…
V
Estamos algures entre nós e o mundo
À medida que as sombras se
iluminavam, aproximava-se a hora da primeira aula. Eduarda olhava, com
insistência, o portão de entrada. O olhar só insiste num ponto quando se irmana
do pensar. Por fim, viu-o entrar. Vinha com um amigo mais velho, numa conversa
descontraída, ela incomodada com aquela visão, sem haver um porquê, hoje sentia-o
ainda mais distante de si, o diálogo prosseguiu até à entrada do edifício
escolar, ela permaneceu junto da bicicleta, por fim, teve de entrar. No
intervalo seguinte, ela procurou, de todas as formas, o acaso de se cruzarem,
que acabou, inevitavelmente, por suceder. Ela sozinha, ele com o amigo mais
velho, por um incontável de tempo, os seus olhares encontraram-se, e tudo se
disse... Afinal, um adeus pronuncia-se com o olhar. Onde ao certo se cruzaram?
Em que intervalo? O que trazia ele vestido? Nessa noite, ela já não saberia o
que responder. Porque estamos algures entre nós e o mundo. Numa zona indistinta
em que sempre nos procuramos para nunca nos encontrarmos. E o outro? Apenas um
longínquo e desconhecido continente. O mais, apenas pretensões estéreis e
contos infantis. Victor e o amigo mais velho vinham a entrar pela porta
principal do edifício escolar, ela viu-os por uma janela do piso superior,
apressou-se a descer a escada, de forma a potenciar o encontro, já se habituava
à difusa luz interior, quando se apercebeu dela – o amigo longe destes olhares
–, vinha em direcção contrária, ambos sabem o que viram no esforço de
vislumbrar uma qualquer outra coisa, ela leu-lhe um sentir refreado, como se
ele soubesse os passos do seu destino e, de forma alguma se pudesse desviar,
sim, naqueles fugazes segundos, pediu-lhe perdão, gostava de se ter demorado
mais num muro de pedra à sombra de uns choupos, de lhe ter segurado as mãos ao
mesmo tempo que se perdia no seu rosto, mas algo o traiu, uma compaixão jocosa
ao contemplar os seus toscos sapatos, uma expressão contínua entre a face e as
mãos que se traduziu num sentir inequívoco, como se, de repente, ele já um
continente longínquo e inacessível, no fundo, talvez fosse a sua obstinação, de
não olhar um pobre e anacrónico par de sapatos, que mais a feriu. Se ele fosse
um outro, podia não reparar no seu calçado, apenas na sua face, e, ao acariciar-lhe
as mãos, na frescura de uma sombra de Maio, gentilmente cedida por um choupo
empoeirado, ambos sentados num muro de pedra, lhe tentasse alcançar os lábios para
aí se revelar por inteiro. Por sua vez, ele na esperança de uma expressão
distinta, mas não, ela, de novo, com um semblante deveras pesado, que fulminava
qualquer resquício de uma hipotética frase de cumprimento, sabe o que a magoou,
porém, como evitar que a vista não lhe descaísse para aquela obscena
demonstração de pobreza? Apenas lhe queria transmitir que tudo não passou de um
espanto puro, nada mais. Não, não houve qualquer desdém. Muito pelo contrário:
uma revolta por alguém caminhar assim sobre o mundo. E, naquele corredor,
escudado pela companhia do amigo, compreende que o seu silêncio se prolongou em
demasia, entre o espanto puro e a revolta, ela já se afastara para o sol, ele
no desamparo da humilhação ainda na sombra, afinal fora ela a deixá-lo, entre
pares não se comentava outro episódio, e tudo por uma escassez de verbo, se uma
palavra antes, talvez tudo numa outra direcção…
Quantos pensamentos não encontram o
corpo da palavra pronunciada? De novo, no alto daquela colina entardecida, mãos
no guiador, olhar no indistinto de uma dúvida jamais sarada, a sentir uma
distância segura das coisas. Afinal, olhava tudo das alturas. A compreender que
os outros são a ilusão de nós. De certa forma, um pouco vaga, despedia-se: de
Victor, daquele vale, da aldeia dos pais, da escola, daquela vida, no fundo,
despedia-se de si própria, do que fora até então. Dizia-se adeus. Até partir,
seria habitada por uma sombra, nada mais, apenas uma expressão daquilo que os
outros esperam de nós, talvez assim a paz na terra dos homens, quando habitamos
na prateleira da alteridade, ela, por outras palavras, a sua mais recôndita
vontade, de costas para o mundo, aguarda por um sono num canto da sua alma.
Nessa noite, a mãe demorou-se-lhe no
rosto. Por fim, Resolveste esperar na
ausência… Às vezes resulta, outras não. Depende do tamanho da paciência. Nada
mais se disse. Ela, como expressão daquilo que os outros esperam de nós, fingiu
ouvir com um sorriso benevolente. Mas num canto da sua alma, houve movimento,
sim, é verdade, alguém anuía, a cada palavra da mãe, o sentido das coisas antes
da chegada de um sono demasiado longo…
VI
Talvez a vida seja um desencontro em
movimento
Os carros já anunciavam a noite, os
passeios num movimento de regresso, sacos com compras, uns mais pesados, outros
de tão leves inclinam-se com a brisa do entardecer, alguns de mãos nos bolsos e
passos hesitantes, como se procurassem, pela calçada, uma parte de si perdida,
e nunca mais encontrada, mas que lhes retém irremediavelmente o passo, jovens
de mochila às costas, ou com os livros na mão, falam da esperança sem lhe
conhecerem a amargura do gosto, a esperança é a porta do futuro, mas, sem
sabermos porquê, tem sempre um sabor pretérito, lá iam, passeio fora, leveza de
movimentos, duas raparigas e um rapaz, mas também uma leveza de pensar, se ao
menos o pensar lhes pesasse um pouco mais, ele no meio delas, falava mais com a
do lado direito, que lhe sorria indulgentemente ao mesmo tempo que acelera o
passo, ele no esforço de a acompanhar enquanto procura achas para a trémula
chama de um ocaso dialogante, a jovem da esquerda num esforço suplementar para
não perder aquele pelotão, e o seu olhar perde-se, sempre que possível, no
perfil do rapaz que caminha a seu lado, talvez a vida seja isto, um desencontro
em movimento, um grupo de velhas, talvez umas quatro, a regressar da
eucaristia, embora naquela conversa arrastada não se vislumbre quaisquer sinais
de boa nova, bem-aventuranças, ou de arrependimentos,
muito pelo contrário, temas demasiado horizontais, que condenam ao malogro
qualquer efémera tentativa de ascese, desde o embarcadiço, marido da vizinha do
segundo andar, que apenas regressa por um mês, durante um ano inteiro, a casa,
nessas quatro semanas ninguém lhes põe a vista em cima, quase não saem, a
certas horas os gemidos ouvem-se do elevador, Uma pouca-vergonha, sublinha uma delas, logo outra a trazer à liça
o jovem do rés-do-chão, do lote dez, cada vez mais magro, E com umas companhias…, no outro dia, a polícia foi lá bater à
porta, Coitada da Dona Manuela! Parece
que ele ainda dormia, a desgraçada foi acordá-lo, ouvi dizer que o levaram para
interrogar. Acho que foi aquele roubo, de madrugada, ao padeiro. Ainda lhe
deram três facadas! Desde aí, nem pão temos. Ainda houve tempo para
descrever o rosto da Dona Manuela, quando o filho entrou na viatura dos
indesejados, atrás dos vidros, com os punhos cerrados de encontro às faces, no
esforço de conter um grito, por uma dor demasiada, pela humilhação, por ela,
por si, por saber que, na indiferença do amanhã, o sol se irá de novo levantar…
Antes de se separarem, um último tema sobre a mesa, a ruptura iminente do casal
jovem do primeiro andar, do lote doze, vozes em crescendo por ali, louça que
cai, portas que gritam, por vezes silêncio, movimentos, depois ela em choro,
ele a sair, o carro em fúria, horas depois, um casal grisalho a entrar no
prédio, talvez ela os tenha chamado, certamente os pais, conselhos ponderados, Quando as vozes se sobrepõem, é porque uma
está a mais, ela anuía, por vezes, óculos escuros, ele regressa em cantos a
horas de silêncios, logo as portas recomeçam em gritos, os vizinhos em cansaço,
a situação aproxima-se de um abismo, sempre esta vertigem na vida dos homens, Que pena, são tão novos, podiam-se entender,
logo outra riposta, Mais vale agora!
Mais vale agora! Assim, sempre podem refazer a vida, é possível, pode ser
que, dessa forma, ela aprenda a olhar o céu… Já é noite. Do dia findo, para
alguns, apenas o cansaço. Para outros, porventura escassos, memórias que
perduram sob a luz do ontem. A cidade recolhe-se. Ainda há regressos por
cumprir. Talvez vá haver sempre.
Neste momento, ela atrás do balcão, a
sorrir para a entrada, talvez nem sorrisse, apenas a máscara da circunstância,
a colega, de cócoras, a atender um idoso, Então,
que lhe parece? Não quer dar uma voltinha? Ele hesitante, talvez pelo
cansaço de se erguer, nisto, a mulher, a seu lado, intervém Anda lá homem, já não temos o tempo, de imediato, ele no esforço da
subida, a observar os sapatos ao espelho, a esboçar umas passadas, a deter-se
na lojista, ainda no mesmo lugar, quase irmanada com o chão, talvez a sua alma,
por cansaço, esteja ainda mais abaixo, ela a olhar para cima, e a não
compreender que ele nunca saíra do seu lado, enquanto isto, mais um cliente
loja adentro, ela, ainda com o balcão à sua frente, observa-o, um bom lojista conhece,
à primeira vista, o comprimento da carteira de cada cliente, pela forma
decidida como entrou, sabe ao que vai, mãos nos bolsos, logo esta forma de se
mobilizar indicia uma total teatralização, influência, quiçá, do cinema
francês, muito em voga nesta altura, de Trintignant a Delon, só lhe faltavam os
óculos escuros, de massa grossa, como convinha, ela dirige-se-lhe, Procura algum modelo específico? Ele
surpreso pela questão repentina, ou seria por aquele rosto? Ou pela hora e o
rosto? Porém, não, ela não era bonita. Ainda menos bela. Mas não se pode
afirmar que fosse um rosto desagradável. Muito pelo contrário. Ela percebeu-lhe
o agrado. O diálogo, entre sapatos, fluiu de forma despercebida, no fundo, a
única possível. Apesar da pose de cinema francês, ela leu-lhe a aldeia
longínqua, ainda mais que a sua, o estudo apenas necessário, sonhos maiores que
os passos, uma candura invulgar que o aproximava perigosamente do idiota, o
sorriso envolvente, um atrevimento contido, e, quando voltou a si, estava num
cinema de mão dada com ele. E não, por acaso, o filme não era francês. Já se
tinham passado duas semanas. Após o cinema, ele acompanhava-a a casa, com
respeito, se bem que, simultaneamente, sentisse quase uma obrigação de
demonstrar a sua masculinidade, na forma de uma mão atrevida que procurava
escalar uma saia, ela, em risos interiores e indignações externas, refutava-lhe
a mão, ele, de certa forma, feliz pela comprovada seriedade. A mão continuou a
sua escalada, lenta e obstinada, oficializaram namoro, marcaram, num Sábado, almoço
para o apresentar aos pais. Ela regozijou-se de chegar à aldeia de carro. Ele
chamava-se Rodrigo, era empregado, há alguns anos, numa pastelaria, para sua
sorte, tinha a total confiança do patrão, ambicionava, um dia, ter o seu
próprio estabelecimento, de estatura média, tinha um rosto infantil, que
parecia resistir à erosão do tempo, até ao dia em que compreende a efemeridade,
é estranho, mas há rostos assim, parece que perduram numa fotografia escolar,
provinha de uma humilde família do interior, quatro irmãos, igualdade de géneros,
os pais caseiros de gente abastada, ele é o mais novo, veio para a cidade em
busca da cansada melhoria de vida, de verbo fácil e particular gosto na adição,
sempre se viu no ramo comercial, hoje em bolos e pastéis, como amanhã em
toalhas e lençóis. O importante, para ele, era estar.
VII
Com este, vais viver bem na terra.
Mas nunca vislumbrarás os céus
Assim que o automóvel se abeirava da
curva que precede a aldeia, ela acaricia-lhe o lóbulo da orelha direita, e,
numa súplica feminina, que, note-se, nunca foi, em verdade, uma súplica, mas
sim um canto, ancestral, que leva os homens a descansar a sua vontade, Vai mais devagar, por favor, ele a
conotar com segurança, quando, em verdade, ela olhava para outro zénite, de
imediato, ele a refrear a marcha, enquanto o sorriso dela se lhe alagava no
rosto. O carro imobilizou-se mesmo à porta da casa. Não era um carro recente.
Ele tinha-o adquirido a um colega mais velho. Mas tinha bom aspecto. E, afinal
de contas, ela tinha partido dali, numa pardacenta manhã de Setembro, de
camioneta. Ainda não se tinha desligado o motor, já o pai assomava ao portão.
Sim, de forma espontânea, vivia tão o momento, que sem tempo para apresentações
a malícias e afins. A mãe, por outro lado, permanecia resguardada. Quantas
vezes acusara o marido: Sempre foste de
vistas curtas. Nunca vês para além da tua sombra. Ainda por cima, não és alto… Ela,
no interior do carro, apenas a olhar em frente. Nem por uma vez, um olhar
lateral. Sim, tinha-se previamente disciplinado para esse fim. O pai, claro,
aquém destes objectivos, apenas imensamente feliz por rever a filha, nem se
preocupou, por um segundo sequer, em analisar o convidado. Ela, claro, saiu em
lentidão do carro, para logo ser surpreendida pelo abraço paterno. Não
estranhou, como é natural, a ausência da mãe neste preâmbulo… Após as
apresentações, e as frases de demasiada circunstância, entraram, a partir dali,
ela passou a olhar em todas as direcções. Encontraram a mãe a descascar um fruto.
Ninguém se recorda de qual teria sido. O olhar dela, ao contrário do que
sucedera há pouco com o pai, apenas em Rodrigo. Desviou-se para a filha apenas
no cumprimento da educação. De resto, enquanto descascava (que fruta?), sempre
no convidado. Estabeleceu-se, de imediato, uma corrente de simpatia entre o pai
e Rodrigo. Para ambos, as sombras do mundo serviam para refrescar. Eduarda
ajudou a mãe a pôr a mesa. A dada altura, a mãe Parabéns, minha filha. Com este, vais viver bem na terra. Mas nunca
vislumbrarás os céus. Sim, nunca te faltará com o pão, mas jamais irás conhecer
o sabor das nuvens. Eduarda estacou, incrédula com as palavras escutadas.
Enquanto procurava ordenar palavras, na busca vã por uma resposta, já a mãe se
afastara. A refeição decorreu com cortesia, o pai anuía às palavras do
convidado e aos seus planos de futuro, de vez em quando Eduarda dava-lhe a mão,
como se um estímulo à retórica, a mãe em silêncio, só, por altura da sobremesa,
o rompeu (sim, já descascava uma peça de fruta): E, no seu futuro, encontra lugar para filhos? (Sentiu o calor
hostil do olhar da filha. Manteve-se impassível, à espera de uma resposta.
Simpatizava com o rapaz. Sim, achava-o apatetado. Sabia, de antemão, que ia ser
um desgraçado nas garras da filha. Tivera sorte. E olho, diga-se. Da sua parte,
tinham carta-branca. A questão, como é óbvio, não era para ele, mas sim para
Eduarda. Daí a hostilidade do olhar. A mãe sempre soube que a boa pergunta já
encerra, em si mesma, a resposta. Daí que a colocasse ao rapaz e não à filha…)
(Ele achou a pergunta banalíssima.
Estava encantado com o pai de Eduarda. Quanto à mãe, via-a como uma senhora
mais reservada. Não ia além desta suposição. Convém sublinhar, aqui chegados,
que Eduarda nada lhe adiantou acerca dos pais. Não era tema que a seduzisse. E
também não o queria influenciar. Ou assustar, seria mais honesto…) Sim, sim, com toda a certeza. Dois, pelo
menos. O casalinho seria o ideal!
Mas que bom! Esse sempre foi o sonho da minha filha. Ter um casalinho.
Sabe, a aspiração máxima de qualquer mulher é ser mãe. E Eduarda não foge à
regra. Quando tenciona apresentá-la aos seus pais? (Note-se que esta peça de fruta ainda
não estava toda descascada. O pai,
neste momento, como quase sempre, com a lonjura. Talvez para sempre numa
margem, com um sorriso incrédulo… Eduarda, como excelente bailarina, resolve
trocar a hostilidade por um sorriso. Ou melhor: um semi-sorriso: véu do sentir.
Por fim, Rodrigo considerou este diálogo mais que expectável. Afinal, a mãe até
era uma senhora bastante comunicativa. E preocupada com a filha.)
Logo que possível. Se quiseres (nisto, o que já indicia um respeito temeroso, algo que não
passou despercebido à mãe, vira-se, com lentidão, para Eduarda), podemos lá ir no próximo fim-de-semana… (Crescia
a compaixão da mãe pelo rapaz. Ainda nem casados estavam, e ele já em passadas
curtas. Coitado, pensava ela! Vai ser engolido. Se, ao menos, lhe reparasse no
olhar, podia ler-lhe o desdém por cada uma das sugestões aqui proferidas. Mas
não, perde-se no conjunto, daí a sua cegueira.)
Foi Eduarda, enquanto se levantava, a
arrefecer o diálogo: É melhor irmos
andando, querido. Não te esqueças de que fiquei, hoje, de acender as luzes da
montra. Simultaneamente, todos se levantaram. A mãe despediu-se deles ali
mesmo. Não ia participar no número do carro. Achava ignóbil. Mais uma
manifestação da pequenez da filha. Apenas isso. Nada mais. Nunca aceitou que a
filha se afirmasse do mundo para si. Era a total inversão dos seus mais
elementares valores: ela, que sempre se acostumou a pouco, cedo aprendeu a
fazer valência de si mesma, daí que a sua afirmação sempre partisse de si para
o mundo. Até hoje assim foi. Até ao fim assim espera ser.
O pai, claro, acompanhou-os. E não se
coibiu de dar uma volta em redor da viatura. Mesmo depois de se terem diluído
do seu olhar, permaneceu com a mão erguida na saudade de um gesto, sim, sempre
de uma margem a olhar o longe, ela, nervosamente, à medida que o carro se
afastava da aldeia, a olhar o anel de noivado, para não se confrontar com o
vazio deixado após se digladiar com a mãe, com a crescente distância da aldeia,
ela recompunha-se, ele sempre a debitar frases a seu lado, planos e mais
planos, ela anuía, refugiada no seu semi-sorriso, de facto, o tempo dele era o
futuro, mas o dela não era nenhum, do passado fugia, o presente apenas uma
ilusão, o futuro uma promessa sempre levada pela corrente… E a imagem de uma
mão erguida, na saudade de um gesto, a perseguir-lhe o pensar, enquanto algo
lhe aquece a face, por ter silenciado, demasiado tempo, frases de ontem…
Assim que começou a sentir cidade,
ela recompôs-se. O intensificar de trânsito, estradas mais largas, horizontes
de edifícios, gente pelos passeios, montras, luzes, dissonâncias, sim, era no
meio do torvelinho que ela se encontrava. A cidade dava-lhe o espelho da vida.
Era este o seu lugar. Como isso é bom! Encontrar o nosso lugar no existir!
Grande parte do trajecto de uma vida cumprido. Ou seria este o seu refúgio?
Parte do itinerário de uma permanente fuga? De quê? Talvez de si… Afinal,
ninguém foge do passado. Mas muitos fogem do que transportam às costas. Sim, a
maioria corre para longe disso. Esta mudança de semblante passou despercebida
aos olhos, sempre na distância, de Rodrigo, quando, afinal, tudo se joga no
aqui. Encostou o carro frente à loja. Ela saiu enquanto abria a carteira para
tirar a chave. Ele ficou, dentro do carro, a apreciá-la de costas. A sua mão
ainda na encosta. Neste momento, numa ambivalência de sentimentos: por valores
de fontes distintas: o orgulho pela seriedade da eleita: a frustração pelo
inclemente refrear da sua natureza. Daí a ânsia por uma cerimónia de viajantes
celestes, promessas repetidas, contratos oficializados, chuva de grãos de vida,
momentos roubados ao tempo para sempre emoldurados sob vidro, que terão como
destino olhares de saudade ou de uma crescente mágoa… Quando regressou a si, já
a montra iluminada, a porta direita do carro a abrir-se, a frescura do anoitecer
carro adentro, ela a sorrir-lhe, a perceber que ele viajara, daí a questão O que se passa, amor? sublinhada de
preocupação. Ele, de certa forma, reconfortado pelo tom, com honesta candura a
responder-lhe Imaginava o dia do nosso
casamento… Ela com um sorriso, enquanto abria a mala, depositava lá a
chave, se ele fosse um pouco mais atento, apenas ligeiramente mais, este gesto
não lhe teria passado despercebido, porque o gesto é filho do sentir, e Eduarda
desviou a sua atenção de uma inevitabilidade que teria de cumprir. Como se mais
uma montra, a determinada hora, por iluminar. A cidade tem as suas exigências.
Mas, desde que por aqui anda, nunca mais houve compaixão em quaisquer olhares à
vista dos seus sapatos ou vestuário. Isso, ela nunca mais iria permitir. Fechou
a carteira. Olhou-o. Beijou-o. Aproximou os lábios do ouvido dele: Achas que eu penso noutra coisa? Assim
que a última sílaba a deixou, ela sentiu uma comoção sincera nele, abraçou-o,
e, de repente, sentiu-se no alto de uma colina, sob a clarividência do cansaço,
entre o doce afago das amoras, a sentir uma distância segura das coisas…
VIII
Uma fotografia é um relógio sem
ponteiros
Ela acordou num quarto demasiado
branco para conter vida. Ou talvez não. Demorou algum tempo a perceber-se. A
dor forneceu-lhe o pouco que restava. Um ardor excruciante no baixo-ventre.
Sim, os pontos. Que horas seriam? Tentou mobilizar-se, mas, de novo, aquele
ardor. Como se uma chama sobre uma recente queimadura. Deixou-se estar. Pelos
interstícios do estore, a luz prolongava as sombras, não muitas devido ao carácter
asséptico da divisão, ainda assim, ela a perceber a proximidade dos passos da
noite. Já os ouvia. Passado um indefinível de tempo, sempre o mais inquietante,
afinal, somos uma essência de tempo, daí a nossa luta para o contabilizar,
esquematizar, e, no fim, sempre derrotados, a porta abre-se, uma cara
autoritária, emoldurada num uniforme condizente na sua demasia com aquela
divisão, a sorrir-lhe, Então, está mais
calma? Lembra-se do que se passou? Ela longe destas questões. A única
memória que tem, é a de uma dor gravada quase a fogo. Nem responde, tal o
espanto, mas as palavras também não se lhe formam. Por vezes, isso acontece.
Talvez, nessas alturas, falemos de uma outra forma. A outra insiste, Espero que sim. Eu vou, agora, buscar o seu
filho. Tem de o alimentar! Filho?! Que estranha palavra aquela… Uma
reminiscência a despertar em si: a sentar-se nuns degraus, a sentir um
desconforto frio, dor, um grito por ajuda, a vizinha que quase não sai de casa
a ir ao seu encontro, uma frase repetida até ao cansaço, Chegou a hora, Chegou a hora, a ambulância, demasiadas vozes,
Rodrigo de um longe, Estou aqui, amor,
vai tudo correr bem, ela a tentar perceber o quê, uma voz, de si, a
sussurrar-lhe para sossegar, nem pensar em se levantar, deixou-se ir, não, do
que foi apenas ilumina isto, de novo a porta, a autoridade emoldurada de branco
a regressar, acompanhada por gritos, a depositar, do seu lado direito da cama,
demasiados decibéis, a anunciar com a solenidade possível, Eis o seu filho, ela a olhar, um incómodo crescente pelo barulho
emitido por aquele diminuto ser, enrugado, escarlate, por fim, o cansaço a
ser-lhe imperativo, na forma de uma questão, Desculpe, mas o que quer que eu faça? O rosto autoritário, pela
segunda vez nesse dia, a turvar-se de hostilidade, a responder sibilantemente, Que o alimente, mulher, que o alimente, ela,
Mas como… Ele não se cala, ajude-me, por
favor, leve-mo daqui, de novo, a cena de há umas horas, pouco passou até à
chegada da histeria, calmante aquoso pelo antebraço, o desespero siderado de
Rodrigo na sala de espera, a preocupação pelo recém-chegado, que nem o alimento
lhe concedem, e ela a regressar talvez ao desconforto de uns frios degraus,
lugar de onde ainda não partira.
Despertou, desta vez, a sentir uma
mão, de forma lenta, a passear-lhe pelos cabelos. Primeiro o sentir, só depois
o ver. Sim, sempre assim foi. Para quê mudar isso? Surge-lhe, de uma estranha
névoa, o rosto da mãe. Logo se inquieta, as poucas energias canalizadas para uma
acuidade tão distante ainda. Se pudesse evitar um rosto, seria este. Olha-a da
mais alta balaustrada de si. A mãe sorri. Minha
filha, minha filha, e agora? Note-se que a sua mão persiste no enlevo. Descuidaste-te na tua trajectória de
sobrevivente. Nunca te esqueças: não escolheste viver, mas sim sobreviver. E um
filho não é um bom plano para um actor. Bem sei da insistência dele, mas como
foste cair? (Ela esmagada por aquelas palavras, mas simultaneamente a
sentir um certo reconforto, afinal, alguém a conhece. E isso é tão raro neste
mundo! Daí o fascínio, daí o temor…) E
agora, minha filha? Sei que tiveste de ser sedada já por duas vezes. Dizem que,
por vezes, acontece. Não te preocupes, ainda não há falatório. Ele, lá fora
sentado, só está preocupado contigo. Agora, a mim preocupa-me o inocente que
ainda nem a mãe conhece. Vais alimentá-lo enquanto conseguires. Chegou a altura
de representares um papel deveras difícil. Depois, alegas o que quiseres, que
eu cuido dele. Não te esqueças: só se aprende ao olhar para cima. Mas disto, és
incapaz! Sabes, serás sempre infeliz, porque viverás sempre contigo.
Exactamente de onde foges a cada instante. Talvez seja esse o bálsamo da morte:
libertarmo-nos de nós. (Apenas anuiu, e, mesmo ali, conseguiu refrear um
longo alívio, sob uma forma suspirada, a actriz recuperava terreno em si. Nada
respondeu. A última frase apenas lhe fez sentir chão sob os pés. Sim, de novo
devolvida à terra. A mãe suspendeu o gesto de enlevo, levantou-se, e saiu. Nem
uma saudação de despedida. De facto, não sabia representar. Escolhera, desde
muito cedo, o lado da vida. Tinha ido, horas antes, visitar o neto. Permitiram
que o sentisse nos braços. O calor emanado por aquele pequeno ser, iluminou
zonas de si há demasiado tempo invernosas. E aquele perfil adormecido, como é
estranho, parecia que o tinha recuperado das águas…
Ouviu, desta vez, um bater tímido na
porta. Seguiu-se-lhe uma face temerosa. Ela a assumir um rosto extenuado, sim,
recuperava bem, passos indecisos na sua direcção, uma questão surda, emitida
num temor respeitoso, Como estás, minha
querida? Ela a respeitar o compasso, antes a baixar os olhos, como se uma
dor súbita, ele num esgar de aflição, a imobilizar-se, Estás bem? Esta mais audível, fruto de uma apreensão real, ela, com
a mão, a incitá-lo a aproximar-se, esse gesto a transportá-la para uma noite do
passado, após a longa cerimónia trajada de branco, um dia em que nem ouviu a
voz da mãe, mas não se pode censurá-la, compreendeu que a filha, a cada
instante, em vez de olhar, olhava-se, sempre a insularidade do egoísmo, o
orgulho da actriz pelo desempenho, aplausos na forma do sobreviver, ao pai,
pelo contrário, sentiu-lhe no braço, aquando da singular entrada no templo,
todo um dilúvio de emoções, embora felicidade fosse a consubstanciada, do resto
perduram instantes roubados ao tempo, sim, uma fotografia é um relógio sem
ponteiros, rostos para sempre subtraídos, outros que as esquinas da vida
afastaram, e esse momento, em que o mundo já uma sombra, povoada por centelhas
longínquas, que nos mitigam dores e relembram amanhãs, de silêncio no verbo e
respirares de afogados. Ela entregou-se num gesto de suicida diante do abismo, com
um quê de curiosidade pelo provir, todavia, não lhe escapou a timidez dele,
afinal, a sua mão, nesses instantes, em parcimónia, quando antes tão abnegada
na subida, talvez ele quisesse colocar ousadia no lugar da timidez, sempre a
imagem, mas as leis da natureza são-nos pretéritas, e tudo se cumpriu, embora
ela sempre, tal como a suicida, de olhar velado. Talvez ele não percebesse. Talvez
o sentir se sobrepusesse à razão. Enquanto o respirar se harmonizava, ela
vislumbrou um ro
IX
Havia ali um qualquer desamparo de
passeio sob a chuva
Foi num aniversário que isto se
passou. Talvez no quarto ou quinto. Ela e o marido a caminho de casa dos pais.
À medida que a aldeia se aproximava, o assento a diminuir face a sua crescente
inquietude. Uma vez mais, Eduarda com o silêncio. Ele a comentar campos e
colheitas, enquanto ela em reunião de forças para a mãe. Caminhava para o
aniversário do filho, mas esse facto tão longe, na realidade, nas faldas do seu
pensar. Se, passado este tempo, nos detivéssemos a analisar o rosto dele,
visualizávamos uma ligeira sombra de pesar. Como possível de outra forma? Sim,
ele realizou uma escolha, sabe-o perfeitamente, mas soterrou essa certeza sob o
peso de múltiplos escombros: o melhor para a criança, o conveniente emprego
dela a uma considerável distância – como foi prestimosa esta mudança! –, a
salutar e estável relação com os avós, ele sempre assoberbado, a parca
disponibilidade temporal de ambos, o público
a vê-los como vítimas (Coitados!
Devem sofrer tanto, longe do filho… Imaginamos pelo que estão a passar. Mas
lembrem-se: estão a cuidar do futuro dele. Um dia, há-de reconhecer o vosso
sacrifício), e o mais importante: ela transparecia leveza… E se ela sorria,
o mundo dele em Primavera… Logo que se aperceberam da vitimização do seu papel,
intuíram a força inesgotável que aqui reside. Múltiplas vezes ali regressariam.
Como uma fonte, de água retemperante, num árduo e poeirento caminho. A vítima apenas
suscita compaixão. Nunca um julgamento. Desse modo, não chega a entrar num
plano moral. Está para além dele. Por outras palavras: a sua entrada em cena
não está sob um escrutínio crítico, porque surge imbuída num contexto
esclarecedor, assim, apenas sobe ao palco para recolher a nossa simpatia. Nada
mais. Quanto ao resto, como podemos avaliar se fomos velados a montante? Só
assim, enquanto vítima, o seu papel tem préstimo. Há um sentido para tudo. Uma
outra perspectiva sobre as coisas, obrigar-nos-ia a reeducar o olhar. A
reorganizar tudo. E poucos nasceram para demiurgos. Se é uma vítima, há que
torcer por ela. Apenas isso. Coitada, já deve estar a sofrer. É melhor
corrermos em seu auxílio… Ele, claro, sempre guiado pela mão dela. Sozinho
jamais encontraria o caminho. Mas, ali chegado, provou-lhe o gosto. E como
gostou! Regressavam, em silêncio e de mão dada, a este papel. Interpretavam-no
numa perfeição singular. Nem ensaios havia. Nada. Apenas a personificação. E
quantos aplausos, ao longo de uma carreira, recolheram? Demasiados. Alguns
ainda ecoam. Talvez uma outra perspectiva, um olhar reeducado, ajude na
compreensão da excelência dos actores…
Assim que chegaram, uma imagem
cansada: o pai, sorridente, à porta, a acenar-lhes, numa solidão de caminhante
das chuvas. O carro já outro. Ainda maior. Ainda melhor. Ela em sorrisos para o
pai, mas os gestos apressados denunciavam o nervosismo de um réu por uma
sentença sempre adiada. Entretanto, genro e sogro num sentido abraço, talvez
Rodrigo tivesse compreendido, desde o início, a porta mais cálida daquele
universo. A mãe com a lareira, a cumprimentá-los como se já os tivesse visto
nessa manhã, algo que sempre a feriu, esta indiferença cronológica, o banalizar
da sua presença. Sim, a mãe sabia atingir-lhe a essência insuflada por um ego
de uma inquietude sôfrega. Ela a disfarçar, com olhares rasteiros, a repulsa
por aquela cozinha, como se nunca dali tivesse partido, de repente, a ser
atravessada pela ideia de que, afinal, ali pertence, como se uma peça
transviada, logo, o asco a submergi-la por esses pensares de fonte incógnita,
como a maioria é, os olhares ainda térreos, a mesa, de madeira, ainda mais
fumigada, tal como a chaminé e o tecto em redor, a lâmpada fluorescente num
estertor cadenciado, nisto, Rodrigo a elevar a voz numa saudação que lhe soou
demasiado a palco, ao virar-se, para a sua esquerda, deparou-se com o filho, que
correu para a avó, ela a tomar como provocação, a sombra de pesar, na face do
pai, a adensar-se, a avó a receber o neto num gesto de espontaneidade maternal,
como se a parte regressasse ao todo, de facto, é um pouco assim, o avô lá fora
numa qualquer actividade, talvez tivesse ido aos ovos, afinal, ouviam-se gritos
alados ao longe…
Enquanto se procedia ao rito de
canção, bolo, e velas, ela deteve-se no rosto da mãe. Era estranho, mas só
agora percebia que algo dali partira há muito. Como se fosse um rosto que
coxeava. Estava com a distância, talvez do tempo, enquanto a cantiga se
precipitava para as palmas, afinal, a mãe também representava, fingia caminhar
ligeira onde se arrastava numa dolorosa lentidão. Mas o acto de representar não
faz parte da vida? Então, porquê essa censura? Assim que o neto, após as velas,
de novo por perto, ela a recompor-se, de regresso ao aquém, e um rosto que
dissipava a lentidão de um coxear através de passadas discretas e seguras.
Quanto dela não ficou naquela margem? Talvez demasiado… Desde o nascimento que
a vida nos vai abandonando. Por vezes, com maior velocidade, outras na ilusão
lenta do perdurar. Mas sempre irreversível. E naquele momento, de subir o vale,
não num regresso, mas numa ida para um desamparo anunciado, talvez a velocidade
do abandono, para ela, tenha sido excessiva. Sim, sem dúvida. Tanto que nunca
mais caminhou da mesma maneira. Um caminhar traduzido numa expressão para
sempre sombreada por um céu invernoso. Havia ali um qualquer desamparo de
passeio sob a chuva. Bastava perscrutar-lhe o rosto por um instante demorado.
Aí residem todas as respostas. Não fosse o rosto a entrada da alma. Em que
outro lado se grava cada biografia? Talvez por esse traço indelével, no rosto
da mãe, sempre tenha invejado a irmã. Sim, partira, mas com isso garantiu-lhes
a devoção. Hoje está mais presente, do que se respirasse a seu lado. Ela a
estranhar-se. De onde emerge este sentir? O marido a seu lado. O filho do outro
lado da mesa. Mesmo à sua frente. E todos tão distantes deste seu mundo! No
fundo, vivemos condenados a dois mundos: o nosso e o dos outros: e os nossos
dias vivem-se nesta ténue fronteira: sonhamos em nós: mas ferimo-nos no dos
outros… Há quem lhe chame vida.
X
Quantas vezes o olhar nos apresenta o
futuro?
Numa tarde, talvez de Outono, sim,
havia uma luminosidade límpida no ar, sem o excesso da Primavera, a calidez do
Verão, e a desesperança do Inverno, ela a sair do trabalho, agora já perto de
casa, com uma colega, aproximadamente da mesma idade, com valores similares, se
havia dissonância, ela a subir ao palco no papel que a celebrizou, e aí mais
aplausos e gratificações, como resultado as amizades ainda mais fortalecidas,
antes de descer os quatro degraus, que as separavam do passeio, a inspirar
aquele entardecer, a colega, a seu lado, com o jantar, ainda o jantar, o
marido, qualquer coisa do trabalho dele, ela a não ouvir, não só por
desinteresse, é certo, mas por estar em qualquer outro lado, faltava um degrau para
virar à direita no passeio, quando o seu olhar, sem saber porquê, a levou para
o outro lado da rua. Quantas vezes o nosso olhar nos apresenta o futuro? Ali
estava ele (há quantos anos não o olhava?) no passeio em frente. Ia de fato,
com um sujeito a seu lado, falavam animadamente, num primeiro ímpeto, ela a
querer atravessar a estrada, a dirigir-se-lhe para falar, mas ainda um degrau
para o passeio, a colega já o descera, agora com a escola do filho, ele a
passar, sempre num animado diálogo, como se o mundo um recreio seu, isto sempre
a irritou, mas, de novo, a doçura da sombra de um choupo no seu sentir, dele,
neste momento, só as costas e o perfil, ainda a conversa, notava-se-lhe uma
aura de sucesso nos movimentos e na expressão, por ali ainda não havia sombras,
ou talvez houvesse e ele também adquirira o gosto do palco, é possível, desce o
degrau em falta, a voz da colega mais nítida, resolve, sim, chamá-lo, mas algo
em si se precipita, numa queda repentina, o seu olhar nos sapatos a
imobilizá-la, enquanto sente a distância a engoli-lo. Nunca mais o viu. Soube
dele por conhecidos, mas muito esporadicamente. Com o tempo, o rosto dele
foi-se esbatendo na sua memória. Mas à medida que a imagem se diluía, aumentava
a doçura das sombras derramadas de um choupo. No fim de tudo, perduram
momentos, desvanecem-se rostos. Somos tão estranhos! Em última análise,
estranhos para nós mesmos. Quem isto concluir, revela um pensar com as cores do
mundo. Nessa noite, não voltou a articular uma palavra. Rodrigo, como sempre,
aguardava-a no carro, a uns passos da entrada do serviço. A colega aproveitava
a boleia. Hoje, de forma especial, ela agradeceu. Ajudava a povoar o silêncio
exterior, dessa forma, os seus gritos interiores permaneciam inaudíveis… Àquela
hora, já a face da noite perscrutava cada vida, e, ainda há tão pouco, cada um
regressava na companhia da sua sombra. Como se ainda um convite há vida. Agora
apenas a sedução de um recolhimento, como se fôssemos outros, e os de antes
vivessem uma outra existência. Enquanto o carro pelas ruas da cidade, na
melancolia de um regresso cansado de tão repetido, como se almejasse algo mais,
mas sempre um pudor autoritário que silencia pensar e verbo simultaneamente,
apenas o cumprir de um dever, jamais um expirar, ao mesmo tempo que o olhar
planta interrogações no horizonte de cada circunstância, ela, a sentir a
frescura do vidro na face direita, e, sem saber porquê, a ver, diante de si, o
rosto sorridente da mãe. Sim, ela sabia. No fundo, sempre o soubera. Talvez
fosse melhor assim. Mas como doía!
Nesta altura, já o filho com eles.
Ela sempre aquém de uma ponte jamais tentada. Em verdade, nem o olhar se
demorava por ali. Sempre que a cortina se levantava, abraços, beijos na face,
presentes, mas a criança jamais aprendera palco. Pelo contrário, tornara-se um
viajante do silêncio. Em vez de ouvir o dobro do que falava, conforme lhe ensinara
a avó, ouvia o quádruplo. Um sorriso no rosto, gestos de suposta tranquilidade,
uma obediência de sobrevivente, e, sempre que possível, o telefone, um número
discado na pressa, e a voz que o libertava do silêncio, assim que férias da
escola, ninguém lhe precisava de ensinar os passos para uma casa, onde, de
facto, o ensinaram a caminhar pelo mundo. Parte do seu silêncio deriva de uma
culpa, nunca assumida, mas que o rondava numa ferocidade uivante, pelo abandono
maternal. Jamais verbalizado. No fundo, tratava-se de uma ferida do pensar.
Talvez a sua compreensão sempre aquém do acontecer. É possível… Daí a sua culpa
pela incompreensão das coisas. Afinal, com ele a natureza em desarmonia.
Todavia, cada gesto, mesmo o mais ínfimo, a espelhar esta sua inquietude
essencial. Parecia viver de costas para o futuro. Ou talvez o seu futuro seja o
passado. Há pessoas assim. São raras. Na realidade, são aquelas que, a dada
altura, se enganam no caminho, e não regressam para corrigir, apenas pela
poesia de viver à sombra de um se… Como
se iluminadas pela tragédia de fechar uma porta da existência. E, desse modo,
respirassem um pouco à parte dos restantes mortais. Sim, de novo, a sedução de
certos papéis. Há fardos que nunca nos cansamos de carregar. Como se
explicassem um cansaço das coisas, que nos faz viver a uma distância segura do
mundo. O pai conseguiu erigir uma ponte débil com o filho. Não tinha a vocação
da paternidade, é certo, mas denotava-se-lhe um esforço em cumprir com o papel,
como se um imperativo ético. A debilidade da sua construção advinha da presença
de Eduarda. A sua presença, aos olhos dele, ofuscava a própria realidade. Como
era estranho! O que lhe ensinou aquele lar? Muito cedo, aprendeu a
desconfiança. Não há melhor fonte para a desarmonia. Como se, no espaço de uma
casa, habitasse vários mundos, consoante os protagonistas. Quantos mundos cabem
numa casa? Talvez os sonhos que consiga albergar… Certa tarde, não há muito,
talvez por médico ou qualquer outra coisa, foi buscar o filho ao liceu, este aproxima-se
do carro naquele passo que olha qualquer coisa de indefinível, logo o pai atira
Despacha-te que temos de ir buscar a tua
mãe! Senta-se, sem tempo para uma saudação, já o carro obedecia a mudanças
e aceleramentos, ainda assim, tanto tempo depois, surge-lhe o espanto na forma
de uma questão. O curto trajecto entre o liceu e a entrada do serviço da mãe,
com aqueles degraus, em que depois vira à direita, fez-se sob um silêncio
nervoso e apressado. Por fim, conseguiu imobilizar a viatura antes da hora de
saída. Expirou. De seguida, retirou o jornal do banco traseiro, o filho, a seu
lado, num mutismo de espectador. Virou-se para o pai, que hesitou, assim que
sentiu um olhar a derramar-se sobre si, em abrir o jornal, e perguntou-lhe, com
uma voz longínqua, como se um eco da distância que viaja no vento, numa súplica
indignada, na eloquência de ancião, Porquê?
Cair
A mulher caminha sempre à frente do
homem
Certa noite, ela ainda de candeeiro aceso,
a folhear uma revista de horizontes demasiado planos, ele de olhos fechados mas
pensar aberto, vira-se ligeiramente (Não
achas que o miúdo está cada vez mais fechado?), o olhar dela a deixar a
revista, numa contrariedade próxima da irritação (O que é que estás para aí a dizer?), agora vira-se por inteiro (Não é um miúdo feliz!), a revista cai (Onde foste buscar essas ideias? O que queres
dizer? Foi a minha mãe que te inculcou esses disparates?), ele a
endireitar-se na cama (Ridículo! Hoje, quando
o fui buscar à escola, apercebi-me de que há uma lentidão triste nele. Como se
fosse mais velho que os outros. Nada,
nele, é espontâneo), ela também já direita, até porque tem uma revista para
apanhar (Andas cansado do trabalho. Está
tudo bem com ele. Preocupa-te em não o estragar com mimos), ele a acender o
candeeiro do seu lado (Se ao menos
tivesse um irmão…), ela, num último momento, a disfarçar uma expressão de
repulsa, a olhá-lo como se uma criança que esboçasse um tolo desejo, mas nada
se diz, sim, a mulher sempre a uma idade segura do homem (É uma ideia a considerar. Mas temos outras prioridades de momento. Não
te parece?), nisto, ele já de regresso à almofada (Sim, tens razão), a desligar o candeeiro, de certa forma, numa
leveza, sempre aparente, porque o seu rosto há muito sombreado por um pesar, por
tê-la confrontado, ela de regresso à lisura daquelas páginas, mas o olhar,
neste momento, a assentar na nuca dele, a revolver aquelas palavras, ainda por
largos minutos, já antes, mais ou menos por trimestre, ele e o silêncio do
miúdo, conseguira sempre encaminhá-lo para outras paisagens, sim, a mulher
caminha sempre à frente do homem, hoje já é tarde, e ainda não terminou a
revista, a ver se amanhã, antes do sono, encerra um trimestre para contabilizar
um novo. De facto, a mulher caminha sempre à frente do homem.
É claro que não houve mais filhos.
Com o tempo, ela cada vez mais à frente. Ele no cansaço de uma abnegação órfã,
de lhe seguir os passos por uma capitulação de si, algures, e, na sua crescente
fadiga, a carecer de menos espaço, Eduarda a expandir o seu, sempre a vontade,
o tempo de espera, por ela, enquanto folheava o jornal numa atenção decrescente,
a aumentar, certa tarde, enquanto ela no cabeleireiro, ele com o jornal, dentro
do carro, sempre estacionado perto do destino, a familiaridade de um vulto, no
passeio, a erguer-lhe a vista de misérias impressas, era o filho, a mãe
alertara-o para, logo que findas as aulas, ali vir ter, pelos vistos, ele a
cumprir, a mão do pai, estática, entre sentir e pensar, pronta a rodar no
sentido de abrir o vidro, o filho a passar pelo carro sem se aperceber, como se
absorto por qualquer coisa, se o pai atendesse à passada demasiado hesitante,
percebia que o dominava um temor absoluto, agora, a olhar a entrada do prédio
cabisbaixo, apesar das intenções, da manivela firmemente agarrada, a mão ainda
imóvel, tantos afectos naufragados entre sentir e pensar, a vontade numa margem
apenas a assistir, afinal uma mera espectadora à espera de um chamamento, a mão
a persistir na sua imobilidade, no passeio, agora, apenas a ausência do filho, e
nos seus dedos as marcas de um gesto por cumprir. Sempre no tempo de espera por
ela. Como se a vida se suspendesse. Nunca compreendeu, na sua existência, a
distância entre viver e sobreviver. Talvez tenha ficado a meio caminho.
Suspenso numa indecisão. A quantos não sucede isto? Talvez devido à dificuldade
do primeiro, optem mais pelo segundo. É possível. Sempre é mais cómodo e
garante de amanhãs conhecidos. Mas, no seu caso, porquê uma capitulação tão
prematura? Terá, ao menos, um vislumbre do primeiro? Há quem desista de
horizontes no receio de se perder…
Não era a primeira vez que entrava no
cabeleireiro. Desde que se conhece, este um dos destinos primeiros da mãe.
Situava-se num primeiro andar de uma alameda de Lisboa. Aqui chegados, podemos
questionar se ele terá visto o carro do pai. Se, porventura, não simulou
desatenção na esperança do chamamento paterno. Tudo pode ser questionado, mas
tão pouco é respondido… Sobe a escada, nem acende a luz, sempre preferiu assim,
fugia das evidências, afinal, possuía uma alma nocturna, toca à porta, uma das
empregadas vem abrir, uns anos mais velha, envergava uma bata que lhe conferia
um ar de cirurgiã, a tesoura na mão atestava que lhe haviam interrompido o
desempenho do ofício, o olhar certificava-lhe a pouca tara da sua bagagem, e, a
avaliar pela cor da cabeleira, a sua proveniência seria extensível a qualquer
canto do sistema solar. Assim que entra, é invadido por um cheiro a vasos
capilares requentados, misturado com o ténue aroma, demasiado artificial, de
champôs, e o ininterrupto roncar mecânico dos secadores, que sempre lhe traziam
à memória, sem saber muito bem porquê, qualquer coisa de metropolitano, tudo
compassado pelo tinir, como se gaivotas em orla marítima, das tesouras.
Quem busca o ontem esquece a circunstância
Entrou com uma passada ainda mais
hesitante, do que aquela evidenciada, há pouco, no passeio. Os livros debaixo
do braço direito, a olhar aquele estranho universo – há coisas, felizmente, que
nos serão sempre estrangeiras –, em que, por todos os meios, se procura o
ontem. Ainda na busca de palavras, no sentido de uma frase, para dizer ao que
vinha, quando a voz da mãe, de novo, a subida ao palco, o sorriso, o abraço, a
encaminhá-lo para uma cadeira, a voz numa afabilidade que lhe julgava
impossível, afinal, subestimava os dotes maternos para a representação, ele, uma
vez mais, numa incredulidade espantada, um observador mais atento
aperceber-se-ia daquela expressão desarmante, mas quem busca o ontem esquece a
circunstância. Assim que refeito do espanto pela actuação materna, a readquirir
a sua peculiar expressão, um hermetismo observante, sim, andava por aí, não se
pode dizer que fosse fechado, havia nele uma curiosidade pelas coisas, sobretudo
pela causa das acções humanas, é compreensível dada a sua biografia, afinal,
sempre tivera dificuldade em encontrar palavras, talvez por viver sob o domínio
de uma (Porquê?). Há muito que lhe evitava
o olhar. Ela, de certa forma, também. Quando o olhava, era sempre, ou para uma
ordem ou recomendação, de carácter generalista, nunca se demorava por ali,
parecia, quando pisava aqueles terrenos, estar sob as leis do tempo, como se
caminhasse por uma plataforma ferroviária, talvez ansiasse por uma partida, sempre
adiada, ele, por seu lado, desistira, vencido pela amargura da lucidez, como é
verdade, não se sonha sob a luz, sim, o sonho caminha pelas sombras, contudo,
no passado, chegou a estender-lhe os braços, a articular uma palavra que ela só
conhece pela superfície, e, com tanta distância à sua volta, regressou a si, aí
fundou a sua própria cidade (Quantas idades não terá atravessado? Como o tempo
é estranho! No fundo, o tempo é sempre individual…), de onde partia apenas para
uma casa de aldeia, onde sabia que uns braços estendidos o aguardavam, e que
havia quem conhecesse a essência das palavras.
À sua volta, ninguém lhes compreendeu
a insularidade. E que distância entre duas ilhas! Ela a manter o sorriso, sim,
a representação, ali, pelos vistos, a perdurar, ele, como sempre, num registo
hermético, mas numa varanda, neste caso, fascinado com a qualidade da
protagonista, e a tentar compreender de onde tanta inspiração… Talvez nunca ali
chegue, se tal sucedesse, percebia-lhe a amargura, e, aí sentado, via-lhe reflectido
no olhar, não uma criança, neste caso, um filho, mas sempre a imagem humilde de
uns sapatos envergonhados… Se ele, ao menos, fosse filho da sombra de um
choupo… Antes de saber o mundo, já o mundo sabia dele. Sim, nascemos com um
passado, e sempre trocamo-lo pela incógnita de um futuro. Esquecemo-nos de que
já somos, antes de sermos. Há demasia na espera de nós, e nunca estaremos
preparados, é natural, depois, dizem que errámos, mas é falso, apenas não
queríamos um passado tão distante. Não temos alforges para tão pretérita
caminhada. Ele a olhá-la, e sempre uma repulsa, houve demasiadas coisas cedo na
sua vida, poder-se-á afirmar, em verdade, que compreendeu antes de
experienciar, sabia, há muito, que ela nunca derramaria um olhar similar ao da
avó, ou àquele que aguardava os colegas na hora da saída, daí a lentidão do seu
passo, só caminha assim quem se cansou de olhar o mundo.
Sombras esquivas que reflectem, sem sabermos muito bem
porquê, a impossibilidade de um regresso
Uma tarde, ao deixar Andreia à porta,
viu Madalena. Há quanto aquele rosto ausente da sua circunstância? De repente,
foi como se encontrasse um lugar, para si, no mundo. Sim, encontrar-se é
saber-se perdido. Ela ainda com o longe. Andreia não se apercebera da irmã.
Fixava-se, apenas, em Henrique. Ele declinara subir. Preferia assim. Talvez
houvesse demasiados ecos naquela casa. Talvez, por ali, o tempo um só. Madalena
cada vez mais presente. Ele a já não conseguir disfarçar a atenção, por fim,
Andreia a saudar a irmã, esta num cumprimento geral, de repente, ele a saber-se
indefeso, de certa maneira, ridículo, sim, sem dúvida, há coisa mais ridícula
do que propor-se subir uma montanha e não passar do sopé? Assim ia o sentir
dele, enquanto Madalena aproveita o desviar da irmã para deixar a cena, de
novo, eles os dois, talvez não fosse bem assim, são preciosas as vezes em que
realmente somos só dois… E Madalena, quantos regressos não cumpriria? Não é um
regresso, um arrependimento? Madalena evitou tantos olhares, que acabou por se
prender a um que olhava numa outra direcção. As poucas vezes que se demorava
nela, souberam-lhe a uma vida. Era médico lá no hospital. Enfrentava um
divórcio iminente, segundo se ouvia dizer Dois filhos para somar. Mas aquelas
eternidades justificavam-lhe o existir. Encontravam-se num apartamento que ele
dizia arrendado, contudo, ela veio a descobrir que pertencia à mãe, entretanto
depositada num lar, mas antes do emergir das respostas, por outras palavras,
antes da necessidade das questões, afinal, ainda mais a montante, tudo em
harmonia, marcavam uma hora, ele aguardava-a já dentro de casa, nunca lhe quis
dar uma chave, ela também não se lembrou de pedir, ele, detentor de um peculiar
sentido de humor, à sua maneira, apresentou-lhe um certo mundo, ela grata, após
a vertigem ritmada da urgência dos sentidos, ficavam preguiçosamente deitados,
como se desafiassem o tempo, sobre colchas e lençóis emaranhados, quantas vezes
ela lhe repetiu a questão A que sítio
pertencemos? Ele sempre aquém do amanhã da questão, escudava-se num
lugar-comum, ela sonhadora de novo com a questão A que sítio pertencemos? Questões da vida, como sonhos por
iluminar. Tudo se diluiu com uma naturalidade quase obscena. Estavam ambos de
banco. Noites de hospital, noites de gritos de uma dor só. Num momento de
pausa, ela atravessa corredores de desespero, até à enfermaria onde ele se
encontrava, uma desculpa profissional para se justificar por ali, mas ele
ausente, a sua pausa a expirar, regressava quando o vê sair de um gabinete, num
esforço patético de naturalidade, acompanhado de outra enfermeira, que se
digladiava com uma chuva de cabelos para repor a touca, ela cola-se à parede do
lado oposto do corredor, numa ânsia de invisibilidade, passa por eles, nada é
dito, nem um cumprimento, de novo, uma questão cansada lhe surge A que sítio pertencemos? Ainda hoje,
Madalena só sabe os sítios que abandonou…
Henrique e Andreia acabaram por se
juntar após o términus dos cursos. Sem cerimónias dos deuses ou dos homens.
Apenas um homem e uma mulher que, num dado momento, resolvem partilhar
silêncios. Até quando? Não se preocupavam com isso, tinham aprendido uma
passada cautelosa e segura. Madalena, para ele, acabou por ser uma sombra,
afinal, não passara do sopé, difusa do passado. E ele aprendera, há muito, a
temer regressos. É compreensível. O horizonte do seu passado assemelha-se a uma
noite, demasiado longa, de palavras impronunciadas e de gestos abandonados. Já
antes do lar, nunca se proferiu a palavra filho. Ela, por motivos óbvios, para
sempre de encontro a um escolho do destino, e a inclemência da corrente no
perdurar da memória com uma nitidez de há instantes. O indelével de nós a
esmagar-nos de encontro ao pó. Ele jamais ousara assomar à janela desse
horizonte. De novo, o caminho já percorrido antes de sermos. Como se destinado,
nesse particular da existência, a um falhanço que sabia não ser seu.
Assemelhava-se a um emissário de distante reino. Não, não podia permitir.
Talvez houvesse egoísmo neste apartar de horizontes. Mas em que acção humana
não está presente? Em menor ou maior quantidade, sempre espreita, de algum
canto, como para nos relembrar uma ânsia sonhadora por um público que aplauda,
numa aceitação incondicional, cada acção heroicamente por nós desempenhada. Em
verdade, nunca se arrependeu. Temia contemplá-lo com o olhar da mãe. Esse seria
o seu maior falhanço. Como se, em si, já corresse tal veneno. Não queria
corroborar tal possibilidade. As respostas sempre nos habitaram, as questões é
que chegam sempre depois. Sem dúvida! Que pena esquecermos isto. Quantos
desvios se evitavam… E quantas ilusões iluminariam, ainda, um se sonhado no possível de uma madrugada,
com o seu doce cântico de sereia na lonjura…
Com o tempo, aprenderam a completar
silêncios. Ele fascinado pela luminosidade inata do feminino. Gostava de roupa
feminina pela casa, mas não apreciava jardins, sim,
a cada um, as suas flores… A cumplicidade crescia no respeito da
individualidade de cada respirar. Como primeira casa, alugaram um pequeno apartamento
num desses bairros da capital, em que, de manhã, os passeios se povoam de
frutas e legumes das mercearias, e, à noite, de sombras esquivas que reflectem,
sem sabermos muito bem porquê, a impossibilidade de um regresso.
Como se o coração quisesse passear pela terra
Certa tarde, o telefone insistente,
talvez soasse como um grito de náufrago, ela, por acaso, àquela hora a entrar
em casa, a dirigir-se-lhe de imediato, antes do auscultador, um temor frio por
si (sempre de uma fonte sombreada), cinco ou seis frases trocadas num
decréscimo evidente de palavras, devolve o auscultador, e senta-se no banco, de
plástico, ao lado da mesinha. Por uns momentos, imóvel, apesar do torvelinho do
seu pensar. Evidenciava uma expressão de espanto resignado. Sim, algures por
aí. De seguida, pousou a carteira em cima da mesa da sala de jantar, e arrumou
as compras. Pensou ligar ao marido, mas algo a reteve. Se lhe pedissem para
explicitar o quê, ela não saberia o que dizer. Ele chegou, com o filho, pouco
antes do jantar. Chamou-o à parte, e contou-lhe que, nessa tarde, um vizinho
encontrou a enxada do pai caída ao lado do seu corpo, por essa altura, o coração
ainda respirava, mas quando chegou a ambulância, talvez pela demora, talvez
pelo cansaço, o áspero cabo da enxada, primeiro, a repousar na terra, ele numa
tontura, uma impressão no peito, como se o coração quisesse passear pela terra,
o suor na testa a turvar-lhe a visão, a tontura a insistir no regresso ao chão
do mundo, ele a ceder, e como última imagem, antes da Verdade, o tortuoso cabo
da enxada, que expirava a seu lado, talvez nunca tenha havido imagem mais
verdadeira – primeira ou última.
Partiram na manhã seguinte. Ele ainda
insistiu para ser nessa mesma noite, mas ela demoveu-o (É perigoso viajar de noite. Não achas precipitado? O que é que íamos
adiantar? Chegávamos a horas impróprias…), como sempre sucedia. Ele a
ceder, a desculpar-se, a atribuir-lhe razão, e, de imediato, a adormecer um
pensamento, com uma voz rouca, que lhe segredava qualquer coisa acerca daquela
frieza diante da súbita morte do pai. Não tardou a ser escorraçado, até que um
dia não lhe bateu mais à porta. Quantos pensamentos não desistem de nós?
Partiram cedo, na frescura ainda sossegada da manhã. A viagem decorreu em
silêncio. Enquanto o verbo se cala, o pensar viaja. E, neste caso, o destino
era o mesmo: um qualquer lugar de memórias. Quando alguém parte, o destino
imediato dos que ficam reside num passado comum. Como se a cerimónia da
despedida fosse uma viagem, comum e individual, por momentos que ressuscitam, sob
máscaras de dor e de silêncios, um rosto já ausente. E, com o tempo, vamo-nos
povoando de ausências. Um vazio galopante à nossa volta. Talvez seja isso
viver: a compreensão do vazio. Mas em nós as vozes. Como se garantias de uma
veracidade que, num certo momento, questionamos, talvez pela rapidez absurda de
tudo, afinal, o mundo sempre outro, e a nossa compreensão das coisas sempre
tarde num encontro jamais concretizado.
Foi a primeira vez, segundo a sua
memória, que encontrou a mãe sentada e de rosto caído. As mãos escondidas. Nem
sinais de peças de fruta desveladas numa cuidadosa perícia de cirurgiã. O neto
contorna os pais e corre a abraçá-la. De súbito, mãos lívidas destacam-se do
negrume geral, para o acolher. Ela e o marido, de pé, assistiram àquele abraço
comunicante, talvez por uma dor comum, e compreenderam que a sua exclusão, daquele
mundo, há muito fora sentenciada. A filha não se admirou de já tudo estar
tratado. Das questões humanas às divinas, essa escadaria com sempre mais um
degrau, e ela sempre no encalço da mãe. Por fim, a velha a erguer-lhes o rosto,
o neto agora a seu lado, o genro aproxima-se, beija-lhe a face, e olha-a com as
emoções reveladas, a filha segue-lhe os passos, um beijo na face direita,
demasiado fugidio, ao contrário do marido, uma expressão impassível, enquanto a
face materna numa ruína por um dia que nunca devia ter acontecido. A mulher
conhece o homem, a filha apenas o pai. Daí os equívocos dos filhos e os seus
julgamentos liminares. Não se conhece um rio apenas pela foz. Há todo um
montante para o perceber. Mãe e filha, lado a lado, receberam palavras e gestos
do possível, antes do abraçar da terra. Mas como pode uma ruína ser ladeada por
um véu? No entanto, assim foi. Talvez por isso, e apesar da hora, a mãe
irradiasse uma certa luz, sim, uma ruína é sempre uma compreensão da dor. O
nosso olhar turva-nos certos lugares. Como se bússola do pensar. Mas a vida
sempre nos acaba por apresentar a terra sob uma qualquer forma de luz. Mais uma
vez, atravessaram o portão de ferro, preto, a carecer de manutenção, em cada um
a dor vivia a sua diferença, oxidado em diversos pontos, silencioso, como se
compreendesse a sua função de vigilante de um imemorial e cansado adeus. O neto
ficou mais uns dias. Eduarda e Rodrigo partiram de manhã cedo. Deixaram a
aldeia pelo caminho que ela tanto pedalara, como se numa outra vida, quando passaram
pelo terreno dos pais, ela ergueu a vista, pareceu-lhe ver uma figura de costas
para a estrada, pernas afastadas, tronco arqueado, e de enxada nas mãos. Sem
saber muito bem porquê, sentiu a aspereza do cabo da enxada. O carro a seguir,
estrada fora. Ela, neste momento, a ver-se, ali, parada, numa imobilidade
expectante, na margem da estrada. A figura continua a cavar. Vestia um daqueles
pares de calças que ostentava a geografia do tempo, uma outrora branca camisa
desabotoada, e na cabeça pontificava uma boina que cheirava a sal e a terra.
Raros são os objectos que comportam estes odores: sal e terra: o sonho e a
realidade. A enxada continuava, através do seu movimento vertical, a trazer o
céu à terra. De cada vez que subia, o cabo reflectia luz, para, logo de
seguida, mergulhar na seiva da vida. Ela assim ficou, por uns instantes, agora sentada
na bicicleta, a assistir àquele labor secular, protagonizado pelo pai. Ela
baixa o rosto e serve-se de uma mão para disfarçar um mundo que adormecera em
si…
E o mundo tornou-se uma saudade
imensa
Entrou no quarto e dirigiu-se para a
varanda. Tinha uma passada de caminhante com dúvidas. Só quem se vê de longe,
caminha assim. Na varanda, ficou, de mãos nos bolsos, a contemplar as águas
agora alaranjadas, e sempre silenciosas. Ela secundou-o. Assim que o olhar dela
reflecte aquele silencioso entardecer líquido, logo a mão no ventre. Um gesto
do tempo, por uma dor sempre do agora. Ele apercebia-se do gesto apenas pela
expressão, que traduzia um adeus nunca pronunciado, sim, é quando o mundo se
torna uma saudade imensa. Estende-lhe a mão, e ela, como sempre fazia, aceita
numa súplica de falanges para saber que o vazio ainda um lugar distante,
vira-se para ele Como estás? Ele
ainda com aquele espelho entardecido, talvez na procura de uma sombra vertical
que proclamasse harmonia, mas nem vislumbre de um vulto unificador de águas e
céus, no horizonte, neste momento, apenas o respirar da terra, Cansado. Afinal, tudo não passa de uma
enorme desilusão pelo nada que foi dito, e pelo tudo que ficou por dizer. As
falanges a serenar enquanto os olhares agora repousam naquele silêncio de fim. Ela
acrescenta Esta é a tua história. Cheguei
a meio. Porém, conheceste-me no cinzento e trouxeste-me para o azul. Ele
sorri. Vira-se para ela e beija-lhe a face. Assim ficaram, até que um ligeiro
frio lhes relembrou noite. As águas silenciosas agora em prata. Regressam ao
quarto ainda de sentires entrelaçados. Fecham a porta de vidro. Acendem um
candeeiro. O mundo, lá fora, já uma noite imensa. Enquanto eles se sorriem sob
uma luz.
Pedro de Sá
(25/08/13)