Livros

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domingo, 30 de outubro de 2022

Espera mais um pouco


 

Tudo começou com uma pequena insinuação. Ou talvez já não me lembre. Bom, mas tudo tem um início, certo? No entanto, a sua morada é o ontem. Nós, de mão dada, naquele passo arrastado de quem vira costas ao tempo, ele a entrelaçar os dedos no meu cabelo, a caminho do jardim, não sei porquê, mas ele lá devia pensar que eu gostava de jardins, ou talvez fosse o seu ideal de romantismo, não sei bem, sentávamo-nos sempre no mesmo banco, em frente do lago, eu perdida com os patos, havia neles qualquer coisa de patinadores, enquanto isso, a mão dele em passos tímidos, a princípio, fingia-me distraída, sim, sempre apreciei patinagem artística, quando a timidez foi trocada pela resolução, apelei ao respeito apenas com o olhar, a mão dele recuou desengraçada, como se uma culpa, de súbito, iluminada, seguia, agora, os volteios alados sobre a superfície espelhada, sim, o seu olhar partiu assim que encontrou respeito, sob uma expressão invernosa, no meu rosto, no dia seguinte, uma vez mais, costas viradas ao tempo, dedos entrelaçados nos meus cabelos, o jardim, sempre o mesmo, ao menos ele podia variar, o banco em frente ao lago, eu a perder-me com a patinagem dos patos, a mão, de novo, a encetar a escalada de uma vida, possivelmente mais resoluta que ontem, quando cobri o rosto de respeito, talvez pelos patos, talvez pela distância de mim a mim, a mão além de ontem, não consigo perceber se gostei do seu alcance, da sua resolução, de lhe ler o esforço, ou se, por outro lado, desilusão pela insistência, por sempre percorrer as mesmas geografias, pela escassez na palavra e a abundância no gesto, bem sei que há momentos em que tal se torna imperativo, mas não num banco de jardim defronte de um lago, de novo inverno na minha face, contudo, ele levanta-se num repente, afasta-se, caminho do espanto à indecisão, enquanto lhe acompanho os passos, com o olhar, mas algo me aconselha à imobilidade, sim, deixo-me estar, afinal, sempre gostei de patinagem, não sei bem porquê, há naquele voltear alado uma harmonia deslizante, como se uma simbiose de elementos, o meu pensar evola-se, até que uma sombra o devolve à terra, ele, diante de mim, mãos nos bolsos, o regresso tão brusco quanto a partida, a voz num contraste flagrante com a mão, em esforços para o ouvir, pedia para conversarmos, logo agora, que só me apetecia comunicar voos deslizantes, sobre uma superfície envidraçada, com o olhar, a insistência pela conversa, cedo pelo cansaço, levanto-me e acompanho-o, fala de sentimentos, mas a voz não tem o aroma das palavras, sempre a distância, da forma de os demonstrar, percebo a alusão a conhecermo-nos melhor, afinal, ele é de geografias curtas, envereda pela cobardia de exemplos próximos, enquanto isso, tento rememorar o que me demorou a atenção naquele olhar, somos tão estranhos, morremos e ressuscitamos, diante do nosso compreender, tantas vezes, sim, agora que estou ciente do logro, paro e viro-lhe o rosto para mim, percebo que o vejo pela primeira vez, apesar de já o ter olhado tanto, algo dói em mim, uma evidência nunca é pacífica, talvez por não admitir regresso, os meus dedos tacteiam-lhe a face, procuram dizer-lhe que não vai haver amanhãs, que a sua mão terá de partir em busca de outras geografias, enquanto isto, saem palavras da sua boca, porém, não as ouço, persisto numa surdez distante e segura, nisto, tenta abraçar-me, recuo um passo, talvez fosse demasiado, ele imobiliza-se, quão longe agora estamos, eu, com o amanhã, ele, ainda com o hoje, nisto, o meu olhar viaja até volteios alados sobre uma superfície espelhada, talvez um dia, naquele banco de jardim, alguém me sussurre o aroma das palavras e desenhe com a mão gestos alados na geografia do meu sentir.


quinta-feira, 27 de outubro de 2022


 Por fim, num passo lento, dirigem-se para a estalagem. Tanto foi dito naquele instante de silêncio e de dedos entrelaçados. Apenas, dessa forma, se compreende a dor. Porque só, assim, é possível comunicá-la. E havia tanta dor neles e entre eles. Como se os submergisse. No fundo, a dor é a noite da vida. Turva horizontes, mas ilumina essências.

in, Do outro lado do rio, há uma margem

domingo, 23 de outubro de 2022

Do outro lado do rio, há uma margem


  


Levantar…………………………………………………………………………………

Caminhar………………………………………………………………………………..

Cair………………………………………………………………………………………

 


Nós somos feitos do mesmo estofo dos sonhos, e a nossa curta vida está encerrada entre dois sonos.

                                                                             Shakespeare (in A Tempestade)

 

… pois a vida e a morte são uma só coisa, como uma só coisa são também o rio e o mar.

  Tende fé nos sonhos, pois neles se encontra a porta da eternidade.  

                                                                                                               Kahlil Gibran

 

                                                                          

Levantar

I

 

O tempo é o homem

Os primeiros acordes do alvorecer insinuaram-se na penumbra. A luz sempre encontra uma forma de se anunciar. De se dar a conhecer. É da sua essência. Nessa manhã, ele encontrou-a na porta do armário. Como se lhe relembrasse uma urgência: talvez a da vida. Assim ficou: a descobrir os veios de uma porta, subitamente revelados. Cansou-se. Afinal, todo tem o seu tempo. E o tempo é o homem. Subiu a perspectiva, e observou as partículas dançantes, felizes e aquecidas, naquela chaga das trevas. Estariam só ali? Embaladas por aquele vestígio de felicidade? Desde quando? Levantou-se. Arranjou-se. Antes de sair, olhou para ela, que, através do rosto, transparecia o indizível de uma felicidade de outras paisagens. Por fim, saiu.

Encontrou a sala de refeições, àquela hora, já com bastante gente. Na sua maioria casais com filhos. Colocou a chave numa mesa e foi-se servir. Esperou algum tempo pela sua vez. Sentiu, no ar, a urgência do açambarcamento, como se fosse um imperativo encher os tabuleiros, uma forma de equilibrar as contas. Talvez a recepção, avistada através das portas de vidro, potenciasse este súbito e repentino apetite. Chegada a sua vez, avançou. De súbito, viu-se ultrapassado por um garotelho, com os seus dez anos, que se precipitou, numa urgência sem retorno, a reabastecer a caneca e respectivo cesto de pães e croissants. Ficou siderado. Não tanto pelo gesto do garoto. Mas sim pela forma, que denotava grande experiência, com que o executou. É um outro mundo, pensou. Ao qual não queria pertencer. Admirou-se como o tabuleiro, sustido pela mãozita de uma década àquela velocidade, sem vislumbre de inclinação. Ele tinha que agir. Aproximou-se do miúdo por trás, enquanto este aumentava consideravelmente o peso do tabuleiro, e pisou-lhe, como se tratasse de um singelo acidente, o calcanhar direito, o que fez com que o ténis saísse. O garoto, entre o espanto da pisadela, o olhar para trás e manter o tabuleiro equilibrado, a escolha de doce ou de mais fiambre, acabou por ficar a meio caminho, e ele aproveitou para o ultrapassar, saúdo-o com um sonoro Ah, peço imensa desculpa, e no seu íntimo regozijou-se pela vitória do passado face à ignomínia do presente.

II

Uma sombra vertical proclama harmonia 

O seu olhar, neste momento, perdia-se entre o espectáculo em volta e um solitário que se equilibrava, em harmonia messiânica, numa exígua canoa no meio do grande lago, emoldurado pelas janelas da sala. O dia amanhecia, de novo, pardacento, como se esse véu emergisse das águas, e colorisse os céus. O solitário das águas estava, agora, num estatismo arrogante. Como se apelasse a um artista anónimo. Como se cumprisse um ritual. Como se aquele fosse, de facto, o seu lugar no mundo. Ele pousou, nesse momento, a chávena com mais leite do que café. O seu olhar apenas naquela sombra vertical – que proclamava harmonia.

Ele, agora, era o outro: na imobilidade, no equilíbrio da chávena, na arrogância de uma certeza, no silêncio de um grito por um olhar. Num lento adeus, a canoa afastou-se, e ele ainda ficou um pouco assim: entre o encantatório do movimento e a efémera memória do Sentido.

Tudo se diluiu, na estridente dor de uma chávena, desafiadora de gravidades. Também ele caiu no desconforto de si. Estremeceu, primeiro. Depois, buscou a génese do estrépito. Sem saber muito bem o porquê. Sim, soube desde logo que se tratava de uma chávena. Então, porquê esta quase obsessão de localizar, no espaço da sala, o ponto exacto da ocorrência, e visualizar o rosto do infeliz? Ele não o sabia. Apenas sentiu, em si, esta necessidade, quase orgânica… Tinha sido uma criança, a fonte do seu súbito desassossego. Crianças e ruído são íntimos de há muito. Não desistiu do epílogo da caneca. Esperava, sabia que em vão, pelo castigo do meliante. Acabou por emergir: a mãe afagou-lhe o cabelo, o rosto do pai sustentava o sorriso apatetado daqueles que não vincam o solo. Não, ele já não pertencia a este mundo. Olhou cansado o absurdo de uma cena recorrente. Enquanto o fazia, apoiou o rosto na mão direita. Por fim, suspirou… Longos corredores, silêncios obedientes, temores aquém verbo, imagens que revisitava balizadas pelo infinito de uma expiração. Na velhice, o futuro reside no passado. Só assim tem sentido. Afinal, de que outro modo o podiam encontrar? Esta é uma das grandes verdades da vida: passado e futuro, com o tempo, acabam por se fundir.

E ali estava ele, sozinho a uma mesa, oscilando entre o grande lago, no exterior de uma natureza paciente pelo sempre adiado regresso, e o civilizado ruído do movimento interior da sala. O seu olhar, reflectido na caneca, anunciava fim. Apesar de terminado o café com leite, ainda permaneceu sentado. Outrora, sentir-se-ia constrangido pela solidão. Nunca se deu bem consigo mesmo. Achava-se insuficiente. Sempre careceu de um espelho. Pelo menos um que o sossegasse. Só, sentia o apelo da elipse, e, do abismo de si, sempre emergia envolto nas roupagens da inquietude e da desilusão. Ao longo da vida, sempre se compadeceu daqueles cavalheiros que ocupavam, numa proclamação de derrota, uma mesa, de um qualquer restaurante, sem saber muito bem porquê… E porquê esta analogia com a derrota? Porque não associava ele, a imagem de um homem só, a uma mesa, com a de um farol, por exemplo? Afinal, solidão e luz são velhas companheiras. Não, ele não conseguia. Os seus olhos partiam sempre toldados por um véu de tristeza. Quem o terá bordado? Que delicadas mãos terão confeccionado tal peça, indelevelmente inquilina de sua alma? Sempre esta fonte inexorável de questões… E respostas, onde? E uma mulher só? Sem saber muito bem o porquê, não se compadecia tanto. No fundo, ele sabia há muito que o porquê é a porta da desculpa. Uma mulher, só, encerra em si uma aura de dignidade – daí a naturalidade de uma viúva –, um homem sozinho é o rosto do abandono e da incompletude – e de viuvez, estamos conversados!

Agora, olha o lago. Soube, há poucos dias, que lhe chamam a Lagoa Adormecida. Sim, faz algum sentido. Porque adormecer inspira tranquilidade. Dormir, já não. Mas aquelas águas apelam a sonhos tranquilos. Por contraste com as manhãs daquela sala de refeições. No fundo, aquele espaço em nada difere das salas de refeições dos outros hotéis. Há um lastro comum de excitação e de bocejo: o que origina estados de espírito a roçar a insuportabilidade. Continuou a observar os seus vizinhos da manhã. Numa mesa distante, um casal de anciãos, com a sua digníssima coroa prateada, saboreava a refeição com gestos lentos, próprios de quem já assimilou o saber dos pequenos nadas – o sempre tardio saber da vida –, ela muito direita, poucos imaginam o esforço da pose, ele mais curvado, mas numa curvatura honrada, de vez em quando uma palavra, o resto num harmonioso silêncio dialogante, como se nada fizesse sentido naquela sala sem a sua presença. Do casal infantilizado e da sua cria, já falámos. Numa mesa próxima, havia outro casal com duas filhas adolescentes. Reinava entre eles um respeito traduzido nos gestos. Nos gestos, não. Mas sim na sobriedade com que os executavam, como se tivessem uma profunda consciência do cerimonial que preside a uma refeição. Como se só sob esta luz, o acto de se sentar a uma mesa tivesse algum sentido. Tudo ali era lentidão e silêncio. As raparigas contrastavam a idade com a parcimónia dos gestos. Apesar de cumprirem os requisitos etários da moda, exalavam uma aura de anacronismo indecifrável. O pai era um sujeito anafado, com a ruralidade bem visível no rosto, apesar dos subsequentes anos de urbe, a mãe, inexplicavelmente, só se faria notar no quadro familiar. Sim, ela ali estava: era a mãe… Mas, em qualquer outro contexto, o seu lugar seria o da invisibilidade. Uma dessas pessoas que nem a memória ilumina. As raparigas, pelo contrário, talvez se iluminassem fora daquele palco. De certa forma, era como se representassem, não, não é bem isso, havia uma fatalidade que lhes sombreava a face, uma aceitação incondicional de um cálice amargo, por uma esperança algures reconhecida. Ele continuou a observá-los, com uma curiosidade crescente. A forma cerimoniosa como o patriarca limpou os lábios, análoga à de um sacerdote durante a eucaristia, como se uma multidão observasse o seu mais ínfimo movimento, e uma palavra adveio-lhe ao espírito: uma palavra de outras paragens, eivada do espontâneo, com outros protagonistas, outros ritmos… A palavra felicidade. Quão longe daquela mesa! Estaria a ser injusto? É possível… Não, ali não havia vestígios de risos, de… Mas é isso a felicidade? Risos, movimento, brincadeira? Não haverá outras manifestações? Em alguma parte de si, ele compreendeu a tranquilidade emanada de cada gesto, a leveza do silêncio (tão rara de encontrar), a comunhão subterrânea daquelas quatro pessoas. E esta sintonia, não se poderia denominar de felicidade? A resposta, demasiado óbvia, verbalizou-se pela voz sem voz de si mesmo. E continuou a olhar aquela família, seduzido pelo véu da felicidade inaudível dos gestos.

III

Quando o apelo da madrugada se desvanece

Saiu para o amanhecer cinzento. À sua frente, o lago. Atrás, o edifício, de dois pisos, do hotel. As cortinas fechadas, do seu quarto, denunciavam o sono da mulher. Dirigiu-se para a margem. Estranho este fascínio humano por margens e água! Deixou-se estar, de mãos atrás das costas (uma última tentativa de resistir à gravidade), a ouvir as águas e a sentir o afago sedoso da neblina no rosto. Uns metros ao lado, um sujeito preparava uma manhã de anzóis e paciência. Aproximou-se dele, enquanto este se debruçava sobre baldes e iscos de longa espera. Saudou-o com um Bom-dia, entre o educado e o alegre, a indiciar ao outro predisposição para a conversa. O indivíduo levantou os olhos dos baldes, e retribuiu um Bom-dia enformado de cautela e surpresa.  

- Então, por aqui abunda o peixe?

- (O sujeito olhou-o o tempo que considerou suficiente. Entretanto, devolveu à terra algo que trazia emprestado na boca. As bocas lusitanas são pródigas nestas devoluções às origens.) A sua cara não me é estranha!

- (Não esperava esta resposta. Sentiu um desconforto crescente. Recuou um passo, para melhor se equilibrar do golpe verbal. Sim, é verdade, nunca gostou desta frase. Sempre a interpretou como uma ameaça velada. Como a promessa de uma reminiscência dolorosa. Mas que ameaça poderia conter aquele humilde homem àquela matinal hora? Todas! É a resposta. Porque ele via-o com o seu presente, passado e futuro. Cada homem assim vê o mundo. Raramente olha a realidade fora deste espartilho. Quando assim acontece, está para além dela. E nessas ocasiões, esta sob a inebriante espiral da liberdade: sem ontem e sem amanhã. No fundo, sem o tempo. Mas, como anteriormente se afirmou, o tempo é o homem, e se esta é a sua medida, ou uma das possíveis, que homem é esse para além da sua mensurabilidade? Ele conhecia a resposta, sempre aspirou a um Absoluto, sob as mais diversas formas ao longo da sua vida. Já lá iremos. Neste momento, confronta-se, à beira de um lago, com um sujeito que o perturbou com uma exclamação corrente.) Não sei como! Somos da capital. (Refugiou-se num chavão chauvinista e deselegante: próprio de países que vivem a duas velocidades).

- Se é por aí, também já por lá andei. E não guardo saudades. Mas a sua cara não é da capital que recordo (A capital não tem rosto. Sim, são faces sem rosto, pensou ele, enquanto o ouvia.). É de outro lugar…

- Lamento desapontá-lo, mas não estou a ver de onde será.

- Está aqui hospedado?

- Sim.

- E não tem familiares por aqui?

- (O cerco estreitava-se. Aqui chegados, só restavam duas alternativas: a fuga ou a hostilidade. Nenhuma delas se lhe afigurou atraente, sobretudo àquela hora. Após a questão, baixou os olhos instintivamente, e apercebeu-se de que toda a sua aparente sofisticação citadina ruíra perante a argúcia de quem observa a metamorfose lenta das coisas.) O que o leva a concluir isso? (Optou pela primeira, camuflado pela questão.)

- O seu rosto, já lhe disse. (O sujeito emanava uma espontaneidade, nos gestos e na voz, que começava a irritá-lo. Falava com a mesma naturalidade com que tratava das lides. Um dom só ao alcance daqueles que conhecem e sentem as texturas das coisas.)

- (Acabou por capitular.) Sim, tive. Mas já não me resta nenhum. (Afastou-se, no vagar de uma indesejada reflexão.)

Regressou ao quarto. Ela já acordara. A porta da casa de banho estava entreaberta e ouvia-se a cascata matinal do duche. Ele aproveitou para abrir a cortina e assomar à varanda. Sempre gostou daquele cenário: horizontes por alcançar, as águas sussurrantes (ou serão águas sonhadoras?), as copas impressionistas da outra margem… Transmitia-lhe serenidade. Assim ficou, encostado à porta de vidro, de mãos nos bolsos, não a olhar, mas a sentir o silêncio melodioso das águas. Recordou aquela vez, há muito passada, em que acompanhou, precisamente dali, a lenta e cantada aparição do nascer do mundo. Nessa altura, o alaranjado do horizonte soube-lhe a vastidão. Já não se recorda de há quanto tempo foi, parecia-lhe, agora, ter sido numa outra vida. Sim, é verdade, quantas vezes se morre e nasce ao longo de uma vida? Ele também já fora outro. Ou outros… Quem é ele agora? Acordara, nessa madrugada longínqua, sem porquê. A seu lado, dormia aquela que já partira. Sim, estamos sempre a deixarmo-nos. Ele levantou-se, numa ânsia crescente de harmonia, desvelou um pouco a cortina, correu a porta de vidro, e saiu para a varanda por amanhecer. Ainda os distantes pontos luminosos no tecto nocturno, aqui e ali o salto de um peixe, cantos da madrugada em aparente dissonância, e ele sem a obstinação do pensar, apenas a leveza do sentir, submerso nas sensações de uma aurora irrepetível, recorda-se de fechar os olhos, assim que sentiu um tímido calor no rosto, e da sua voz se juntar a um coro imemorial de saudação ao ser da vida.

Nunca mais experienciou tal sensação de plenitude. Também o apelo da madrugada se desvanecera. Sim, há coisas que se deixam pelo caminho. E outras que se apanham? Não, o caminhar da vida é uma crescente solidão. Ele regressou ao interior do quarto, na mesma altura em que ela saía, enrolada numa toalha, do seu banho. Sorriram-se.

- Não me acordaste…

- Preferi não fazê-lo. Precisavas de uma noite assim.

- Sim, há muito que não me conciliava com o sono.

Enquanto falavam, ela primeiro desvelou-se, para depois escolher a sua roupa. Ele, fruto da experiência, preferiu sentar-se. Observou, num encantamento espantado, e com um natural sabor de primeira vez, a feminilidade dos seus gestos. O feminino. Uma graça liberta de qualquer resquício de gravidade. Em cada gesto, ela inteira. São gestos cantados, cantantes, pensava ele. Ora aqui, ora ali, a forma de pegar numa peça de roupa, de a olhar, numa análise além tempo, como se aquele acto, revestido de uma falsa aparência de futilidade, contivesse, em si, o futuro de nações. É curioso, nunca se ouviu alguém nomear uma flor de fútil. Por ser bela, por ser colorida… No entanto, uma mulher, que procure os mesmos desígnios, expõe-se a tal impropério. E qual é a diferença entre uma mulher e uma flor? Não sei, ainda não a descobri. Se alguém já a descobriu, deixo-lhe este espaço, de seguida, para o preencher.

  Após deixar cair a toalha, sucedeu-se um silêncio. Como aquele particular silêncio indizível entre as notas de uma peça. E nem o esquecido passar dos anos, disfarça o embaraço da nudez. Ele vestido, chegado da varanda, ela saída do banho, apenas com a toalha. O arranjar-se. A toalha, de repente, a seus pés. Ele disfarça, sentando-se. Continua a conversa de ocasião. Ela, nua, escolhe o enxoval do dia. E ele procura manter, ao longo da conversa, os olhos com os dela. Mas ela está nua! E o tempo não apagou, por completo, a vontade do um. O olhar dele acaba por descair. Era uma questão de tempo. Mais de oportunidade. A gravidade já fez os seus estragos naquele corpo. E, nestas coisas, o tempo é um aliado precioso. O corpo, com o tempo, assemelha-se mais a um mapa. Todavia, ele olhava-a além tempo. Era, ainda, um olhar de início. Sem mapas, estradas, curvas, trajectos sinuosos… Daí que ela lhe surgisse envolta naquele brilho, de há tantos e tantos anos atrás, e ele, de lábios ligeiramente entreabertos, não a olhava, olhava-se, sim, a si mesmo, num espanto interior perante uma revelação… Que idade teria? Ao certo não se lembra, apenas se recorda de conhecer a gilete há pouco tempo, mas vê-se, a si mesmo, sentado naquele sofá, com um tecido creme pontuado por umas cornucópias verde-escuras, à frente uma estante com pouquíssimos livros, no meio espaço para a televisão, era uma sala rectangular, pequena, apenas espaço para o sofá, estante, e, à sua direita, uma mesa redonda com quatro cadeiras. À esquerda, uma pequena varanda, transformada, como sempre acontece por estas paragens, em marquise. Provinha daí uma ligeira aragem. Bastante agradável. Esta não era a sua casa. Talvez a de um amigo. E foi aí, sob a leveza dessa aragem, que ela se lhe revelou. Apenas isso. Ele, lábios entreabertos, sem saber que postura assumir, e um desejo obstinado de gravar cada detalhe, mas apercebia-se do malogro dessa aspiração, tal o inebriamento do instante. E, neste exacto momento, ele apercebe-se de uma aragem vinda de tempo incerto. Não, aqui não há estantes de poucos livros, sofás com cornucópias verde-escuras, mesas redondas circunscritas por quatro cadeiras, nem marquises, mas persiste aquela peculiar aragem, tépida, agradável, que convida a olhar o presente de lábios entreabertos.

IV

Um silencioso e horizontal espelho de pedra

Seguem, neste momento, por uma estrada à sombra, ora de pinheiros ora de eucaliptos. Ele concentrado. Em silêncio. Ela, a seu lado, olha a paisagem. Apreciava aquele cenário. Bosques cerrados que dão lugar a campos agrícolas, longos vales atravessados por rios caudalosos, horizontes que prenunciam céus e alturas… Toda esta paleta, no fundo, se cinge a três cores: verde, castanho, e azul. E no ar, sempre, um aroma campestre e um sentir da terra. Ela cedeu ao momento, e abriu ligeiramente o vidro. Para compreendermos este seu gesto, temos de a conhecer melhor. Ela nasceu no litoral. Nos arredores de Lisboa. Aí foi criada, numa artificialidade própria da urbe. Mas essa foi uma paleta unicolor: ela só conheceu o azul. Afinal, cresceu com um só horizonte: de mar e céu. O mais, estruturas, sempre demasiado altas, de betão, vidro, e ferro… E quem cresce, apenas, voltado para a efémera inquietude do mar, acaba surdo à respiração serena da terra. Ela da surdez não se libertou. Todavia, o seu olhar despertava, em si, sinestesias adormecidas.

Temos, então, um casal dentro de um carro, no final de uma manhã. Ela enlevada pela paisagem, e ele pelo pensamento. Convém salientar, aqui chegados, que já, anteriormente, percorreram este percurso. Ele, mais vezes, é certo. Muito antes de a conhecer. Talvez por isso, o seu silêncio. E o silêncio é passado. Porque só se silencia quem olha para trás. Quem está em silêncio, nunca está no presente. O presente é, sempre, acto. Nada mais. Por conseguinte, nunca se poderá harmonizar com o passado, por se tratar de uma total impossibilidade. Quanto ao futuro, nada tem de silencioso. Ou de estrepitante. Apenas, porque o futuro ainda não o é. E ao não ser, não se pode classificar. Do futuro, apenas um anseio. Ou um temor… O mais é somente suposição. E isso não nos interessa. Interessa-nos, sim, compreender a génese daquele seu silêncio. Por vezes, mão no rosto. Uma mão inquieta, que agradece a aspereza daquela barba de três dias, como se lhe atenuasse o torvelinho do pensar. De certo modo, como se o aquietasse, ao relembrar-lhe a matéria exterior das coisas. Perto do destino, ela pousa-lhe a mão sobre a sua, entre uma mudança e outra, ele compreende, e devolve-lhe um sorriso. Por fim, pára o carro, diante de um muro branco, intervalado por um portão de ferro, preto, gasto, com um qualquer indizível de dor, oxidado nalguns pontos, talvez nos interstícios mais interiores, silencioso, como se compreendesse a sua função de vigilante imemorial do adeus. Ela sai primeiro do carro. Olha à sua volta. Mas, primeiro, inspira. Ela, simplesmente, não se cansa daquele ar fresco que cheira a terra. Como se, de alguma forma, renascesse a cada inspiração. Por fim, ele deixa o carro, e ladeia-a. Olham, lado a lado, durante um tempo ainda suficientemente longo, para o portão aberto, primeiro, depois para o interior, por fim, olham para si mesmos, e avançam. Transposto o portão, observam aquele quadro feito de sal, pedra, cera, e silêncio. Ele enfiara as mãos nos bolsos, a partir dali não sabia o que lhes fazer: afinal, que utilidade têm num lugar de adeus? Aqui e ali, vultos estáticos, numa inclinação dolorosa, como se perscrutassem um reencontro (sempre adiado). O sol, aquela hora, no seu ponto mais vertical. Incomodava-o a inclemência daquela luz. Como se, naquele contexto, fosse desajustada. Luz e silêncio são antagónicos, pensava ele. Continuaram a percorrer aqueles trilhos de terra batida, à sua volta apenas a crescente compreensão da efemeridade das vagas. Por fim, deparam-se com o seu destino. Duas campas discretas, lado a lado, como se irmanadas naquele horizontal adeus de pedra. Eles, ainda verticais, de olhares rasos, num mutismo do sentir, contemplaram aqueles rectângulos que se ladeavam. Duas datas, em cada um deles, prendiam o olhar: a da chegada e a da partida. De permeio, nada. E, no entanto, esse nada foi o todo. Eles sabiam-no. Sobretudo, ele. Afinal, partilhou uma parte desse mesmo todo. De certa forma, pertence-lhe: duas totalidades que se interseccionam. Agora, apenas um espelho de pedra. E as datas. E ele, em si, a memorizá-las, como se precisasse, mais com o olhar, ao mesmo tempo que se irava contra os balizamentos do social. Duas datas: parecia um bilhete tornado epitáfio; e da viagem, nem um vislumbre… Procurou os rostos, a luz turvava-os, mas conseguiu, neste preciso instante, ouvir-lhes a voz. O seu nome, por cada um deles. De olhos fechados, tudo mais vívido. Curioso, do filtro da memória, neste momento, diante do único irreversível abismo, apenas emergirem momentos de luz. Ele sabia o quanto haviam semeado para essa colheita. De alguma forma, naquele lugar de um adeus nunca cumprido, sentia-os mais próximos. Quase como o calor de uma presença. Mas no fim, apenas contempla as suas sombras, num horizontal silêncio. Deles, apenas ecos de vozes, de gestos, e de sorrisos idos. Nada mais. Sentia-lhes a falta. Sim, é inquestionável. A sua aceitação das coisas assenta no dogma de um reencontro. Nunca discutiu isto com ninguém. Nem se pode falar de uma fé. Para ele, trata-se de um princípio. Ponto final. Há necessariamente um reencontro. Como se de um diálogo, algures interrompido, se tratasse. Esta ideia parecia-lhe poética. Nunca procurou aprofundá-la. Bastava-lhe a sua superfície: um diálogo retomado no tempo, talvez com uma outra linguagem, talvez com um outro sentir. No fundo, este era o seu Sentido. E este lastro mitigava-lhe a angústia de um fim. O fim, em si mesmo, não pode ter um Sentido, pelo contrário: é o absurdo! Ressuscitava-os, agora, com mais veemência no espaço da sua memória. Tanto ficou por dizer. Não, é falso. Nunca fica muito por dizer: apenas o essencial… É aquilo que o tempo silencia. O verbo cede à voragem dos dias, e apenas comunicamos sobrevivência. E o que nos aproxima? Como esquecemos de descrever a luz que ilumina aqueles que nos aquecem o peito? Sim, ele teria de encontrar as palavras aquando do reencontro. Ela, a seu lado, aquém destes sentires. É normal, viajara menos tempo com eles. Neste momento, deu-lhe a mão, num silêncio de verbo. Contudo, ele preferia ter continuado a sentir por inteiro, mas não lhe afastou a mão. Sentiu as vozes a emudecerem, deixou de ouvir o seu nome, regressou aquela luz de olhares baixos, passos lentos, e de sombras suspiradas, mas sem lhe largar a mão. Apenas o fez quando se baixou, para, por breves instantes, colocar a sua mão sobre cada pedra. Ainda hoje, não sabe o porquê, mas compreendeu, num recanto se si, aquilo que sempre esvoaça da palavra… Só sabe que, ao levantar-se, sentiu uma leveza repentina no peito. De novo, de mãos dadas. Ainda permaneceram, por um par de minutos, diante das sepulturas. Há volta, apenas uma horizontalidade além palavra. Afinal, aquele não é um espaço de verticalidade. Dos poucos, neste mundo. Não há memória, dentro daqueles muros, de alguém olhar para cima. Sim, é verdade, ninguém se lembra, por ali, de tal coisa. Como se a gravidade se acentuasse. Talvez seja verdade. Por qualquer razão, todos inspiram profundamente antes de entrar. Como se cada passo simbolizasse um antagonismo da vontade. Não podia ser de outra forma. Afinal, esta é uma realidade paralela do quotidiano. Uma realidade que se quer esquecida. Circunscrita por muros altos. Não se vá escapar, e relembrar, diante do rosto de cada um de nós, a nossa temporalidade.

Por fim, o regresso. Ele, neste momento, perdido em si, a relembrar episódios descontínuos, fragmentados, anacrónicos; como se vidas se retratassem num revivalismo parcelar e difuso… Mas, e o passado? O que nos sobra, ao olhar para trás? Um pouco como quem sai de um jantar, com bons e maus momentos, e, no fim, ao levar as mãos aos bolsos, repara que lhe sobraram apenas três ou quatro moedas. É um pouco assim o passado: sobram sempre três ou quatro momentos: é o que nos cabe nos bolsos… Nada mais. Já dentro do carro, e após o baque familiar das portas, houve um indizível sentir de segurança: como se o micromundo deles se reajustasse e retomasse o seu normal fluir. Atenção: até este momento nada foi dito. Ele ligou o carro, o barulho do motor reforçou este sentir, o mundo retomava o seu trânsito quotidiano, a título de curiosidade, ela, neste momento, desce o vidro e contempla o céu, vira-se para ele e questiona: Onde queres ir agora? 

V 

Antes de falares, espera pelo meu regresso

Ele, antes de iniciar a marcha, ainda tem de regressar. Neste momento, estava com as ausências. Remexia aquelas parcas moedas, como se, de alguma forma, sentisse que, com esse gesto, as homenageasse. A verdade é que nunca vivemos a morte dos outros: em verdade, vivemos sempre a nossa. A palavra morte, fora as conotações poéticas, é sempre recepcionada com incómodo, como se uma súbita e indesejada fria corrente de ar. Não, não estamos vocacionados para esse tema. Carecemos, estruturalmente, de protecções, de ordem vária, na sua abordagem. Como se fôssemos insuficientes. Daí a relevância da religião, no horizonte humano. No fundo, a religião é a higiene da consciência. Nada mais. Ele, à sua maneira, tacteava, ao de leve, estes e outros pensamentos. No preciso momento em que virou costas àqueles símbolos pétreos de existências idas, algo se desestruturou em si. Como se sublevasse um sentir incógnito que lhe desarmonizasse o eu. Já havia sentido isto antes. Sim, com aquela partida. Inicia, agora, a marcha. Ele olha à volta: tudo de acordo com o seu pensar: não se vê ninguém: a demografia das ausências: sim, a única que só conhece a soma; e um vazio irrecuperável no interior de cada um. Ela, de janela aberta, inspira campo e de olhar nas alturas. Ao contrário dele, ostenta um aparente sorriso no rosto. Sempre gostou destes cenários rurais. Não nos esqueçamos da sua biografia. A novidade é o pão da alegria. Daí a ligeireza do seu estado de espírito. Se bem que, por natureza, não fosse de revirar e revirar assuntos. As questões, após se lhe apresentarem, não deixavam de se submeter ao crivo do pragmatismo. Por conseguinte, nesta óptica, há sempre duas possíveis abordagens: ou se resolvem agora, ou são tratadas a seu tempo (aquando da possibilidade). Sem mais. Aquilo que o silenciava, e que ele revolvia numa incessante busca por ecos de vozes idas, para ela, é uma problemática pertencente à segunda categoria. Ela ainda ostenta, neste momento, um olhar vertical. Nada a condiciona à sua actual circunstância. A sua fé está com o tempo. Sim, podemos falar de fé. Se há pouco tecemos considerações acerca do pão da alegria, podemos, agora, e sem qualquer equívoco, afirmar que a fé é a ordem da existência. Mas atenção, a fé dela está num contínuo devir. Como se, de alguma forma, a jusante se restabelecesse uma harmonia algures fragmentada. As ausências, para ela, são fruto das circunstâncias próprias das coisas. Para quê questionar? Compreendia-lhe a angústia, inclusive respeitava, mas o seu pensar obedecia a outras colorações. Ele, no entanto, apesar de perceber o desprendimento dela em relação ao acontecer das coisas, não aceitava. Com isto, não queremos transparecer que discutissem ou qualquer outra coisa. Enfim, posturas tão antagónicas face ao real, já se terão, com toda a certeza, digladiado em algum momento ido. Mas quem procura um companheiro, para a mais longa das viagens, compreende a importância de se harmonizar o silêncio com o verbo. Ele ainda com as ausências. De novo, a dor. Mas um instinto, como que um bálsamo, a despertar em si. Talvez o de sobrevivência que o impele, inexoravelmente, a sentir a pele enquanto fronteira do real. Sim, agora de novo ao leme do pensar. Apesar daquela nostalgia indelével pelos rostos subtraídos. E uma dor excruciante pela dúvida de um reencontro. A dúvida, sempre amenizada por um talvez, e suportada por uma fé com a lonjura de uma promessa. Será que...? Com o tempo, de certa forma, ele começou a compreender que o rio das questões amenizava o próprio desconhecimento. Como uma distracção que nos turva a verdade. Curioso: um caminho, o do questionar, que nos enleia da verdade: como alguém que, chegado a um precipício, senta-se, de costas para o abismo, acende uma fogueira, e assim fica, a aquecer as mãos, extasiado pela luz quente e dourada, enquanto uma brisa, nascida das funduras, se insinua nas suas costas, com melodias de outras paragens.

Ele ainda com as ausências. E o tempo. Sempre o tempo. Errado: a ideia de tempo só se enraíza, em nós, a partir de uma certa altura. Sem cair em generalizações, isso é para os tolos e especialistas (no fundo, sinónimos), a assimilação deste fenómeno ocorre entre a terceira e quarta décadas de vida. Após a assimilação, como é óbvio, ou se dá a maturação ou o refutar. Quanto à segunda hipótese, qualquer sociedade ocidental é pródiga em exemplares. Normalmente pautam-se pelo seu cariz excêntrico. Mas regressemos ao interior de uma viatura, que, neste momento, entra na recta que dá acesso a uma estalagem, ladeada por um lago de águas sonhadoras. Após saírem do carro, dirigem-se para um recanto fresco da margem. Como se não resistissem a um canto encantado vindo daquele reflexo de céu. Por fim, ela povoou o momento de palavras:

- Então, como te sentes. (É de notar, que ela formulou a questão sem o olhar. Como se sentisse, algures em si, remorsos por não partilhar daquele hermetismo férreo, da paixão pelas ausências; no fundo, por não ostentar um olhar horizontal.)

- (Neste momento, ele estava com as águas. Avistou, de novo, aquele vulto familiar no meio do lago. Algo sorriu em si, sem saber o porquê. Como se aquela figura, equilibrada no invisível, a vogar no impronunciável de uma doce lentidão, rumo a uma promessa só sua, lhe restituísse familiaridade, agora traduzida num sorriso; como se lhe despertasse uma súbita ternura, talvez por, toda a sua vida, aguardar por uma promessa algures por cumprir. Por fim, virou-se para ela, tudo o gesto eivado de uma certa teatralidade – não o fez de propósito, note-se –, inspirou, e ainda a saborear aquela lentidão vogante, respondeu-lhe num tom sussurrante e comedido.) Vazio. Pensei que, ao vir aqui, tudo faria sentido. Ou que, pelo menos, reencontrasse algo de mim. Mas não. Uma vez mais, enganei-me. Talvez por já ser outro. Ou por me ter distanciado em demasia de certas coisas. É estranho: reconheço os lugares, os cheiros, as coisas, mas não me reconheço a mim.

(Ela admirou-lhe a honestidade. De certa forma, já conhecia a resposta. Daí a questão. Gostava desta retórica, sempre rebuscada, que traduzia algo de singelo: a dificuldade inultrapassável de ele assumir sentimentos. Como se lhes fugisse. É de relevar, aqui chegados, que ele ainda não falou de uma mão sobre a pedra. Como se esse momento jamais tivesse ocorrido. E ela sabe que dificilmente esse instante receberá a luz do presente. Também deteve o seu olhar naquele vulto emergido das águas. Admirou-lhe o equilíbrio. Questionou-se acerca da rentabilidade da sua actividade. No fundo, qual seria? Pesca? Recolha de algo para fertilizar as terras? Teria uma família numerosa à sua espera na mesa diária? Denotava-lhe, sem saber porquê, a passagem do tempo. Talvez pela lentidão dos gestos. É estranho: uns veem poesia, outros o somar dos dias.) Anda para dentro. Estás cansado.

- Espera mais um pouco. Sempre gostei deste cenário. Tranquiliza-me. Sabes, sempre o conheci assim. Nada mudou, desde criança. É bom que haja lugares assim: onde as coisas ocupem os mesmos sítios. Como se fôssemos esperados. Sim, é isso, parece que nos esperam. E isso é cada vez mais raro. Não achas? (De novo, ela dá-lhe a mão. Ele agradece num estremecer de dedos. O diálogo prossegue, circunscrito a um entrelaçar de emoções, num lugar onde a palavra sobeja.)

Por fim, num passo lento, dirigem-se para a estalagem. Tanto foi dito naquele instante de silêncio e de dedos entrelaçados. Apenas, dessa forma, se compreende a dor. Porque só, assim, é possível comunicá-la. E havia tanta dor neles e entre eles. Como se os submergisse. No fundo, a dor é a noite da vida. Turva horizontes, mas ilumina essências. De repente, ele larga-lhe a mão e regressa à margem. A um ponto específico, por si conhecido, com sabor a infância. Ele aproximou-se de duas árvores, que se ladeavam, com as raízes submersas, e daquela moldura natural contemplou a outra margem. Assim ficou, durante alguns instantes, inebriado por aquele cenário de verde e azul. O murmurar das folhas, o canto suspirado das águas, e o aroma da brisa entardecida a Verões de meninice. Já ali estivera noutro tempo, talvez num outro eu. Mas o olhar com a mesma geografia. Em quantos lugares do mundo isto acontece? Ele não deixou de se aperceber disto. Daí o fascínio. Como se, naquele lugar específico, saciasse as saudades de si. Sim, nascemos um e transformamo-nos noutro. É a lei da natureza. No fundo, amadurecer é regressar. E a compreensão disto é sempre tardia. Ou nunca chega. Ele começava a ter vislumbres, entre aquelas árvores, que ainda se lhe afiguravam altas. O murmúrio das águas a evocar dias que continham a vida, num tempo que se arrastava na sapiência de um velho e que permitia olhar o momento… A outra margem: como se lá viver obedecesse a uma outra ordem, como se, sim, houvesse a diferença, o olhar se aquietasse, e o pensar não fosse um quadro com as cores da noite. Olhou as copas irmanadas, inspirou, e regressou para junto dela. Ela, de onde estava, compreendeu-lhe os passos. Não sabe explicar o porquê, mas pareceu-lhe ver um miúdo, com vestígios de brincadeira por toda a roupa, a luz da novidade no olhar, uma fisga a descair-lhe do bolso, a aproximar-se. Sim, um miúdo de horizonte cheio. Não lhe vislumbrou, durante aqueles passos, a inquieta sombra de qualquer ausência. Ali, de facto, só viu o todo.

No átrio de entrada da estalagem, sentada numa das sedutoras poltronas, estava uma senhora, com a idade do Inverno, um sorriso de Primavera, um olhar de Verão, e gestos de Outono. Folheava uma revista na indolência da tarde. Já se haviam cruzado. Enquanto ele pedia a chave do quarto, ela trocou algumas frases com a anciã. Ele esperou, de chave na mão, por ela. Não gostava desta sua verve. Ela sabia-o, mas ignorava. Continuou a dialogar com a senhora, que permaneceu sentada, desculpando-se com a idade. Ele não deixou de lhe apreciar a espontaneidade de diálogo, a facilidade com que apresentava assunto à mesa, o timbre de voz devidamente sintonizado com o interlocutor em questão, a própria e adequada animação dos gestos, o olhar embevecido da anciã, pelo súbito interromper da solidão, numa ânsia muda que aquele diálogo não se esfume assim tão rápido, apesar do chocalhar insistente daquela chave perto do balcão, a revista entretanto pousada na mesa, a mão que a convidava a sentar-se, ela a declinar na elegância do possível (Haverá mais oportunidades. Ainda ficamos por mais uns dias.), a regressar para junto dele, e a fulminar-lhe o barulho da chave com uma expressão elucidativa. Dirigiram-se para a sala de refeições. Eram dos últimos para o almoço. De certa forma, era compreensível este azedume da parte dele. Afinal, ele já não se lembrava de, entre eles, haver diálogos com olhares de Verão. 

VI 

Perdemo-nos tanto a olhar o longe, que não ouvimos a súplica perto

Quando, de facto, tudo começou? A razão de uma história está no seu final. Por isso é que são contadas desde que o tempo caminha sobre a terra. Dito de outra forma: ouvimos uma história, sempre, mas sempre, para lhe conhecer o fim. Esta é uma realidade irrefutável. Neste caso, e ao contrário do que se poderia supor, há questões paralelas, bem mais relevantes, que se sobrepõem ao términus. Por conseguinte, caro leitor pode sair já nesta estação. O final, neste caso, é de somenos. Interessa-nos a viagem, ou seja, a aprendizagem. E quando foi dado o primeiro passo de Henrique? A génese é sempre obscura. Deixemos as raízes das coisas e mantenhamo-nos no solo iluminado do mundo. A luz clarifica os gestos, o demais fica ao juízo de cada um. Henrique casou com Andreia, em Lisboa, na década de oitenta. Ele formara-se em jornalismo, ela em História. Haviam-se conhecido através de amigos comuns, numa, entre as muitas, esplanada da capital. Se não estou em erro, foi no final de uma aprazível tarde de Março, após a faculdade, que aceitou o convite de um colega para beber um copo, sabia de antemão o carácter político destas beberagens, havia, julgavam eles, um novo país para edificar, ideias para esclarecer, cores para definir, e, sobretudo, posições a assumir. Parecia-lhes, em certa medida, que o futuro lhes residia na palma da mão. Como se fosse algo de muito pessoal, que transportavam consigo, e, em qualquer altura, jogavam como um trunfo. O futuro na palma da mão! Não vale a pena falarmos em ingenuidade. Carlos, assim se chamava o colega, dissertava acerca do equilíbrio de forças políticas, como o melhor garante para a estabilidade social. Ele ouvia, mostrava interesse através de olhares e gestos redondos, mas o seu pensar viajava embalado no entardecer da cidade, naquele expirar espreguiçado, num movimento de regresso (em que direcção?), como se fôssemos esperados em algum lugar, sim, apenas isso, como se só nos restasse essa memória: a da espera. Porém, o lugar varreu-se-nos da lembrança. Daí este entardecido e contínuo regresso a um desamparo, velado por uma arquitectura social, que silencia questões e nos grita certezas. Mas as questões regressam, sorrateiras, após se fechar luz, como se repousassem no travesseiro, e, antes de cada sono, iniciam um bailado, simultaneamente hipnótico e angustiante, sem as cores do tempo.

Henrique continuava a representar o papel de bom ouvinte. E não é fácil fazê-lo. Carlos dissertava acerca da sua utopia. No fundo, é a única coisa que nos é possível. Falar em utopias colectivas é um erro grosseiro. Daí a contínua efemeridade dos ismos: capitulam devido ao ilusório lastro do colectivo. De facto, cada um procura o horizonte político onde ressoe mais de si. Dito de uma forma menos cândida: onde os alforges fiquem mais pesados. Daí as mudanças de cor… Henrique revia-se em alguns pontos elencados por Carlos. Mas havia outros que refutava por completo, embora mantivesse silêncio acerca desta sua oposição. Algures em si, achava que devia silenciar a discordância. Como se, de algum modo, pusesse em causa todo um projecto. Inclusive, a própria amizade. Sentia-o como um tabu. Vivemos, de facto, na era dos tabus. A aparente transparência é o seu solo fértil. Carlos estava inspirado. Continuava de verbo fácil. Henrique apercebia-se daquele preciso momento em que o amigo, inebriado pela vaidade, perdia o pé e elevava a voz, na esperança de um público nunca aparecido. Neste ponto, Carlos irritava-o. Havia nele uma assimetria de comportamento, consoante o contexto: como se tivesse uma máscara nos bastidores, e outra em palco. Perante isto, Henrique inferiu que jamais iria partilhar utopias com a incerteza. Não, gostava de sentir o solo sob os pés; preferia a discrição da plateia à luz ofuscante dos holofotes; optava, talvez pela educação, por um timbre baixo (como se, assim, iluminasse as palavras). A cada frase de Carlos, a distância adensava-se, como se estivesse num barco que se afasta, naquela peculiar lentidão marítima, do porto, e os laços do sentir acompanham os espaços da vista, até se romperem num regresso ao sentir de um peito ferido. Mas a ferida de Henrique, neste momento, tinha a cor da esperança. E não é menor. Pelo contrário: a esperança pinta-se de futuro. O que resta a um homem quando o futuro se turva? Regressar, por inteiro, ao presente, e, possivelmente, assomar a uma janela e contemplar o ido. Sim, é o que se lhe torna possível, enquanto espera por um vento na face com o sabor da lonjura. Carlos nem se apercebia da distância do amigo. À vista da esplanada desarmou um pouco, apercebeu-se da presença da namorada, que o esperava acompanhada da irmã. Temos de mudar de assunto (murmurou para Henrique. Esta frase soube-lhe bem, não pelo conteúdo, mas pelo timbre. Regra geral, ouvimos melhor aquilo que queremos dizer).

Uma esplanada ao entardecer citadino é um lugar além-tempo. Passado, presente, e futuro, povoam aquele espaço no singular de uma harmonia tacteável. Estavam a descer a rua, a umas dezenas de metros ainda, o suficiente para se formarem imagens (sempre possíveis e sempre efémeras) entre desconhecidos. Henrique já conhecia a namorada de Carlos. Uma rapariga pertencente a uma classe média/alta, cursava História, e havia entrado, recentemente, no universo da utopia política. Podia-se afirmar, sem qualquer temor, que as suas convicções iam bastante além das do namorado. É fácil ter-se convicções políticas sólidas, ou outras quaisquer, enquanto não se está familiarizado com a subtracção. Era de estatura média, morena, agradável à vista, mas ostentava um permanente ar de desafio, traduzido naquele narizito sempre levantado, que, à medida que se falava com ela, derretia qualquer vestígio de boa vontade dialogante. Por conseguinte, Henrique tornava-se cauteloso. Evitava aqueles temas polémicos, em que a indiferença não vislumbra entrada, por haver sempre tanto eu em jogo. Este saber adveio-lhe com o tempo. Compreendeu, com o devido custo, a similitude entre eus e ilhas. Por outras palavras, cada um tem a sua geografia, e nada se lhe pode impor. Sim, podemos falar de grupos, e, em linguagem insular, de arquipélagos. Nada mais. E esta sua compreensão das coisas, após muita esgrima verbal, levara-o actualmente a um silêncio ouvinte e a um falar pensado. No fundo, o princípio do saber. Sim, é sempre um princípio. Henrique andava eufórico com a descoberta deste ponto de equilíbrio social. Como se este insignificante pico de saber constituísse, por si só, uma das cúpulas do edifício da sapiência. Mas a vida é pródiga em esquinas, seixos, e aridez, assim, o apelo da realidade é uma constante. E a próxima queda é uma questão de tempo. Carlos, assim que viu a namorada, assumiu aquela expressão sorridente que traduz o sentir da formalidade. A namorada devolveu-lhe com o mesmo semblante. Henrique sentiu a omnipresença do formal entre eles. A espontaneidade diluíra-se dos seus gestos e olhares. Talvez seja uma relação pintada de ocaso, pensava ele, enquanto o seu olhar percorria a irmã, um ou dois anos mais nova, bebia um sumo, na procura de uma invisibilidade atenta. Sim, não escapara a Henrique o facto de ela, ao beber, não fechar os olhos. Interessava-lhe mais o mundo do que o sabor da bebida. Por fim, chegaram à mesa, e, após os cumprimentos, e a apresentação da irmã a Henrique, sentaram-se. A partir do indizível embaraço, de haver um casal de namorados e um outro de estranhos à mesa, o silêncio entrou num galope triunfal. De súbito, ninguém encontrava uma frase que pusesse termo àquele ensurdecedor e arrogante triunfalismo. Henrique olhava para dentro do café, como se na urgência irreversível do pedido, se bem que, o seu olhar periférico analisasse, pelo menos à superfície, Madalena, assim lhe fora apresentada a irmã, Carlos e Andreia entreolhavam-se inquietamente, o que indiciava o adiar de um diálogo de muitas frases… E Madalena, ainda com o copo, de certa forma, aquele silêncio agradava-lhe, como se fosse o seu habitat natural, talvez porque ela percebesse que, nesse espaço sem verbo, o desvelo de todos. No fundo, o verbo é a roupagem do eu. São poucos os que respiram, na presença de outrem, do silêncio. E Madalena comprazia-se desta cena. A irmã avisava Carlos, com o olhar, de que lhe queria falar a sós. Carlos compreendia que ela o censurava pela presença de Henrique – guerras de dias idos. Henrique incomodado por aquele interregno, talvez por Madalena ter preenchido o seu espaço natural, o de observar, interpretava o papel de cliente apressado. Foi com a chegada do empregado que se deu a retirada do silêncio e se recuperou alguma espontaneidade. Henrique ficou a saber (ou já sabia?) que Madalena estava em enfermagem. À medida que o verbo reconquistava território, o olhar soltava-se. Ali estavam os quatro, naquela esplanada entardecida, rodeados de carros, buzinares, pombos, e transeuntes apressados, com sacos, sem sacos, de jornal debaixo do braço, a fumar, de olhar cansado, de gesto lento, de sorriso nos lábios, de desespero inaudível, de andar teatral, ou apenas ruínas moventes…

Era latente uma certa tensão entre Carlos e Andreia. Assim, Henrique e Madalena encetaram um diálogo paralelo. Madalena ainda não descansara o copo. Este aspecto não escapou, uma vez mais, a Henrique. Embora daqui seja possível retirar uma multiplicidade de significações. Por conseguinte, a maior parte errónea. Henrique, neste ponto, equivocou-se. Pensou em timidez. Sim, era isso, precisava de um ponto de apoio. Estava longe. Se Henrique não estivesse tão preocupado com a sua performance social, e em deslocar o seu sentir para os outros, e num certo fascínio pela postura de Madalena, talvez se tivesse apercebido daquele traço de apreensão na sua testa, do olhar ligeiramente descaído para a irmã, num misto de temor e protecção. Carlos longe destas subtilezas. Aquém daqueles olhares comunicantes, de Andreia. Para Henrique, de súbito, o tema hospital afigurou-se-lhe deveras interessante. Madalena correspondeu, numa solicitude educada. O empregado regressou à mesa com um café (Henrique) e uma cerveja (Carlos). Assim que o copo readquiriu transparência, Andreia levantou-se, numa impaciência traduzida na sonoridade demasiado metálica da cadeira, dirigiu-se a Carlos, e pediu-lhe para irem ver uma montra próxima. Madalena sabia que montra era. Henrique começava a ver Andreia com cores claras. Colocou as mãos sobre o joelho, debaixo da mesa, para que o olhar de Madalena apenas se centrasse no seu rosto. Assumiu uma postura confiante, assente numa serenidade representada. Madalena, após a saída da irmã, pousara o copo. Este singelo aspecto escapara a Henrique, tão ocupado com a sua encenação. Ainda falaram durante mais algum tempo, de urgências, camas metálicas, batas brancas, acidentes, pré-operatório, anestesias, até que o assunto se esgotou, e quando ele esperava que ela o questionasse, de outra forma, que mostrasse algum interesse por si, ela não o fez, deixando-o assim encurralado. Nunca tal lhe havia sucedido. Aqui chegado, restavam-lhe duas possibilidades: insistir em hospitais (seria levar o assunto à náusea), ou mudar de tema (mas qual?). Ela fora deselegante ao não perguntar por ele. Ele olhou o tampo da mesa, e de novo via uma cavalgada pardacenta a ganhar terreno. Entretanto, ela comprazia-se a observar-lhe o embaraço. Era astuta. Sabia, há considerável tempo, que o assunto preferido de um homem é ele mesmo. Sim, foi uma rasteira vil. Talvez a irmã pesasse nesta sua dureza. Mas numa mulher inteira, esse lado de aconchego não é de sono fácil, e Madalena acaba por proferir a questão que o faz erguer a vista e recuperar os destroços de uma pose há pouco caída.

Entretanto, a poucos metros dali, mas a coberto de uma das, intermináveis, esquinas da vida, Andreia e Carlos assomavam à varanda do destino. Enquanto ela continha lágrimas, não era de ceder, as mãos dele percorriam-lhe os cabelos, num murmúrio de quietude, e, depois de lhe lançar as recorrentes questões (O que tens? Estás assim porquê? Diz-me o que se passa! O que te pôs assim?), de abraços de segurança, de mais dedos no cabelo, ela, sempre a olhá-lo, num tom distante, como se eivado de uma majestosidade ferida, explanou-lhe a situação, ele, numa primeira reacção, num espanto incrédulo, depois cresceu-lhe, demasiado rapidamente, aos olhos dela, uma impotência repulsiva (E agora? O que vamos fazer? Ainda por cima, nesta fase da nossa vida. Se fosse um pouco mais tarde. Mas logo agora! O que é que achas? Concordas comigo, não é?), que se transformou numa vil cobardia, Andreia desiludida, a desejar que ele não lhe tocasse mais, num sentir próximo do nojo, Carlos nervoso, a sentir o seu falhanço aos olhos dela, sim, compreendia a derrota, no fundo, a única vez em que, impreterivelmente, ela o chamara para a vida, ele num vacilar de ramagem ao vento… Só demasiado tarde, iria compreender que as raízes de uma mulher são profundas, como todo o feminino. E quem mergulha na vida, não se compadece com os viajantes da hesitação. De certa forma, ela não ficou surpreendida. Em verdade, são poucas as vezes em que tal sucede. Regra geral, na vida, as reacções dos outros acabam por simplesmente confirmar aquilo que insistíamos em velar. Talvez por culpa nossa, devido a um interesse social, económico, pessoal, conveniência de ordem vária, em manter uma relação que, subcutaneamente, sabemos pintada de malogro. E são raras as que ostentam outra cor. Por fim, dedos deixam de percorrer cabelos. Os olhos dela seguiam os carros, rua abaixo. Como se a vida fluísse naquele sentido. De certa forma, ela iniciava a compreensão deste fluir, como se estivesse direccionado rumo a uma inevitabilidade, como se tudo se precipitasse numa incompreensão sempre distante. Ele percebeu-lhe a lonjura. Sim, ela já estava com a distância. Quantas esquinas teria ela somado naquela tarde? Carlos ainda ali, de olhar ávido naquele rosto ausente. Ela virou-lhe costas e regressou para junto da irmã. Ele permaneceu onde estava, num estatismo inominável, submerso no caudal invernoso das emoções, a vê-la afastar-se (para sempre, gritava-lhe uma voz de si). O silêncio a tiranizar-lhe o sentir.

A uns passos da mesa, ainda iluminada por aquela luz generosa e cansada do entardecer, Andreia sentiu um estranho alívio. Sim, um latejar antigo cessara. É verdade, a dúvida insinua-se por uma janela, instala-se no nosso sótão, de vez em quando sai para passear, mas regressa sempre de madrugada. Sim, é uma inquilina indesejada. E, neste caso, não foi tanto a hesitação dele que a revoltou, mas sim aquela apatia balbuciada, como se ele fosse apenas presente. Quem é presente, não vai além da sua circunstância, ela, ao virar-lhe costas, já no seu tempo, a olhá-lo como um rosto ido, só, numa esquina da cidade, por não comparecer à chamada dos actos, de mãos nos bolsos, brisa de um fim prenunciado no rosto, ela altiva, a afastar-se, numa inexorabilidade sentida, assim que lhe voltou costas, talvez do movimento, talvez da forma como o cabelo ondulou, talvez do olhar dela, que ele, sem ver, sentiu, ecoou um para sempre pelo entardecer suspirado da cidade, ele teve de se apoiar na parede, não a seguiu, sim, estavam distantes, cada um no seu tempo, mas, naquela tarde, numa esquina da cidade, o silêncio reinou, e três destinos, sedentos da musicalidade de um verbo apaziguante, sucumbiram. Antes de se sentar, a mão direita passeou-lhe pelo ventre, um gesto nascido de fonte desconhecida. A sua vontade, naquele preciso instante, era ser um outro distante, que não tivesse de obedecer a convenções, em vez de reprimir o grito interior nuns lábios distendidos em forma de serena inquietude. Ela, agora, uma estranha para si mesma. Como se estivesse desdobrada, e sem saber em qual dos lados residia. No fundo, via-se nos dois, pelo menos em parte. Mas o todo, onde se encontrava? Como pode uma fonte imolar-se? Era assim que se balizava o seu pensar, mão direita sempre no ventre, o sorriso velado em forma de interrogação, e uma súbita pressa de partir (Para onde? Sim, para onde?), isso de somenos, o que interessava era sair dali, afastar-se, o máximo possível, daquela desilusão em forma de esquina sombreada, sim, mover-se, e, desse modo, perseguir uma ilusão de mudança (habitante do amanhã). Henrique, claramente, aquém de mãos no ventre e de nativos do futuro, de novo crispado com o súbito regresso de Andreia. Instintivamente, a olhar em volta por Carlos. Madalena, por seu lado, agradecida. Ambas se levantaram (Temos de ir), Henrique para Andreia (Onde está o Carlos?), uma pergunta que expõe a sua total impreparação no elementar campo das relações humanas, se atentasse em gestos e olhares, ou seja, nas entrelinhas da vida, talvez aí, sim, compreendesse mundo. Mas, ainda sentado, sem saber onde fixar o olhar, se nelas, praticamente de saída, ou na omnipresente ausência de Carlos, elas (Até a um dia destes!), ele levantou-se, num devagar surpreso, emudecido, uma mão ainda reagiu num aceno de adeus, as irmãs afastaram-se céleres, Henrique de regresso à cadeira metálica, na velocidade da derrota, de novo a olhar em volta, por fim, da esquina sombreada, emerge Carlos, ainda de mãos nos bolsos, num passo sem amanhã, sempre com a circunstância, aproxima-se da mesa, e precipita-se, numa das três cadeiras vazias, de uma forma lenta e desencantada. É curiosa a analogia nesta capitulação de ambos: um veloz, o outro lento, mas ambos derrotados. Moviam-se sob velocidades distintas, mas obedeciam ao mesmo sentir. Henrique olhava o amigo com avidez, sedento de um esclarecimento. Carlos ainda a recuperar daquele atropelo emocional, num lento retorno ao leme de si, para já, evitava o olhar de Henrique, mas assistia impassivelmente ao alvorecer de uma ideia no horizonte da sua consciência: Andreia tornara-se um rosto do passado. Algo, no olhar dela, o revelara. Ele, ainda sem saber bem como, compreendera-o, nesse mesmo instante. O que leva um homem, jovem, com pouca estrada da vida, a intuir algo com tamanha profundidade? Tornar-se na página da esquerda? Se estas questões lhe fossem colocadas, Carlos não saberia responder. Nem passados dois ou três anos. Numa outra perspectiva: Carlos detinha a resposta, mas ainda não a iluminara. Isso levaria o seu tempo. Um dia, ele irá compreender aquele olhar, naquela esquina de uma cidade entardecida. E, a partir de então, viverá sob o signo da vergonha. Antes de um último revirar na cama, de experienciar aquela leveza das angústias distantes, aquela esquina surgir-lhe-á, numa nitidez crescente, e ele proferirá palavras adormecidas, sim, é verdade, quantas palavras não adormecem no leito do nosso sentir? Mas aquele olhar não desvelou verbo adormecido. Aqueles olhos apenas espelharam um cobarde. Quando uma mulher assim olha um homem, ele compreende a imobilidade da margem, e a crescente distância da corrente. Este saber chegou-lhe tardio. Saber e oportunidade, noite e dia, estranhos desencontros de viajantes tão próximos. Assim se cumpriu um adeus. Ela não lhe voltou a falar. E ele nunca mais a olhou de frente. Quantas pessoas nos olham de frente? É uma contabilidade que cada um deve realizar. Se o resultado for volumoso, é sinal que se esconde da vida. Se, por outro lado, for escasso, é porque já deixou uma pegada nos caminhos do mundo.

Por fim, Carlos relatou a Henrique o diálogo silenciado nas sombras. Henrique, primeiramente, siderado com a lonjura da proximidade, sim, tudo tão perto do olhar, mas tão distante do compreender, de seguida, a questão ética, jamais a iria descurar. De certa forma, havia que ripostar pela ignorância dos acontecimentos. Como se, ao confrontar Carlos com a sua culpa, algo, em si, se saciasse – talvez uma sede infindável de fonte obscurecida. Enquanto Carlos, de mão agitada no rosto, soterrava-se em justificações, Henrique reanalisava o passado de há pouco, o nervosismo de Madalena, o regresso penoso de Andreia à mesa, a súbita partida de ambas, quase uma fuga, a invisibilidade de Carlos, nesse entretanto, até que emerge, de uma esquina entardecida, parecia mais velho, envolto num manto de cobardia culposa. Perdemo-nos tanto a olhar o longe, que não ouvimos a súplica perto.

 

VII 

Há noites que nos engolem a alma 

Nessa noite, uma questão foi partilhada por quatro. Cada um observou-a da única forma possível: à varanda da sua circunstância. Henrique, no seu quarto alugado, deitado de costas, olhava a ascensão vaporosa dos anéis tabágicos, enquanto revia, instante a instante, a estranheza daquela esplanada entardecida. Carlos, àquela hora, cumpria a formalidade do jantar familiar, absorto por uma questão, e esmagado por uma certeza: a da cobardia. Andreia perdia-se diante de um espelho. Olhava-se, sem se encontrar. Iniciava a compreensão do longe. Não, não podemos falar de encruzilhadas. Já a tinha transposto. Num lugar de sombra, ao contemplar um olhar desconhecido. Madalena, ao telefone, procurava fundos, junto de amigos, sob o pretexto de uma caridade, algures, por órfãos e desvalidos. Por vezes, era traída pela gaguez da inexperiência na culposa arte de mentir. O peso, regra geral, trai a fluência do verbo. Andreia, ainda com o espelho, contemplava-se de perfil, sim, claro, sempre o ventre. A mão direita, em movimentos circulares, pensava o possível: E se tudo fosse outra coisa? Mas o seu olhar, devolvido por uma superfície demasiado plana para incertezas, velado à possibilidade. A sua mão, agora, em círculos mais rápidos. Talvez sincronizados com a velocidade do seu pensar. Sempre a distância: ela, agora, viajante numa das carruagens de si. Como se embarcasse apenas para partir. Nada mais. Adormecer uma vida em nós! Haverá dor maior? Como se a vida, num repente, nos pusesse no papel de Deus! E como é agradável protagonizar esse papel. O problema é quando despertamos para a distância. Mas Deus constitui um problema maior para o homem, do que o homem para Deus. Aqui reside um dos grandes equívocos da humanidade. A consciência de Andreia adormecida, agora, em círculos sobre o ventre. Como se daí adviesse uma qualquer paz. Em verdade, ela nunca havia equacionado outra saída. A cobardia de Carlos apenas lhe aligeirou as coisas. E, no fundo, também não constituiu surpresa. Sabia-lhe as fraquezas há muito, por pequenas coisas: palavras ocas, acções estéreis, e gestos redondos. De uma outra forma: caminhava sempre longe do precipício. Só o faz quem receia a mudança dos ventos. E o vento acaba sempre por mudar de direcção. É uma questão de tempo. Andreia acomodara-se a esta relação. Nunca se sentira, verdadeiramente, apaixonada. A partilha de ideais, ao princípio, dera-lhe a ilusão de um espelho. Os pais, com o seu aval à relação, após a devida certificação da proveniência familiar do candidato, também alavancaram o compromisso. Mas público e privado são palcos distintos. E só um casal pisa ambos. Ao assistir à representação de Carlos nos dois, Andreia silenciava a sua perplexidade. À confiança pública, sublinhada com inesgotáveis opiniões, tão inatas do povo deste rectângulo Ocidental, contrastava uma timidez abúlica em privado, como se cada gesto de intimidade estivesse maculado por um sentido de culpabilidade inquisitorial. A princípio, Andreia atribuiu este temor à sua educação. Mas, com tempo, que tudo ilumina, até aqueles cantos da alma mais recônditos, apercebeu-se da mais singela verdade, de nome: inexperiência. O seu lado maternal enterneceu-se com esta descoberta, realizada no silêncio de si, sim, estavam num palco, e aí não há lugar para confidências, apenas para a representação. A inabilidade dele, nunca assumida, fazia-a sorrir. Aqui chegados, devemos sublinhar o facto de ela não se mover pelo desejo físico. Sim, neste particular, ele não a fazia tremer. Em verdade, entre eles, nunca houve arritmias, insónias, ciúmes, nem beijos sem amanhã… Formavam um jovem casal atípico. O que a movia era uma outra força, não menor: a curiosidade dos factos da vida – que nunca deve ser menosprezada. Quantas consumações não brotaram desta inclinação humana? Mas a curiosidade é uma força de curta duração. Assim que satisfeita, extingue-se na efemeridade de um sonho esquecido na madrugada. Com o tempo, pode-se afirmar que houve uma inversão de papéis. Ele, com o somar dos dias, à medida que se desprendia da timidez, assumia o protagonismo da iniciativa, ela, saciada a curiosidade, passou a fechar-se em recato. Sim, reinava a dessintonia entre eles. Nunca caminharam lado a lado nos trilhos da vida. Ou ia um à frente, ou era o outro a assumir-lhe a dianteira, olhares perdidos em direcções opostas, e, por fim, a velocidade do passo na desarmonia de um interior naufragado. Daí o desencontro, irreversível, na sombra de uma esquina entardecida. Ela, no fundo, não queria adormecer a vida que florescia no seu interior. Queria uma outra coisa: lavá-lo da memória. É algo bem diferente. Há momentos, geralmente de dor, que nos chamam para a urgência da vida. Foi o que sucedeu, naquele fim de tarde, quando ela vislumbrou aquele rosto a velar-se, olhos no passeio, e nem raiva sentiu. Aquela reacção apenas despertou nela uma tomada de consciência, até então desconhecida: a noção de tempo perdido. Nada mais. Quantos saberes dormem em nós? Talvez demasiados. E sempre por nossa insistência. Um momento na vida, e Andreia compreendeu tudo isto. Partiu célere dali. Arrastou Madalena consigo. Queria recuperar vida. Mas antes de tudo, havia que adormecer, para sempre, uma certeza em si. Há noites em que cabe uma vida. Esta é uma delas. Caminhar no equilíbrio de uma decisão tomada e na expectativa da concordância do outro. Era disto que se tratava, mas as emoções turvam as evidências ao protagonista. E Andreia aquém de tudo isto. Neste momento, olhava mais a porta que o espelho. A sua mão, agora, já se imobilizara. Sai do quarto à procura de Madalena, os pais sentados, na sala, a fruir da recém-estreada terceira telenovela brasileira, num pasmo de novidade, pelas cores ainda recentes no ecrã, pela frescura do sotaque, o tal português falado com açúcar, pelo materializar do futuro, sim, era o limite da novidade, no fundo, é sempre assim, a novidade é, em si mesma, uma fronteira, encontra Madalena ainda ao telefone, que leva instintivamente o indicador aos lábios ao ver a irmã aproximar-se. Andreia detém-se, na expectativa de respostas. Ainda levou o seu tempo. E sempre demasiado para quem o enfrenta.

Já a casa sustinha sonhos, pelo menos os dos pais, quando Madalena apresentou as possibilidades. Andreia regia-se sob o imperativo do tempo. Não havia muitas em consonância com tal desígnio. Sentadas na cama, iluminadas pela luz do candeeiro rachado da mesa-de-cabeceira, delinearam o futuro próximo. Andreia apercebeu-se de que, nem por uma vez, Madalena emitira um juízo. De certa forma, agradecia. Mas, no seu íntimo, buscava a aquiescência da irmã para a sua decisão. Por observações, perguntas, olhares, Madalena não se esquivava, pelo contrário, mantinha-se numa impassibilidade hermética. Debitava informações e possibilidades sem nada transparecer. Quantas palavras ficam por dizer numa vida? É claro que Andreia podia ser frontal, e colocar a questão sem rodeios à irmã, mas algo, em si, silenciava-se numa incompreensão espantada. Madalena estava do seu lado, era visível, mas não na totalidade. Sentia-o nas palavras por dizer e nos olhares viajantes. Andreia, por momentos, precipita-se em si, e os outros? Que sentença lhe conferiam? Os vários vultos de uma vida a desfilar à sua janela, os pais à frente, com um olhar de resignada desilusão (Foi esta a educação que te demos? Se foste mulher para umas coisas, assume agora as tuas responsabilidades! O que dirão os teus avós? Sinceramente, é isto que aprendem nas faculdades? No fundo, a culpa é nossa! É nisto que dá tanta liberdade. E os vizinhos, meu Deus, que vergonha! Tantos sonhos, tantas ilusões, para nada! Nem casados são. Trouxeste a vergonha para dentro da nossa casa. Mas pensa no inocente, que não tem culpa de nada. Vais matar uma vida. Não podes decidir tudo sozinha. E ele, onde está nesta hora? Aproveitou-se de ti, sua parva! Temos a nossa culpa, sim, sem dúvida, muita liberdade e muito tempo livre. O resultado está à vista. Mas reflecte bem no passo que vais dar, poder ficar com sequelas. Essas coisas nunca são cem por cento seguras. Fala connosco, por favor), como se ela lhes tivesse roubado uma forma de inocência, a seguir, no cortejo, os restantes familiares, avós, tios, primos, padrinhos, os mais velhos com a desaprovação no rosto, os mais novos com a indiferença, seguem-se os amigos, ostentam a compreensão, mas a fila é extensa, agora lugar para vizinhos, numa incredulidade espantada (Sempre tão certinha. Quem diria! O rapaz só lá entrava, em casa, na presença dos pais. Nem havia, entre eles, aqueles beijos escandalosos! Sempre tão atiladinha com os estudos. Já andava na faculdade. Cumprimentava toda a gente aqui no bairro, sempre com um sorriso. Não se esquecia de segurar a porta. Quem diria!), desta vez a Professora Primária, ostenta uma expressão análoga à dos pais (Sempre tiveste o teu quê de rebeldia. Aquele estranho equilíbrio que exibias sobre o limite das coisas, como se nos suspendesses sobre uma decisão irreversivelmente nascida de ti. Não, não me surpreendes. Lamento-o. Desta vez, não te equilibras sozinha. Cuidado com esse limite!), ela, pela primeira vez, baixa o olhar, há vozes que perduram sempre acima da nossa consciência, desse modo, nem vê um sujeito, de mãos nos bolsos, a passar debaixo da sua janela, encostado às paredes, com um andar cansado, como se um peso invisível algures, já passou, lá vai, ela agora levanta o olhar, não se apercebeu desta efémera figura, sim, já é passado, mas agora alguém sustém o seu olhar, firmemente, e num aquém-verbo comunica-lhe cobardia (Sempre foste a mais mimada. Nunca soube porquê. É curioso, por ser a mais nova, protegeram-me mais, mas uma protecção que, de certa forma, asfixiou a minha vontade. Como se tu fosses uma obra da natureza, apenas para contemplação, e eu o barro que eles pudessem moldar, segundo os seus desígnios. Não, não te censuro a escolha. No fundo, não se trata de uma escolha. Antes de uma inevitabilidade. Mas se não o amavas, este era o desenlace anunciado. Usaste-o para os teus caprichos, como veículo para sair de casa, idas a festas, prendas, cinema, lanches, agora és vítima, mas não única, de um vazio afectivo. Exploraste-lhe a fraqueza, e acabaste sua vítima. Mas não única, repito. Censuro-te, também, a velocidade. Uma sofreguidão que não pára para se debruçar sobre uma questão: E se eu abraçasse o destino? Não, já tens tudo delineado. É verdade, criaram-te para seres contemplada, daí a tua cegueira. Este episódio tornar-se-á, no futuro, uma obscura e empoeirada memória. Nada mais. Estarei ao teu lado. Sim, tenho o sangue aquecido com a tua provação. Embora não me adormeça o pensar), nada mais, Madalena passou lentamente pela janela, e seguiu o cortejo a uma certa distância.

VIII

Por onde pisa o pensar enquanto andamos pela terra?

O que se passa em nós quando caminhamos pelo mundo? Por onde pisa o pensar enquanto andamos pela terra? Elas iam pelo passeio, àquela hora matinal preenchido por um vai e vem de desígnios ocultos, num silêncio pensante, como se o verbo constituísse uma obscenidade, é possível que sim, há alturas em que um singelo murmúrio grita sempre demasiado alto. O destino sentia-se próximo. Afinal, a dor sente-se sempre antes de chegar. Ficaram surpreendidas com a rua. Nada a distinguia das outras. Os mesmos carros estacionados numa avidez caótica, os mesmos prédios de cinco ou seis andares, com uma aura de cavalheiro idoso ofendido, os habituais postes de iluminação, alguns detentores de uma escoliose aguda, talvez pelo esforço de trazer a luz ao mundo, a resiliência vegetal personificada nas poucas árvores visíveis, e, sem se aperceberem, diante do número metalizado da porta, o olhar de ambas a percorrer os algarismos, um a um, como se incrédulas, chegaram, há momentos que nunca esperamos viver, mas estes não viajam com o se… Madalena olhou a irmã, aquele olhar falante que questiona, sem a intromissão do verbo, Tens a certeza? Andreia sentiu o olhar e compreendeu a pergunta, mas preferiu manter-se com os algarismos metalizados, talvez se olhasse a irmã, naquele instante, algo em si vacilasse. Andreia avançou e o indicador direito pressionou o botão preto, redondo, do rés-do-chão esquerdo. Madalena assistia, como se não ali, mas num longe demasiado. Talvez numa incredulidade de janela aberta para as amenas brisas de terras ainda não sonhadas. A porta emitiu umas boas vindas metálicas. De novo, Andreia, à frente, a segurar a porta à irmã. Madalena seguiu-a. Curioso o facto de avançarem, prédio adentro, sem o despudor da luz artificial. Assim, subiram os três degraus da entrada, e viraram para o lado esquerdo. Estranharam a porta fechada. Nisto, ouviram a porta do lado contrário abrir-se. Perceberam o equívoco, comum a muitos edifícios deste país, esquerda e direita nem sempre respeitam a sua ordem natural. Depararam-se com uma mulher baixa, de óculos, não com um ar maternal, mas de tia, acostumada ao seu chá das cinco com os respectivos biscoitos de manteiga, que as olhava com um sorriso tranquilizador, Andreia, de novo na dianteira, estendeu-lhe a mão, a mulher baixa, de óculos, retribuiu, ao mesmo tempo que lhes dava passagem, Madalena seguiu a irmã num denotado passo de contrariedade. Contudo, havia, em ambas, um espanto sincero pela imagem de tia, de chá das cinco, da mulher. Esperavam, claramente, uma figura grosseira, de gestos bruscos, algures entre o talhante e o sinistro. As irmãs entreolharam-se, e, de novo, uma questão muda ente elas Ter-nos-emos enganado? Mas um segundo olhar ao chá das cinco, dissipou-lhes as dúvidas. Apesar dos gestos contidos, do semblante sorridente, do discreto acolhimento, assim que a porta fechada, o seu olhar, agora impúdico, desceu para as carteiras. Madalena, aí, apercebeu-se de um traço, naquele rosto, até então velado. Quanto pode esconder um rosto? Talvez uma vida… Mas aquele não era um rosto paciente, a gula é de passada rápida, antes de questionar qual delas, uma pergunta antecipou-se, providencial: Têm o dinheiro? Desta vez, Madalena deu um passo em frente, e estendeu-lhe um envelope, com doze notas de cinco contos, como se, com este gesto, procurasse, de certa forma, e sem saber bem como, proteger a irmã, apenas isso, aquelas coisas que se fazem e pronto, nada mais, só porque achamos que têm de ser feitas, e os outros compreendem a ternura muda do nosso gesto. Pelo menos, assim o julgamos. O chá, à vista do envelope, metamorfoseou-se em vinagre, indecorosamente abriu o envelope, à frente delas, contou, uma a uma, cada nota, com um indicador que se reabastecia de saliva na língua descaída. Terminada a contagem, e numa atmosfera mais densa, por um desvelar evitável, o agora vinagre Então, qual de vocês andou a brincar às cambalhotas? Assim que o silêncio engoliu aquela voz, num acto de misericórdia, o olhar das irmãs, num só, na direcção da porta, mas Andreia deu um passo na direcção oposta, apesar do olhar adormecido em algum canto de si, a mulher volta à carga Está de dois meses, certo? Madalena admirava a irmã, sim, não vacilava, perante aquelas palavras. Há palavras que, em verdade, apenas reconhecemos adormecidas. São aquelas que vivem no impronunciável de nós. E, naquele instante, Andreia defrontava-se com parte de si, como se o seu eu se desdobrasse num confronto, causa e consequência colidiam na exiguidade da entrada de um rés-do-chão. Mas esta era uma batalha silenciosa. Como ecos apenas as incessantes vagas das falanges, que não passavam despercebidas ao olhar condoído de Madalena. Está em jejum, certo?, de novo, aquela voz preenchia o espaço, com questões que elas encaminhavam para a cave. Andreia respondia de um só fôlego. Mas, o interrogatório continuou: É a sua primeira gravidez? Quantos parceiros já teve? Com que idade começou…? Madalena concluiu, com amargura, que não se expunha a intimidade da irmã, mas sim a sua alma. Talvez Andreia, na sua determinação, aquém desta realidade. Afinal, ela é que estava na arena. De súbito, a mulher, com os óculos cada vez mais descaídos, lança-se num discurso desbotado, oco, risível… Como devem calcular, não faço isto por dinheiro. A humilde contribuição que vos pedi, é para o material. Apenas e só. Não retiro daqui qualquer dividendo. Entendo isto, como um serviço social, que, no fundo, ninguém quer fazer. Este mundo não precisa de mais bastardos, de mais indesejados… No fundo, de infelizes está ele cheio. Nós podemos comprová-lo! Só vos peço que, para a próxima vez, tenham mais juízo. Sim, podem dar o meu contacto a quem precisar dos meus préstimos. Estou aqui para ajudar. Vocês são filhos da pressa. E quem acelera expõe-se às arestas do mundo. Não sei de quem teria mais pena… Se de vocês, ou se de quem já não vem. Sempre vivi de consciência tranquila. Sou profundamente devota. Deus deu-me este fardo. Aceitei-o com resignação. Alguém tem de ser porteiro do seu reino terrestre. Apenas o retorno do silêncio expiou estas palavras. As irmãs procuraram disfarçar uma longa e sentida expiração. Tudo se processou de forma natural, como se algures um ensaio prévio. Madalena sentou-se, enquanto a mulher se diluiu corredor adentro, secundada por Andreia. Entraram na segunda porta à esquerda. Madalena baixou o olhar. Olhou aquela carpete verde-escura, como se aí algum refúgio. Como se enganava! Talvez pela idade, ainda desconhecesse que não há refúgios do lado de fora. O seu olhar, agora, na janela. Embora o estore levantado, uma cortina rendilhada velava-lhe o exterior. Permaneceu sentada. Não, não havia forças para mais. À sua frente, uma mesa rectangular com duas ou três revistas demasiado fora de prazo. Nem as olhou. Por ali, não repousavam as verdades de sempre. De novo, o seu olhar na janela. Num súbito assomo de forças, ergueu-se e caminhou até àquele vestígio de luz. Uma parte de si, indefinível, regozijou-se pela crescente distância face ao corredor sombrio. Olhou a rua. Uma idosa passava, naquele preciso momento, debaixo do seu olhar, na lentidão de quem desaprende os passos. Parou para reabastecer pulmões e olhou para cima. Os seus olhares viram-se. Num primeiro momento, Madalena em pânico, mas pelo tranquilo sorriso que subia do passeio, deixou-se estar, e retribuiu gentileza da forma que pôde. A velhota retomou o lar, talvez fosse próximo, enquanto a observavam daquele rés-do-chão. Porquê aquele súbito alarme? Afinal, aquela era uma vulgar janela de um mais que repetido rés-do-chão. Estes pensamentos desaguavam incessantemente na efemeridade de uma consciência distante. Deixou-se estar, durante mais uns momentos, a olhar qualquer outra coisa, que não carpetes verde-escuras e revistas sem amanhã. Quem ali a visse, poderia considerá-la uma recém-casada, a desfrutar da sua nova casa. Sim, apenas isso. Mas se, porventura, soubessem… Que aquele é um dos lugares onde se fecha a porta do mundo. O seu olhar já não sabe onde. Reparou que, enquanto esteve à janela, nenhum pássaro pousou no parapeito. É verdade, há lugares onde os pássaros não pousam.

Madalena só se lembra de, ao olhar para cima, se confrontar com aqueles óculos, incómodos, que a observavam. Quanto tempo estivera ausente? O seu olhar já no relógio, percebe que não muito, os óculos num sorriso Não se sobressalte, está tudo bem com a sua irmã. Só está a descansar um pouco. Quer ir vê-la? Madalena sem resposta: nem verbo, nem gesto. Como se tudo constituísse uma impossibilidade, por si só. Ainda permanecia sentada, a olhar, com uma certa perplexidade, os óculos altaneiros, tolhida num aquém-gesto de fonte indómita, como se acordasse de um lugar povoado por risos brancos e pássaros pousados. Por fim, deixa o sofá, ao mesmo tempo que Sim, quero ir vê-la, mas… As palavras sempre insuficientes para o sentir. E ela intuía que a irmã outra. Pelo menos, para si. Olhava aquele corredor com um desprezo irreprimível, embora lhe reconhecesse a autenticidade, nem que fosse a do terror. De novo, os óculos: Quer ir vê-la? O cerco a fechar-se, o seu olhar na janela de há pouco, talvez um sorriso, por ali, à sua espera, num ténue equilíbrio, por fim, cede à insistência, e segue, corredor adentro, os passos daquele carrasco, à medida que caminhava, por aquela ausência de luz, parecia-lhe pisar a alma, e uma questão levantou-se-lhe: Iria reconhecer a irmã?

Repare-se que não é uma questão de somenos. Quão importante é a relevância de um gesto para um aproximar? A mesma que a de uma partida! Madalena cedeu a entrar, embora não por inteiro. Em quantos momentos somos um todo? Tão raros! Aquela divisão da casa estava somente alumiada por um candeeirozito, com uma tonalidade esverdeada, em cima de uma mesa de canto, no ar um demasiado aroma a éter, Andreia jazia numa marquesa, ainda adormecida, o rosto numa candura sonhadora, como se abrisse horizontes, quando, na realidade, acabara de fechar uma porta. Apesar disso, Madalena passeia-lhe a mão pelos cabelos, no irreprimível do sentir, uma gota brota-lhe da alma, e precipita-se-lhe no abismo do rosto.

Caminhavam, agora, pelo passeio, de novo, num amparo mútuo. Para trás, um eco ensurdecedor e repetido de uma porta a fechar-se. Quantos sons povoam uma ruína? Porventura as memórias de gestos por cumprir. Ambas persistem no pudor do silêncio. Talvez fosse melhor, já que os olhares gritavam tanto… A memória de Madalena ficara-se pelo gesto enternecido de uma mão passeante por uns cabelos adormecidos. A partir daí, correra para longe, e permanecera num lugar longínquo, apenas por si conhecido. Só assim suportava a vida. Sim, com a distância. E, nesse lugar, descansava de si mesma. O retorno fazia-se por um caminho crescentemente pedregoso e batido por um vento demasiado agreste, de nome realidade. Enquanto esperavam pelo autocarro, sentia-se-lhes o incómodo do estatismo. Como se a imobilidade fosse companheira do verbo. Mas, neste preciso final de tarde, cada uma permaneceu consigo mesma, numa súplica inaudível pela bênção de um esquecimento. Lavar a memória! Será possível? Se alguém observasse aquelas duas jovens mulheres, com a sempre necessária distância, talvez lhes compreendesse o peso. Não pelos rostos, mas pelo olhar. Como se tivessem perdido a alma num qualquer canto deste mundo… Andreia encostada à paragem, pelo lado de fora. Como se, de repente, também ela fizesse parte da paragem. O que esperava Andreia? Talvez a sua caminhada fosse a da espera. Madalena sempre a seu lado. Não, Madalena não fazia parte da paragem. Olhava à sua volta. O seu olhar, agora, num pedaço de natureza, circular, lastro de um abraço vegetal dos céus. Acompanha, com curiosidade, uma disciplinada fila de formigas de regresso ao lar. Antes, porém, a ordenada fila desvia-se para recolher os despojos de um habitante das alturas caído na eternidade poeirenta da terra. Havia algo de inquietante, nos, agora branqueados, globos oculares da ave. Como se um pânico gritado de vazio! Uma imobilidade irreversível perpassava-lhe pelo diminuto corpo. Nem vislumbre de asas e de voos. Como se da terra nunca se houvesse erguido. Madalena inquieta-se com a indiferença daquela fila militarizada na recolha dos haveres possíveis. Assemelhavam-se a saqueadores perante um despenhamento. Onde já vislumbrara um similar pânico gritado de vazio? De repente, a memória ilumina-se, enquanto o peito se lhe obscurece: no olhar da irmã, que caminha passos com o sabor da espera. O autocarro aproxima-se com uma indiferença monótona, porém, tudo se agita na paragem, à vista daquele profeta metálico, Madalena um passo em frente, Andreia ainda irmanada com a paragem, como se tivesse perdido o sentido do mundo, cumprem-se saídas e entradas com passos distintos, talvez compassados pela saudade do lar, Andreia, por fim, cede à súplica de um gesto demasiado insistente, sobe os incontornáveis três degraus, inicia-se movimento com o relembrar de equilíbrio, pelos vidros rasgados, a cidade acolhe a noite, respira-se regresso em cada luz acesa, no passo acelerado, numas chaves procuradas, na montra escurecida, num êxodo precipitado que despe a cidade anoitecida.

O serão decorreu normalmente naquele lar. A insistência do telefone era a única nota dissonante. Os pais longe daquelas conversas sussurradas. Nem estranharam o facto de Andreia se deitar tão cedo. Vivemos tão perto, mas estamos sempre tão longe. Aquela menina que, ainda há pouco, em jogos de meninice na rua, a sorrir-lhes o instante, como se não houvesse mais, eles embevecidos pelo milagre, sim, afinal, é disso que se trata, agora, a poeira a acumular-se nos rostos, e eles longe do eco de uma porta que se fechou.

IX

Se eu pudesse, por um dia, ver o mundo pelos teus olhos

É sabido que o mal marca sempre mais que o bem. Mas porquê? As respostas são múltiplas. Mas esta verdade subsiste insofismável. Nesta linha de raciocínio, podemos concluir que, o eco desta porta irá ecoar, nas profundezas de Andreia, até ao seu último ocaso? Sim, é uma forte possibilidade. Afinal, o bater de uma porta sobrepõe-se sempre à sua abertura. As velocidades também são distintas. Talvez porque o abrir seja tacteante, como se eivado de uma dúvida. Enquanto o bater, veloz, é a concretização de uma certeza. Daí o acelerar do tempo. Como se o movimento emergisse de uma carência: o encerrar de algo. É verdade, uma porta só se fecha quando outra se prepara para abrir. Há quem defenda que o tempo tudo cicatriza. Porém, o tempo é um rio. E só lhe sobrevive quem aprende a lição das margens. Dali, no entanto, só se avistam os escolhos. Talvez, pelo peso, se demorem na corrente. É que dos risos, nem ecos. Nada. Os risos são pertença dos ventos. Sim, diluem-se pelos ares.

Na manhã seguinte, a estudante de enfermagem valeu-se dos seus conhecimentos no auxílio da irmã. Andreia despertou com a inquietante frescura viscosa de uma hemorragia. Primeiro, o espanto da distância. De seguida, a consciencialização do acontecimento. Assim que viu a irmã entrar, uma longa expiração brotou de si. Afinal, não se podia levantar. Sem saberem muito bem porquê, havia um sentir de derrota entre elas. Como uma história imoral em que o vilão sai ileso. Nunca mais falaram de Carlos. De certa forma, Andreia sentiu que o expelira de si, diluído naquela hemorragia sempre demasiado escarlate. Como se um exorcismo líquido. Sim, um pouco isso. Madalena, por seu turno, apreendia as chagas da entrega. E, no fundo, a essência da feminilidade. Com o tempo, o telefone serenou. A estudante de História retomou os trilhos do passado longínquo. Afinal, o passado recente ainda uma dor demasiada. Quanto à estudante de enfermagem, regressou ao seu quotidiano, porém, a sua visão das coisas alterara-se definitivamente. Sempre olhara o outro com interesse, como um complemento do seu eu, talvez por se considerar incompleta, uma sensação nascida de parte incógnita, mas, no fundo, omnipresente em cada gesto por si esboçado, daí o esforço impassível de erigir pontes que pudessem atenuar-lhe o monólogo incessante de si, que lhe gritava repetidamente questões que não o eram, porque uma pergunta existe na medida de uma resposta, uma só existe com a outra, de outro modo, apenas despojos do pensar. Nada mais. Por conseguinte, Madalena bebeu avidamente o cálice da desconfiança. Não houve mais pontes. É curioso, o seu monólogo interior sossegou. Tal como as dúvidas. Como se uma dor demasiada e plural anestesiasse a sede de um sentir ávido por um mundo sempre pequeno.

Apesar do curso em comum, Henrique foi-se afastando de Carlos. Ou talvez não. Provavelmente terá sido o contrário… No fundo, a distância nasceu em reciprocidade. Tal sucede quando as partes se apercebem de que pisam solos distintos. Henrique não lhe perdoava a cobardia. De certa forma, a distância que impunha a Carlos constituía, sem se aperceber, um resíduo de fidelidade em relação a Madalena. Como se, imperceptivelmente, aproximasse um passo na sua direcção. É sabido que o sentir é sempre múltiplo. E, nesta linha de pensamento, podemos afirmar, sem qualquer erro, que Henrique queria rememorar-lhe o rosto, contudo, apesar das gradações, habita-nos sempre um ego, e este ditava-lhe uma imperiosa necessidade de se apartar, perante elas, da acção de Carlos. Apesar dos gestos expectáveis do social, durante uns dias, pensar e sentir num torvelinho veloz. Por fim, decidiu-se. A seguir às aulas, pela hora de almoço, encaminhou-se para a Clássica. Antes de Madalena, havia que transpor Andreia. A intenção – e como ele o sabia – era demasiado baixa, mas o resultado – sempre velado – seria frutuoso. Não a encontrou da primeira vez. Ainda pensou que, talvez, aquilo a tivesse derrotado, ou, pelo menos, obrigado a desistir por um ano. Mas, para haver certezas, decidiu regressar, desta feita, ao final da tarde. Nem de propósito, deparou-se com ela logo à entrada, nos degraus, atrás os heterónimos pessoanos eternizados na letra do mundo: a pedra. Observaram-se de uma forma inquietante, ou seja, no perscrutar das intenções do outro, enquanto isto, o verbo em filtro, mas uma certeza solar: aqui não havia coincidências! Ela desceu, degrau a degrau, enquanto o seu pensar tropeçava de questão em questão, ele, entretanto, procurava-lhe vestígios de hostilidade, não ousava avançar, receoso de ruir quaisquer possibilidades comunicantes. Porém, não lhe passou despercebido um ligeiro traço de derrota no rosto dela. Sim, as certezas haviam-na abandonado. Ela, agora, estava diante si. Era outra. Tinha, neste momento, à sua frente, uma mulher. Ele quase cedia ao calor da compaixão. Quanto sofrimento, dor, humilhação… Mas havia nela uma dignidade ferida, que lhe conferia uma nobreza restituída. Henrique intuiu a urgência de diálogo.

- Então, como estás? (Ao contrário do habitual, ele arrastou as palavras, não só para dar mais ênfase à sua aparente preocupação, como, também, para lhe compreender o estado de espírito.)

- (Ela sorriu, um sorriso simples, tímido até, inclinou o rosto para o lado direito, ao mesmo tempo que levantava o ombro. Enquanto isto, baixara o olhar. No entanto, era palpável uma certa satisfação por esta visita. Como se, o seu passado recente, não fosse um total engano…) Agora, está tudo bem.

De seguida, Henrique perguntou-lhe se queria tomar um café, ela acedeu, e dirigiram-se a uma esplanada próxima. Tal como da última vez, a cidade recolhia-se antes de um longo espreguiçar final. Curiosamente, ele não se sentou de frente para Andreia. Optou por ficar ligeiramente para a sua esquerda. Henrique não o fez intencionalmente, embora Andreia lesse, há muito, entrelinhas. Sim, não havia intenções secundárias nesta visita. Ficou agradecida por este facto. Pelo menos, com ela. Andreia esqueceu-se de Madalena. Há sempre algo que nos escapa – como a realidade é esquiva! À medida que a conversa fluía, Henrique apercebeu-se de qualquer coisa de majestosidade ferida, nesta nova Andreia, ali, de novo, diante de si. É curiosa esta constatação: como se ela tivesse despertado, sim, a circunstância alterara-se-lhe, daí os ombros descaídos, as frases reflectidas, um olhar sentido… Mas o passado é o nosso vizinho da frente. E intrometeu-se na conversa com uma naturalidade que deixou ambos desprevenidos no silêncio do constrangimento. Andreia olhava a mesa. Henrique sentia-se acometido por uma nova e inesperada vaga de compaixão. Sentiu vontade de se levantar e abraçá-la, de lhe beijar a testa, passar-lhe dedos reconfortantes pela face, sussurrar-lhe esperança nos ouvidos. Mas nada fez. Permaneceu sentado, a assistir, impassível, àquela náufraga que, diante de si, esbracejava num esforço hercúleo para permanecer à tona do seu sentir. Por fim, respondeu-lhe:

- Não, nunca mais o vi. Desde aquele dia. Sabes como é… Foi uma porta que se fechou. Aprendi que nunca conhecemos alguém por inteiro. É curioso: é sempre preciso uma situação-limite para o outro se revelar. (Não lhe passou despercebido que, à medida que as palavras lhe fluíam, ela erguesse o rosto e o olhar. Como se algo se reorganizasse no seu interior. No fundo, a compreensão das coisas não é mais do que o seu iluminar.) E tu? Têm-se falado?

- (A questão deixou-o suspenso. De todo, não a esperava. Ela limitou-se a ler-lhe o rosto. Por uns momentos, recuperou a coroa perdida. Por fim, ele lá encontrou uma resposta, que lhe saiu entrecortada…) Pouco… Sabes também como é… A vida… Sim, vemo-nos na faculdade, mas…

- (Ela já não ouviu mais. A repulsa ensurdecera-a. Diante dela, de novo, aquele rosto cobarde. É sempre a face o que perdura dos outros. No fim, é o que resta. Sim, rostos próximos e os gestos distantes. E uma memória que adoça e turva num escrutínio de que não fazemos parte. De certa forma, ela agradada com aquele balbuciar cauteloso.) Compreendo.

Como é estranha esta mão invisível que nos traz e leva os outros! Era-lhe inimaginável, há uns tempos, estar sentado, numa esplanada, com Andreia. E o espanto da fluência do diálogo! Falaram de trivialidades, num além-tempo, como se eles e o mundo se esquecessem numa grata reciprocidade. Foram os primeiros candeeiros os faróis daquele regresso.

- Já é tarde… (Não lhe passou despercebido o tom de pesar. Como se ela acordasse de qualquer coisa de bom. Ele opta pelo silêncio e refugia-se num sorriso. Assim, teria que ser ela a despedir-se. Mas o feminino é uma ilha. E ele ainda muito aquém de compreender essa insularidade. Ela, pura e simplesmente, obriga-o a uma confissão de intenções, com uma singela e trivial questão, enquanto se levantava…) Ainda vais ficar?

- (Neste ponto, perdido que estava na circunstância, ele, em verdade, não sabia o que responder. Demorou a regressar.) Bom… Se já vais, eu acompanho-te. Nem dei pelo tempo! (De imediato, arrependeu-se desta afirmação. Com quantas armas nos sentamos a uma mesa! Subtraímos a espontaneidade do nosso horizonte. Em que altura? Porquê? Levantou-se de ombros encolhidos e acelerou o passo, para o interior do café, com o intuito de pagar. Pelo menos, sublinhava o seu cavalheirismo. Ela permanecera, de livros na mão, no exterior, à sua espera. Assim que ele regressou, ela sorriu. Sim, ele era, de novo, emissor. Por vezes, um facto demasiado cruel! Como o escritor perante a ostensiva e desafiante folha branca. Havia que retomar o diálogo. Ele, na procura de algo, a enfiar mãos nos bolsos, ela a compreender-lhe a falência de recursos, e a decidir-se…) Acho que a minha irmã ia gostar de te ver. Não queres jantar connosco?

Há frases que nos adoçam o viver. Esta foi uma delas. Ele, primeiro, em sorrisos, só depois, em compreensão. Como recusar? Quantas vezes, numa existência, o vento nos adeja a vela do sentir? Através de um gesto, expressou a sua anuência ao convite. As palavras, demasiadas nesta altura, atropelavam-se. Daí a preferência pelo gesto e por um sorrir balizado.

Entrar em casa de alguém é, um pouco, como desvelar parte de uma interioridade. Porque é da nossa essência rodearmo-nos daquilo que somos. Por outras palavras, da nossa identidade. Alguém minimamente atento, ao entrar numa casa, passa a conhecer o seu proprietário. Este facto não era estranho a Henrique. Foi o pai quem lhes abriu a porta. O facto de Andreia não ter usado a chave, e optado pela campainha, não lhe passou despercebido. O pai estendeu-lhe a mão e, com a devida cordialidade, pô-lo à vontade. Henrique simpatizou tanto com a figura como com os gestos. Era um sujeito para lá dos cinquenta, informal, com uma distância segura das coisas – são os que menos se ferem –, talvez uma consequência também da sua biografia, seguiu-se a mãe na ordem dos cumprimentos, uma mulher observadora, daquelas que respeita a natureza, sim, sabe que tem dois ouvidos e apenas uma boca, pelo rosto percebia-se uma beleza anoitecida, embora fosse notória a atenção aos ventos da moda, por fim, já diante da mesa de refeições, Madalena. Dirigiu-se-lhe com uma expressão impassível, ele numa expectativa incómoda, e apenas um Olá seco, como se cumprisse uma obrigação social ou profissional. Ele devolveu-lhe o cumprimento com uma entoação similar, numa tentativa de ocultar um sentir descompassado, mas, a partir daí, estava refém daquele olhar. Rapidamente criou-se mais um lugar à mesa. Pelo que percebeu, durante a semana, como em muitos lares, o jantar era a única refeição que reunia a família. A mesa de refeições situava-se na sala, de facto espaçosa, rectangular, com uma janela de uma ponta à outra num dos lados, a decoração num excesso de plásticos coloridos, conforme nesta altura, estranha esta tentativa, nos anos oitenta, de fundir o futuro no presente, sempre o receio do fim, é verdade, a ameaça nuclear, o pós-guerras, o términus de um século, as previsões apocalípticas, mas roubámo-nos um futuro, daí o saudosismo de quem viveu nestes tempos, não pelo passado, mas por um amanhã que não se cumpriu. Regressemos àquela sala de jantar, rectangular, onde se colocava mais um prato na mesa, pelas mãos de Madalena, sob o olhar demasiado atento de Henrique. Um olhar percebido por Andreia. Antes de se sentarem à mesa, frases de circunstância, como se um interlúdio de algo relevante. Sim, a mesa tem um lugar central na história do homem. De traições a despedidas, os exemplos são vastos e cansados. Neste caso, temos um apartamento citadino, um serão de semana, à mesa cinco pessoas, o dono da casa num esforço palpável de etiqueta, pela família, mas sobretudo pelo estranho diante de si, a pensar na tarde do dia seguinte, na desculpa, médico, fisioterapia, revisão do carro, para não aparecer no escritório a seguir ao almoço, a olhar o casaco pendurado à entrada de casa, no pequeno embrulho depositado no bolso direito, que contém um anel, pago com aquela quantia que retirou do depósito a prazo, sempre o receio que a mulher perceba a subtracção, mas aquelas tardes, e depois há a adrenalina, isso não tem preço, conheceu-a no café, aquele ao cimo da avenida onde costuma almoçar, sim, trabalhava lá, um dia, entre a bandeja e a mesa, os dedos tocaram-se, a chávena entre o parêntesis dos olhares, de novo, em si, aquele sentir juvenil, é verdade, quem ama caminha para novo, as deferências aumentaram, certo dia, A que horas sai hoje? Ela a disfarçar o alcance da questão, com um aparente tímido inclinar do rosto, Às seis da tarde… Mas porquê? Ele Sabe, já a vi na paragem. Se quiser, tinha muito gosto em dar-lhe boleia. Ela entre o anelar esquerdo dele e um horizonte só por si vislumbrado, por fim, a decidir-se Se não for muito incómodo… Trocara, meses antes, a aldeia, a enxada, as missas dominicais, as vindimas, pelas mesas de um café da cidade, mas andava demasiado cansada, o barulho, os piropos grosseiros, um certo desdém pela sua pronunciação temperada de ruralidade, até que aquele cavalheiro, de gestos compreensivos, começou a olhá-la como se ela singular, sim, as mulheres são números primos, passou a andar de escova no avental, antes do almoço, uma paragem no espelho, já sabia que ele não gostava de canja, que preferia as coxas ao peito no frango, evitava os fritos, de facto, era um homem que se cuidava, e sempre com uma palavra simpática, fazia, também, questão de se despedir sempre, com um Então, até amanhã a olhá-la nos olhos. Há boleias que, por todos os motivos, não se podem recusar! Ele, na primeira boleia, cumpriu o trajecto rigorosamente, apesar do joelho dela próximo das mudanças, ainda lhe sentiu o calor, mas preferiu assim. Ela ocupava um quarto na casa de umas primas velhas, para os lados da Almirante Reis, ele estacionou o carro mesmo à porta. Antes de sair, ela Então, muito obrigado. Amanhã vai lá almoçar? Ele não perdeu a oportunidade, Não. Vou lá para a ver. Isto foi há uns quatro meses. Desde aí, multiplicaram-se boleias, encontros, sorrisos, e muito mais. Leonor, assim se chamava ela, trocou o quarto em casa das primas velhas por um pequeno apartamento no Desterro. Claro que ele impulsionou esta mudança. Também largou as mesas. Ele providenciou-lhe uma secretária vazia na firma de seguros. Assim, partilham o almoço, em vez de um servir o outro. Ele sempre foi um democrata! Há uns dois meses, deu-se o primeiro abalo na relação: ela com um atraso, ele com os nervos, ouviram-se gritos num apartamento lá para os lados do Desterro, recriminações, afinal, tudo não passou de um equívoco, os fluxos retomaram a sua normalidade, ela um pouco sentida, não, não era nenhuma golpista, longe disso, o que é que ele julgava? Assim, tiveram direito a um primeiro fim-de-semana juntos, nesta altura, lá por casa, Andreia e Madalena ouviram falar numa convenção de seguradoras, rumaram a Óbidos, passearam de mão dada por aqueles empedrados históricos, sim, é verdade, eles também escreviam a sua história… Enquanto a olhava, ele descobria-se. Afinal, quem era ele? Há questões a que só o momento pode responder. A mãe fixava-se em Henrique, e procurava compreender qual das filhas guiara os seus passos até ali. Sabia, por experiência própria, que, na maioria das vezes, quem nos guia os passos é a imagem de um rosto. Os dela também já obedeceram a uma face. É verdade que há muito, mas o lugar do sentir é nas margens do tempo. Quem achar o contrário, equivoca-se. Era filho de um casal amigo dos pais. Costumavam passar as férias juntos, dividiam o aluguer de uma casa de praia. Geralmente, Algarve. Enquanto os casais, eles de jornal na mão, elas sempre com as revistas, debaixo do guarda-sol, debatiam instantes de actualidade, os jovens passeavam, conheciam-se, e, acima de tudo, aceitavam-se. Ele teria mais dois anos que ela, ia para a tropa nesse Setembro. Uma noite, enquanto os casais à volta de um envolvente jogo de cartas, por vezes, para apimentar a coisa, puxavam da carteira e rolavam umas apostas, eles falaram de um gelado, saíram para a tépida noite algarvia, sim, cumpriram o gelado, houve mãos que se deram, beijos de luar, vontades confessadas, no regresso subiram àquele terraço com aroma a figos e alfarrobas, em baixo ainda as vozes das cartas, deitaram-se, primeiro, a ouvir os suspiros da noite, pareciam infindáveis, sim, uma noite de sul parece uma das portas da eternidade, de repente, com um beijo mais demorado, iniciaram uma viagem de rios e oceanos… Tornaram-se um. Diante dos pais, nem as mãos se davam. Preferiram assim. Sem a vigilância paterna, o mundo pertencia-lhes. Mas foi penoso o regresso desse Verão. O casal amigo a morar em Abrantes, ela com os pais em Lisboa, as cartas sempre aquém do desejo de o ver, e o Ribatejo tão longe, ainda por cima, a tropa no horizonte, num certo Sábado, pareceu-lhe ouvir a voz dele lá em casa, talvez parte de si ainda no território das possibilidades, não, era, de facto, a voz dele com a do pai na sala, passos pela casa, a mãe a bater-lhe à porta, Temos visitas!, ela a trocar possibilidades por factos, de sorriso no rosto, só regressou a si quando sentiu os braços dele a rodeá-la. Comprara uma moto para aproximar Abrantes de Lisboa. Nesse Sábado, não falaram de amanhãs. Sim, estavam numa margem, e olhavam-se, como se o mundo um lugar longe. Deixou-a em casa já as sombras provinham dos candeeiros, ela receosa, Regressas de noite, ele a pôr o capacete, os sorrisos agora mais desvanecidos, a moto a ligar-se, os gestos agora pesados, umas últimas frases sussurradas, ele a partir, ainda olhou para trás e, com um gesto de Adeus, desenhou-se amor na noite, por fim, uma esquina subtraiu-o do horizonte. Já Domingo conhecia o mundo, quando o telefone chamou por alguém. Ela, sem saber porquê, achou que o telefone gritava de uma maneira diferente. Ouviu a voz do pai sumir-se. Escutou, depois, uma mão tímida, demasiado receosa, bater-lhe à porta do quarto. Ela: Sim?! O pai abriu a porta, ela olhou-o e compreendeu. Nada foi dito. Quantas vezes as palavras nos morrem por inteiro? Não se lembra de mais nada. Nem de ter logo seguido viagem para Abrantes, de lá ter ficado durante dois dias, de saber em si uma dor demasiado excruciante, uma dor superior à de todos os outros, ainda por cima, uma dor invisível, porque sempre se dirigiam aos pais dele, Que perda lamentável… Tão novo… Todo um futuro pela frente… Ela tinha apenas a sua dor para abraçar. Nada mais. Quanto dela não ficou naquela estrada? Debaixo daquele camião? Talvez demasiado. Ainda se ouviu, por diferentes vozes, os analistas de ocasião, sim, há quem procure, por uma vida inteira, pelo seu público, que a mota em excesso de velocidade, por outra voz, o camionista gostava de parar na Ti Matilde e aviar uns quantos gargalos, dizia que, assim, ficava desperto toda a madrugada, houve também quem falasse de geada na estrada, ainda se aventou que um animal a atravessar, daí a tragédia…

Era a sua primeira despedida. Ela olhou o caixão, estava fechado, aconselharam a que assim fosse, cada um deve ser recordado como foi e não como partiu, depois podia impressionar, mas regressemos àquele olhar ávido, que permanece num terraço de sul, com aroma a figos e a alfarrobas, dedos que se entrelaçam, sussurros lentos melodiados ao ouvido, e algo se precipita de si, pelo abismo de uma face, sim, ela começava a aprendizagem do ido. Ia levar o seu tempo. Talvez o tempo de uma vida. Porque um despojo de si iria perdurar, para sempre, num terraço de sul.

Andreia vagueia por parte incerta. Os seus gestos, de certa forma, habituaram-se a uma mecânica que lhe permite corresponder, no imediato, às múltiplas solicitações do exterior (Um guardanapo, por favor, Passas-me aí o vinho, Vais à cozinha buscar mais um copo…), enquanto permanece numa qualquer janela, como paisagem apenas vidro, o mais desconhece, nem sequer olha, a apreciar a presença de Henrique, uma luz diferente naquele serão, admirava-lhe a espontaneidade contida dos gestos e a lisura das palavras, percebia o agrado dos pais nele, e interrogava-se pelo hermetismo de Madalena. Evitou o contacto visual com a irmã, não queria hostilizá-la. Hoje, sem saber porquê, sentia uma súbita leveza, como se aceitasse o seu lugar no mundo. A compreensão está sempre a montante do aceitar. E nem sempre a corrente aqui chega. Quando tal sucede, há quem lhe chame felicidade. Daí o sorriso esboçado por Andreia, da janela distante, a olhar um horizonte por se cumprir…

E Madalena? Por onde caminhava ela neste serão de semana? Ao ver Henrique entrar, casa adentro, ao lado de Andreia, sentiu-se desagradada. Talvez pelos últimos passos da biografia fraterna. Talvez pela leveza que ela imanava. Talvez pelo sorriso apatetado que ele ostentava no rosto. Talvez por si própria, que recorrentemente fugia do sorrir para evitar o sal no rosto. Talvez pela surpresa, de todo inesperada, e a memória que se ergueu diante de si, por aquele rosto ali, de um rés-do-chão de todo um edifício de dor. E a irmã em leveza, como se não tivesse sido ela a fechar uma porta. Não, havia coisas que não podia conceber. Cumpriria com a etiqueta. Nada mais. Porém, a curiosidade é uma velha inquilina do feminino. E Madalena não podia abafar os porquês que se atropelavam na sala do seu pensar. Ao longo do serão, sentiu os olhares da irmã, preferiu ignorá-los. Sim, queria respostas, mas não por ela. Considerava indecorosa aquela presença no serão familiar. Sobretudo pelo contexto do último encontro. Apesar da luminosidade tranquila daquela esplanada, só se recorda de trevas, embora se tenha apercebido da ignorância dele face às ocorrências. Mas será que ainda hoje ignora os gestos daquela tarde? Se não, é um intruso que ali está. Madalena aquém da longa conversa entre Andreia e Henrique. O outro sempre uma construção de nós. No fundo, a realidade é sempre nossa. Daí o abismo entre nós e o mundo. E com o abismo, a queda, ou melhor, as quedas. Sempre plurais, sempre múltiplas e recorrentes. Até que, um dia, nos questionamos: para quê erguer? Sim, é verdade, não nos cansamos de reerguer, apenas nos questionamos: para quê? De novo, o abismo inultrapassável: vivemos em nós, mas caminhamos pelo mundo. O vento no rosto, mas o sentir algures em nós; tangem-se lábios, mas aceleram-se corações; entrecruzam-se dedos, e uma harmonia desce; olhos que se olham, almas que se tocam…

E como estaria a decorrer o serão de Henrique? Desde que ali entrara, que o seu foco residia num rosto. O diálogo com Andreia diluíra-se há muito da sua acuidade. Assim como outros pormenores. Achara, de uma forma geral, os pais simpáticos. Contudo, se lhe perguntassem pormenores de outra ordem, por exemplo da casa, não saberia o que responder, embora, num dado momento, se tenha apercebido da decoração moderna, da amplitude da sala, do ambiente familiar descontraído, mas havia um olhar que teimava em lhe fugir. Se não fosse este singelo e relevante facto, talvez, quiçá, tivesse reparado numa lâmpada fundida no candeeiro da sala, que não houve uma frase, em todo o serão, trocada entre os pais, no hermetismo insondável de Madalena e numa claríssima hostilidade à sua presença, por fim, no olhar perdido e carente de Andreia que apenas ansiava por um gesto de compreensão. Pediria muito? Talvez o impossível… Sempre o abismo. Mas também Henrique pintava a sua realidade. Haverá alguém que não o faça? E esta noite será nuclear para a sua aprendizagem do mundo. Ele entrou de alma cheia, mas irá sair oco. Sim, Madalena nem o olhava, por outro lado, tratava-o na indiferença educada de quem cumpre o seu papel. A princípio, ele atribuiu à timidez, à medida que a noite avançava, ainda reflectiu acerca da memória dela, como estaria a relação com os pais, talvez uma discussão recente, ou uma indisposição de ordem física, por fim, enquanto se despedia, uma frase, suficientemente iluminada, perpassou-o a uma velocidade considerável: Ela não quer saber de ti… Foi Andreia que o acompanhou à porta. Madalena nem se despediu. A dada altura, entre a recolha da louça, as conversas que procuram relembrar a visita de se ir embora, deixou de se ver. Ainda pensou em perguntar se ela não se vinha despedir, mas conteve-se. Perdia-se em porquês, apesar de lhes conhecer a esterilidade. Antes de sair, voltou-se para um último adeus a Andreia. Algo demorou-o naquela face. Não soube o quê. Apenas sentiu o prazer do viajante que, após uma dura subida, compreende a relevância do horizonte. Sim, após o sonoro baque de uma porta, uma brisa cantada insinuou-se por uma janela. Sorriram-se. Ainda trocaram umas frases para alimentar um reencontro, que acabou por ficar agendado. À medida que se distanciava, passeio fora, daquele lar, uma sensação de estranheza desceu sobre si. Entrou com a omnipresença de um rosto, e saiu com o ténue vislumbre de um outro. É verdade: um homem carece de rostos, uma mulher de gestos. Henrique iria aprender esta verdade, mas a seu tempo.

Nessa noite, antes de se abandonar às asas do sonho, cada um, na solidão de uma última hora, vislumbrou-se com as suas pequenas grandezas e significativas iniquidades. O pai, enquanto sentia a respiração pausada e suave da mulher a seu lado, o pensar com Leonor, amanhã iria levá-la a conhecer um novo restaurante, esta promessa há muito repetida pelos seus lábios, de amanhã não podia passar, além do mais, um pouco agastado com aquele vizinho dela, morava no apartamento em frente, dizia-se artista plástico, mais novo do que ele, de certa forma, mais bem-parecido, e depois tinha aquela forma melosa de falar que parecia privilegiar a essência feminina, de facto, era um sujeito que não lhe agradava. Talvez esteja na hora de lhe arranjar uma casita maior, afinal, mais uma divisão nunca fez mal a ninguém. Pelo contrário. E hoje, ela não deu aquele toque familiar, só por ele reconhecido. O telefone num mutismo gritante. E como o jantar se arrastou! Não, de amanhã não pode passar. Também seria importante outro fim-de-semana fora. Onde seria a próxima convenção de seguros? Torres, Alcobaça, Caldas? Teria de escolher. Talvez opte pela Foz do Arelho. Uns passeios à beira mar são sempre revigorantes. E Leonor vai gostar. Afinal, provém de horizontes da interioridade. A escolha da zona Oeste, para estas fugas, não foi um acaso. Primeiro, é próximo de Lisboa. Segundo, não tinham por ali família nem conhecidos. Talvez se enganasse. É possível. Desde que caminhamos pelo mundo, temos sempre a possibilidade de sermos vistos. Neste exacto momento, por exemplo, ele julga a mulher adormecida. Engana-se. Ela também perdida no labirinto de si. Sabe, há tempo suficiente, que ele achou um novo brinquedo. É uma forma eufemística de se colocar o problema. O homem é sempre a criança que foi, sem nunca o reconhecer. A mulher, no entanto, deixa definitivamente de ser criança a curto prazo. Sim, uma vez mais, a selecção natural a ditar, neste caso, a maturação dos géneros. Percebeu-lhe a distância, sempre crescente, primeiro pelo olhar, depois pelos gestos. No fundo, não se importou. Sempre o olhou mais como um amigo íntimo, nunca conseguiu mais do que isso, apesar das privacidades, dos filhos, enfim, há coisas, com o tempo, que se tornam mecânicas, também nunca se recriminou por tal, uma vez que a instituição casamento foi-lhe inculcada como uma inevitabilidade, um imperativo, e ele, quando se conheceram, tão solícito, sempre com mesuras, um humor delicado, ela ria-se (e como isso lhe era importante!), deixou-se conduzir, quando, um dia, voltou a si, estava a contemplar-se, com um vestido de viajante celeste, a um espelho. Quantos passos para ali chegar? Talvez de uma forma mais correcta: quantos passos lhe recusaram para ali estar? A voz da mãe Estás gloriosa, minha filha! Não é um sonho? Ela a olhar-se ao espelho, e, sim, uma gloriosa lágrima a desenhar-se-lhe no rosto, e a espelhar um sonho de sul. Figos e alfarrobas aromatizaram os seus sentidos. O seu coração jazia para sempre naquele terraço iluminado pela memória. De si restou algo, indefinível, alguém que se apaixonou por ruínas, que olha esses testemunhos da história numa proximidade de diálogo. Não tirou a carta. Em verdade, houve coisas que nunca realizou. Como se lhe fosse impossível sorver a vida como um todo. É verdade, aprendeu uma distância segura do mundo. E o seu olhar nunca a mentiu. Sempre aquela tristeza a velar uma luz, outrora, promissora. Como censurar uma criança que se cansou de um brinquedo tão monótono? Um brinquedo, à partida, tão apelativo, mas que depois não cumpria, em nada, as suas potencialidades. Um defeito de fabrico? Talvez… Pode-se recriminá-la por virar a sua atenção para outro? Claro que não. De certa forma, estava grata pela distância dos gestos e a ausência do olhar. Como se, subitamente, lhe fossem dadas tréguas sob a forma de tempo. E como ela carecia de tempo para a ruína de si! Talvez, assim, encetasse um diálogo, algures interrompido, e reconstruísse qualquer coisa de possível… 

X 

Ansiamos pelo outro, mas as solas dos sapatos gastas obrigam-nos a cumprir velhas leis, que apelam mais ao observar que ao sentir 

A indiferença entrara demasiado cedo na vida de Henrique. A aprendizagem do invisível... É verdade, cedo provou o fel da vida. Há quem lhe chame maturidade. Antes ou depois, acaba por bater à porta de todos. Como se uma chamada da vida para o silêncio, cansada da histrionia estéril da juventude. Todos acabam por beber do cálice amargo. Uns compreendem-lhe o sabor. Outros vivem para esquecê-lo. E é um sabor tão simples, é apenas o gosto da finitude… Mas só compreende este sabor, quem tem uma alma nocturna. Regra geral, são aqueles que, na viagem, sabem da última estação. Reencontraram-se uns dias depois. Henrique sentiu dificuldade em romper aquele frio inicial, que precede o restaurar da confiança, o fluir do diálogo, em que apenas debitamos lugares-comuns, para ocultar uma essência envergonhada que correu a esconder-se no sótão de nós. Ansiamos pelo outro, mas as solas dos sapatos gastas obrigam-nos a cumprir velhas leis, que apelam mais ao observar que ao sentir. Quantos não desconhecem estes singelos factos dos relacionamentos humanos? E como Henrique se habituara ao posto de observador! Assim que se sentaram, talvez uns segundos antes, ele olhou à sua volta. Ela não se apercebeu. Ainda bem. Mas o que receava Henrique? Ou, por outro lado, o que procurava ele? Talvez a primeira questão se aproxime mais da resposta. Uma imagem perpassou-o vinda de uma qualquer obscuridade de si. A imagem de Carlos a sorrir, face à sua alegria diante de um despojo, que por ali deixara. Ainda uns instantes para se recompor, entretanto, Andreia já encetara um diálogo, que ele achava interessante, e, sem se aperceberem, os dois num outro tempo, uma vez que fruíam de um início. Cada um estava ali por inteiro, com os seus cumes e as suas ruínas, com a luz de Verão e as borrascas invernais e pardacentas, grande e pequeno, nobre e miserável, é tão raro estar assim na vida. Num estado de completude. Desvelado. Por outras palavras, a um horizonte do palco. Como se esse estar fosse uma premissa, jamais pronunciada, por eles, para aquele momento. Sim, é verdade, ambos possuíam uma alma nocturna. Havia, entre os dois, muitos gritos silenciados, e um mar de lápides por sonhos inconclusos, contudo, hoje, (Seria manhã? Seria tarde?) olhavam-se e brotava uma espontânea compreensão pelo indizível nocturno de cada um.  

Caminhar

I

Só se fala de trivialidades quando se cala a essência 

Ela pedalava na fúria do momento. Sempre a pior… Lá ia, colina acima, numa lentidão contrastante com o empenho. Regressava da escola. Porquê esta abnegação? Ansiava pelo lar? Carecia de algum rosto? Não. Apenas queria superar, rapidamente, o sofrimento crescente daquela subida. Tinha quinze anos. Era morena. Para o alto. E o rosto… Bom, possuía um desses rostos, na aparência indecifráveis, a que é necessário regressar, para mais um vislumbre, como se, ao regressarmos, nos aquietasse uma questão incómoda, para logo nascer outra… No fundo, era um rosto de província, com o anseio da novidade. Não, não era bonita. Ainda menos bela. Mas não se pode afirmar que fosse um rosto desagradável. Muito pelo contrário. Podia-se repousar nele o olhar, por largos instantes, com uma promessa demorada de luz. E era esse rosto, derrotada a colina, que contemplava o vale, povoado por milheirais, onde, perto do horizonte, se espraiava a vila que albergava a sua escola. Aliviou o suor do esforço, numa espontaneidade juvenil. Higienizada a palma da mão (as calças sempre foram além das pernas), manteve-se numa suspensão, debruçada sobre o guiador. Estávamos em finais de Maio. O tempo já anunciava Verão. Tudo, em seu redor, convergia numa emanação expectante. E a isto, ela não podia ficar indiferente. Sentia-o, de uma forma muito profunda. Como se tudo, subitamente, lhe fosse estranho: o límpido azul do céu, a brancura lenta das nuvens, a aparente dissonância dos sons da natureza – a caminhada das águas, o canto estival da cigarra, o lento conselho das ramagens… E ali ela permaneceu. A respiração aquietava-se. Se lhe pedissem, não o sabia explicar, mas aquele era único lugar que não lhe cansava o ver. Talvez por olhar tudo a uma distância de si… Talvez por ver de cima… Talvez por tudo, visto dali, sempre lhe surgir renovado… Talvez por ainda conhecer pouco do mundo.

Começou a ouvir vozes. Estava na altura de retomar o caminho. Eram os colegas da sua aldeia, ainda sem o privilégio da bicicleta, que se aproximavam. Ao contrário dos outros dias, hoje não esperou por eles. Porquê? Ela ainda não sabia muito bem o porquê. Antes de começar a pedalar, apanhou algumas amoras. Sim, estavam reluzentes. Como não havia reparado nelas antes? Afinal, o espírito sempre se sobrepõe a tudo. E o dela inquietava-se com um episódio ocorrido durante o recreio. Sim, talvez fosse isso que a impelisse ao caminho e a ignorar os colegas. Sim… Mas, eles nada presenciaram. Ignoravam, por completo, o sucedido. No entanto, ela já pedalava embalada pela doçura das amoras. Talvez para harmonizar o fel incessante dos seus pensamentos, que a aprisionavam num reviver incessante de uma cena que ela suplicava por esquecer.

Tudo se passara durante a manhã. Num dos intervalos. Há umas semanas que se tornara próxima de Vítor. Passaram a conversar em surdina e a rir estridentemente. Este era o primeiro ano de Vítor na escola. Era filho de um médico, que havia sido destacado para o hospital da vila. Dizia-se que provinham de uma grande cidade. A novidade sempre a atraíra. Mas Vítor, para ela, constituía mais do que uma novidade. Representava toda uma nova realidade. Desde a aparência, aos gestos, ao modo de se arranjar, a própria dicção, tornavam-no singular. Para ela, era como se lhe abrissem uma janela para os almejados horizontes… Não é necessário sublinhar que, para os outros colegas, sobretudo para os que eram da sua aldeia, estas deambulações suspirantes foram mal acolhidas. Ela não se importou. Passou a fazer o trajecto, de cinco quilómetros, entre a aldeia e a vila, sozinha. Afinal, ela é que ia de bicicleta. Oferecera-lhe o pai, há dois anos, numa manhã de férias. Primeiro, ouviu a campainha. Desceu a escada, correu para o quintal da entrada. O pai aguardava-a com uma bicicleta nova, que expirava feminilidade, a seu lado, apoiada no descanso. Ela percebeu num ápice, mas, ainda hoje, não sabe se foi a ternura facial do pai, o ar novo da bicicleta, o que mais a alegrou. Talvez fosse o todo. Afinal, um instante é a sua totalidade. E ela, embalada por aquele som metálico, no compasso acelerado da juvenilidade, mergulhou na segurança compreensiva do abraço paterno. Amava o pai. Mais do que a mãe. A questão do mais é sempre complexa. Porque nos reporta para as parcelas da soma. E em cada parcela subjaz uma razão. Mas, sim, e dito de uma outra forma, amava com mais intensidade o pai. É longa e cansada a comunhão entre mães e filhos e entre pais e filhas. Com a mãe havia um conflito permanente, como se, no indizível de um dilacerante silêncio, um grito de desespero ecoasse com a exigência de um só rosto feminino naquela casa. Afinal, só se fala de trivialidades quando se cala a essência.

Voltemos ao seu pedalar furioso. De que se alimentava? Sim, de uma cena ocorrida num dos intervalos dessa manhã. Mas o que sucedeu? Ela revivia, numa amargura crescente, e com uma dilacerante nitidez, cada momento. Ela saíra na urgência apressada do sentimento da sala. Vítor seguiu-a, numa hesitante lentidão. Como se cada passo correspondesse a um pensamento. Ela dirigiu-se, como se de um rito se tratasse, para o pequeno muro de pedra, debaixo de uns choupos. Dali podiam sentir o vale, atravessado pelo caudaloso rio nascido das nuvens de pedra, longe do estrépito inato de um recreio escolar. Mas, hoje, cada passo dele anunciava dúvida por aquele destino de sombras e horizontes. De súbito, ela compreendeu… Não, ela viu, sob a evidência sempre iluminadora, o que a doçura da ilusão sempre vela. Sim, ele não disfarçava um sentir, sempre traduzido no indisfarçável espelho do interior, algures entre a compaixão e a vergonha. Ela já o aguardava, sentada. Por um breve instante, apesar de fugaz ainda pôde sentir vergonha de si, procurou ocultar, numa obstinação visceral, a crueza fria da sempre impreparada realidade. Ele continuava a aproximar-se, naquela veloz lentidão de quem se quer afastar. Sim, já sabíamos. Tudo ocorreu sob a desencantada claridade daquela manhã de Maio. Porém, a dúvida há muito germinara nela. Afinal, a dúvida sempre foi planta de pretéritos há muito idos. Por fim, ele já estava próximo dela, a mão direita na nuca, a esquerda no bolso, o olhar na terra. Ela inspirou o que restava em si de dignidade, levantou-se, de olhar no horizonte (agora vazio), e retirou-se dali. Deixou-o só, mas pôde sentir, em alguma parte de si, o sempre suspirado alívio que ele sentira. Não se recordou mais nada dessa manhã. Tudo se passou para uma interioridade que procurava obnubilar um facto concreto. Porquê? Talvez por o orgulho possuir um vasto território da sua geografia interior. Daí a dificuldade de ocupação por estranhos naquelas paragens. Desde esse dia, ela nunca mais lhe falou. Mas, como quase sempre acontece, o verbo exterior foi a antítese do verbo interior. Por conseguinte, ela dedicou-lhe quase todo o seu pensar.

Mas foi no alto daquela colina, sob a clarividência do cansaço, entre o doce afago das amoras, que ela compreendeu. Sim, ela não suportava mais aquela máscara de compaixão, no rosto dele, ao olhar os seus toscos sapatos, como naquela manhã; ou as suas remendadas roupas, noutras ocasiões. Ela amava-o. Ou seria mais correcto: desejava-o? Como a um objecto de cariz simbólico? Afinal, Vítor provinha de sonhadas aspirações. Mas, como dissemos, o orgulho já é seu amo. E ainda tão nova! Há quem nasça com esta forma. Dizem que não costumam morrer novos.

Seja como for, ela não podia, por muito mais tempo, continuar a ler-lhe vergonha no rosto. Era-lhe insustentável! Não a podemos recriminar por isso. Sim, advém-lhe de um sólido orgulho. E aqui se delineava a sua trajectória futura. O eu sempre se iria sobrepor ao mundo. Iria viver num constante em si. As lágrimas, é bem certo, encontrá-las-ia sempre a jusante. Nem que fosse no cimo de uma colina ensolarada, numa tarde de Maio. Mas uma questão impõe-se: podemos recriminá-la? Se atentarmos no seu gesto a montante, ela deixou-o só no meio do recreio, porque o seu orgulho assim determinou. Dito de outra forma: não foi por ter concluído, sob a evidência da desilusão, que ele era fútil e snobe; não, isso não a faria demover-se; o erro dele, se assim o podemos definir, foi tê-la ferido na sua essencialidade, que é, simultaneamente, a sua força.

Pedalava, agora, ao sabor de um desinteressado regresso a um lar que nunca sentiu como seu. Nem no futuro, sentiria a sensação apaziguante de sentir-se em casa. Este sentir desperta cedo. Neste aspecto, podemos traçar uma linha divisória: os nómadas (são aqueles que se enamoram da circunstância, por outras palavras, são os que olham o tempo), e os sedentários (encantam-se com a familiaridade, de outra forma, são os que olham o espaço). Ela, claramente, pertence à primeira categoria. A paisagem repete-se, na monotonia de uma lógica extenuada: o horizonte pautava-se ora de campos agrícolas (por vezes, ouvia-se canto rouco e teimoso de um tractor), ora por pinhais, pinceladas de castanho, sombras e verde, com uma repetida promessa de frescura – mas a surdez estridente de um grito inaudível sempre a impeliu por sendas claras e familiares. Este temperado ar primaveril no rosto aquietava-a. Após a colina, o caminho perdia a sinuosidade. As curvas eram escassas. Ela, por vezes, fechava os olhos, apenas para sentir mundo. Hoje também o fez. Afinal, regressava sozinha. Sentir mundo… Sim, apenas isso. Nesses momentos, tudo ficava tão longe… Só o vento no rosto lhe era íntimo.

Aproximava-se do terreno dos pais. Oitenta metros de comprimento por quarenta de largura: tudo aproveitado num esmero nascido do saber da fome. Fome: não há palavra com mais sabor a morte. Como habitualmente, reduziu a marcha. Sim, lá estava ele, de costas para a estrada, pernas afastadas, tronco arqueado, e de enxada nas mãos. Sem saber muito bem porquê, ela sentiu a aspereza do cabo da enxada. Não que a tenha usado muito, mas talvez o suficiente para se lhe gravar nas palmas das mãos o significado da palavra suor. Ela parou. Encostou-se à margem da estrada. Ele continuava a cavar. Vestia um daqueles pares de calças que ostentava a geografia do tempo, uma outrora branca camisa desabotoada, e na cabeça pontificava uma boina que cheirava a sal e a terra. Raros são os objectos que comportam estes odores: sal e terra: o sonho e a realidade. A enxada continuava, através do seu movimento vertical, a trazer o céu à terra. De cada vez que subia, o cabo reflectia luz, para, logo de seguida, mergulhar na seiva da vida. Ela assim ficou, por uns instantes, sentada na bicicleta, a assistir àquele labor secular, agora protagonizado por seu pai. Quantas tardes daquelas teriam sido necessárias para a bicicleta? Ela, naquele momento, estava longe destas questões. Apenas se enternecia pela familiaridade da figura paterna. Puxou o descanso com o pé, saiu e encaminhou-se para ele… Mas, tão súbita quanto indesejada, uma evidência imobilizou-a. Evidência e lentidão são companheiras de viagem. Por conseguinte, esta habitava-a há muito. Ela cerrou os punhos, e afastou-se no silêncio do possível. Não conseguia erguer o olhar, se bem que nada visse. Retoma a marcha. Uma vez mais, neste dia, um pedalar furioso eivado de culpa. De quê? Sentiu a pior das dores: aquela que dói onde não se sente. De novo, a questão se impõe: porquê? No insondável de si, uma ténue luz aclarava uma dolorosa evidência: estivera a contemplar o seu pai, com a compaixão no olhar avistada, nessa manhã, no rosto de Victor…

Ainda olhou para trás, antes de mergulhar na curva que precedia a entrada na aldeia. Lá continuava o pai. Um difuso ponto no horizonte rural de uma tarde cansada. Ela olhou-o, e não se apercebeu da leveza, porque a culpa ficara pelo caminho. A culpa raramente termina uma viagem. Afinal, todo o viajante procura carregar apenas o indispensável. Porque olhara o pai daquela forma? Ela não sabe. Lá continuava a enxada, unificadora dos céus e da terra, a sua missão, num silêncio humilde. Ela já não viu, mas, por um instante, o pai teve de parar. Encostou a enxada a uma das pernas, e limpou o rosto com o lenço retirado do bolso direito. Já perdera, nessa tarde, a conta às vezes que puxara do lenço. De seguida, colocou as mãos nas ancas e arqueou-se para trás, na vã procura de aliviar uma dor há muito presente. Respirou fundo. Não olhou à sua volta. Nem sentiu uma brisa refrescante que anunciava ocaso. Foi surdo para um melodioso chilrear proveniente de uma sombra próxima. De novo, a enxada. Sim, também estava além da dor. Se atentássemos bem no seu rosto, apenas assim, víamos a ténue linha que anuncia sofrimento. 

 

II

A vida é isso: olhar, como se primeira vez, o que outros já carregam na memória

Nesse final de tarde, ela apercebeu-se, ainda na bicicleta, de que devolvia às coisas o indesejado olhar sentido na manhã. Entrou na aldeia, como muitas vezes sucedia, atrás de um carro de bois (estranha expressão: carro de bois! Uma tosca carroça de madeira arrastada por um bovino de olhar suplicante e dorso enlameado). Não o ultrapassou. Aproveitou aquele compasso ruminante, para organizar pensamentos e aclarar emoções. Só perto da capela, é que se apercebeu das duas crianças sentadas nas traseiras da carroça. Um rapaz com os seus doze anos, e uma rapariga talvez um ano mais nova. Olhavam-na com a curiosidade do espanto adicionada à mesquinhez aldeã. Uma forma singular de olhar a realidade. Como alguém que se depara com uma vasta paisagem, mas obstina-se com a sua sombra. Há muito que ela conhecia aquela expressão. Olhou as crianças com o rosto de Victor. Elas permaneceram impassíveis. Como se não se apercebessem. Talvez fosse por aí... Lá continuavam, sentadas, sujas, numa resignação útil pelo que a vida lhes proporcionava. Ela não aguentou mais, e ultrapassou. Até chegar a casa, ziguezagueou por entre os excrementos depositados no alcatrão. Ela começava a partir sem se aperceber. Isto sucede quando olhamos o quotidiano como se fôssemos um outro, distante, porventura mais velho, de uma outra vida…

Morava numa típica casa de aldeia. Fachada principal para a rua, quintal nas traseiras. Nada que destoasse do conjunto. A mãe estava à porta, segurava um coelho pelas patas traseiras, com a outra mão ia-lhe batendo na nuca com um madeiro. O seu gesto revestia-se de uma naturalidade doméstica. Falava com uma vizinha, que se apeara da bicicleta. Ali estava ela, num ameno diálogo, e assim que passava para o papel de receptor, aplicava nova pancada na nuca do desesperado coelho, que se contorcia num sofrimento inaudível. Ela parou, a uns metros suficientes, para observar a cena, a coberto da discrição. Mãe e vizinha num diálogo de trivialidades, talvez ocorrências do dia-a-dia, e nem um olhar para a vida que se extinguia na mão de uma delas. Por fim, após mais uma pancada, uma imobilidade fria, irreversível, pétrea, reconhecida, desde sempre, por todos os seres na terra: e a luz extinguira-se, de vez, dos olhos do animal… Agora, só espelhavam o horror do vazio. Não podemos, aqui chegados, falar de horror. Nada disso. Ela presenciou esta cena, e outras similares (o galo de pescoço degolado num andar de exterior de taberna, na cegueira de uma esperança do momento; o grito que se lhe gravou na pele, de tão humano, vindo da pocilga em véspera de certos feriados) incontáveis vezes. Sim, sempre sentiu, numa profundidade de si, um certo desconforto. Mas o horror implica sempre uma virgindade no olhar: um espanto feito acto. E ela não se espantava, apenas um incómodo persistente nas funduras do seu eu.

Ela, por fim, aproximou-se, na hesitação da incerteza. A mãe cumprimentou-a numa desconfiança sublimada, talvez se tivesse sentido observada. A vizinha, por sua vez, dirigiu-lhe o cumprimento guloso – de quem procura saber sempre algo mais. Ela retribuiu-lhes sob o escudo da educação. Sempre a melhor forma de contornar os enviesamentos sociais. Entrou para o quintal. Sentiu, uma vez mais, aquele olhar peculiar da mãe recair sobre a bicicleta. Várias vezes o sentira sobre si. Era um olhar transparente, apesar do peso. Embora a transparência seja sempre uma aparição. Ela suportava o peso. Não protestava, não ripostava… Nada. Apenas silêncio. Talvez conhecesse muito bem a mãe, e se apercebesse de que o silêncio a ferisse ainda mais. Talvez… E naquele olhar lia-se a destruição irreversível do objecto. Como é evidente, não é só o objecto em si mesmo, mas toda a sua extensão simbólica. Mas isto era a sua leitura. Talvez a mãe estivesse longe destas intenções. Talvez ostentasse um olhar de final de dia. Talvez olhasse a bicicleta com uma crescente preocupação materna. Sim, talvez fosse isso. Mas cada uma vivia a sua realidade: a dos seus pensamentos. E enquanto houver homem, cada um viverá, a sós, no seu mundo. Nele amanhece, vive, e sonha. O resto são tentativas efémeras de evasão.

Após arrumar a bicicleta na adega, cumpriu com as suas obrigações domésticas. Foi ao celeiro buscar uma saca, já encetada, de milho, e dirigiu-se para o galinheiro. Sempre a surpreendeu, como aquelas aves, de cabeça diminuta, conheciam a hora da refeição. Atirou-lhes o milho, e elas, numa sôfrega precipitação, acorreram para a entrada. Paradoxalmente, os ímpetos iniciais deram lugar a uma lentidão analítica no observar do solo, de forma a perscrutar onde os grãos de milho aterravam. Ela ficou a olhá-las, da cancela. No fundo, achava-lhes graça. Cada pescoço com o seu compasso particular de movimentos. Como se sintetizasse aí a sua individualidade. A cansada afirmação do galo. As lutas, os cacarejos, a efemeridade dos voos (aves amputadas da sua essência), o constante esvoaçar de penas… E ela, a cada final de tarde, contemplava, com o sorriso da novidade, aquele microcosmos. E bebia, aí, uma crescente compreensão do seu mundo. Inspirava, agora, entardecer. De seguida, pegou num balde, carregado de restos de frutas, e serviu os porcos. Também estes conheciam a hora da refeição. Como se refeição fosse sinónimo de sobrevivência: algo de transversal no código genético de todos os seres vivos. Lá se arrastaram eles, ritmados por aqueles grunhidos peculiares. Ela já não lhes passava a mão pelo dorso. Aqui se denota a crescente distância. Ao entrar na cozinha, a lareira, como habitualmente, já crepitava. Ela gostava daquele cheiro. Encostou-se à parede, para sentir o calor, de olhos fechados. Um dia, bem mais tarde, também encostada a uma parede, fria de lágrimas, lembrar-se-ia desses momentos de luz e calor: e a palavra lar soar-lhe-ia cada vez mais distante.

De seguida, recolheu-se ao seu quarto para cumprir as obrigações escolares. Antes disso, contemplou-se ao espelho, na intimidade singular da sua essência feminina. Assim ficou, durante a necessidade de reencontrar um vestígio de si na imagem desdobrada, até a memória quebrar o encanto através do olhar comiserativo de Vítor.

Correu para a janela, assim que ouviu a campainha da bicicleta do pai. Lá vinha ele, mão direita na cordialidade de uma saudação, para um vizinho que passava, com um carrinho de mão cheio de feno. Apeou-se à porta de casa, o vizinho também aproveitou para descansar. Daí à política sussurrada, bastaram duas frases. Ela desinteressou-se da cena. Não lhe interessava o tema. Mas pareceu-lhe que estavam tão distantes… Porém, bastava-lhe descer a escada, abrir a porta, para os ladear. Permaneceu atrás do vidro, enterneceu-se, de certa forma, ao contemplar os esforços diários, do pente paterno, em mascarar a aridez desmentida pelas alturas. À medida que o diálogo se desenrolava, apesar dos sussurros, percebia-se o ruborescer paterno e a crescente velocidade dos gestos. Já lhe conhecia as frases, como se tivessem uma ordem encadeada para entrar, até adivinhava, pela expressão do receptor, qual a última que acabara de ser proferida. Olhou à sua volta. Não se espantou pela estranheza que lhe alimenta o olhar. Afinal, não era a primeira vez. Sim, o espanto é sempre um estado virginal. E este seu olhar, um velho companheiro de viagem, está eivado de uma distância, como se soubesse que não pertence ali. Detém-se, agora, a olhar especificamente certos objectos. Apesar da repulsa, insiste: aquela Última Ceia, em relevo, ligeiramente inclinada, que a mãe havia comprado numa excursão a um desses lugares da fé popular, ainda se lembra, no regresso, do orgulho desmedido com que ela segurava o objecto, embrulhado num tosco papel pardacento, o espelho rachado, embutido numa moldura demasiado trabalhada para o singelo bom gosto, sempre longínquo, como se o vislumbrasse de uma outra margem, ou vida, e ali jazem, naquele final de tarde, na casa da aldeia, de repente, um estrépito fá-la regressar, apenas um insecto que embateu no vidro, era corrente, mas ela observa tudo já de uma margem…

Entrou na escola ainda com as sombras por despertar. Queria chegar cedo. É o que sucede quando a leveza do sono se emaranha no aqui. Porém, nada ficou por cumprir: leite fervido, animais alimentados, sim, por vezes, tornava-se uma divindade sob certos olhares, lareira a crepitar, e o portão fechado no vagar do silêncio. Hoje não havia vestígios, no pedalar, da fúria pretérita. Pelo contrário, ostentava um pedalar cadenciado, como se cumprisse um tempo muito seu, porém, sabemos nós, é uma cadência com génese na dúvida. A escola já se encontrava aberta. Não se admirou por não ser a primeira a chegar. Há sempre quem se nos antecipe. A vida é isso: olhar, como se primeira vez, o que outros já carregam na memória. Apesar da hora, já se cumpria a essência de um pátio escolar. Antes de puxar o descanso, mãos ainda no guiador, e uma frase do jantar vespertino, proferida pela mãe, claro, a ressurgir à tona das suas preocupações, Parece-me que hoje alguém te relembrou para não olhares longe, como se, através daquele diminuto conjunto de palavras, a mãe sintetizasse a deriva do seu sentir. Por vezes, parecia clarividente. Isso assustava-a. Ainda por cima, a expressão que acompanhou o proferir da frase, algures entre um certo gozo e o tom de desafio sem réplica, esmagou-a de encontro à evidência de uma fria derrota – verbalizada através da culposa e envergonhada compaixão de um olhar. Parece-me que hoje alguém te relembrou para não olhares longe, de novo em si, e mais uma vez, e mais outra, ela a abrir os olhos, sim, não suportava mais ecos, como se pulmões de regresso à tona de água, a mãe asfixiava-a, talvez por sabê-la mais inteligente, aquele seu olhar, enquanto descascava uma maçã, por exemplo, simultaneamente distante e tão à flor das coisas, preenchia uma divisão, era-lhe, de todo, insustentável permanecer por muito tempo no mesmo espaço que a mãe. Andava, no seu próprio lar, numa fuga constante. Que paradoxo: no espaço de um lar, haver caçadores e presas! Onde todos se deviam sentar a uma mesa, haver perseguições e fugas… Apesar de tudo isto, respeitava-a. É natural, a mãe, quase sempre, acertava nos seus ditames. Antes de se pronunciar sobre algo, baixava o olhar, e a sua voz surgia sem o brilho dos olhos, como se, em certos momentos, o contacto visual a perturbasse ou desconcentrasse. Apenas segundos depois, reerguia o rosto, para compreender as consequências da sua frase. Era comum, na aldeia, pedirem-lhe conselhos. Ela dava-os gratuitamente e de bom-grado. Por vezes, a filha ocupada com os livros, à mesa, ela a auscultar os problemas de uma vizinha, por breves e repetidos segundos, um olhar de desdém para os livros, tal não passava despercebido à filha, que, nessas ocasiões, lhe sustentava o olhar, mas de lápis na boca. Sim, carecia de um singelo escudo. Note-se que a mãe realizou apenas a quarta-classe. De certa forma, e para a sua geração, já era uma privilegiada Mas a sua rapidez de cálculo matemático, por exemplo, estava nos antípodas da filha. E como ela fazia gáudio nisso! Aqui chegados, convém aprofundar a história desta família. A filha, de nome Eduarda, é a segunda filha de Alberto e Regina. Sim, tivera uma irmã, três anos mais velha. Há seis anos, no Verão, o rio, num abraço demasiado, subtraiu-a, para sempre, do horizonte terreno dos seus. Chamava-se Zilda, e, de facto, tirou, demasiado cedo, o bilhete para a derradeira viagem. Foi numa tarde quente de Domingo. Três famílias da aldeia desceram o vale para um piquenique nas margens frescas do rio. Havia mais crianças. Tudo corria como esperado, os homens entregues a jogos da malha, as mulheres, sentadas em cima das toalhas axadrezadas para a refeição, debatiam ocorrências da vida aldeã, as crianças a banhos próximas da margem, perto do regresso, três resolvem mais um mergulho, risos, jogos de água, alegria, gritos de felicidade, volta e meia, irrompiam pelas toalhas axadrezadas para mais uma sandes, um copo de água, uma fatia de bolo, Zilda entre os três, mas não regressou à superfície, os dois que regressaram apenas na margem se apercebem da ausência, dois homens atiram-se à água, o pai permanece, sob a sombra de um ulmeiro, num estatismo incrédulo, a mãe rápida da toalha axadrezada até à água pelos joelhos, em gritos inarticulados chamava pela filha, Eduarda, junto das outras crianças, tremia, não pelo ocaso iminente, mas por um terror que se lhe colava à pele, um dos homens regressa, numa correria ofegante e aterrorizada, à aldeia em busca de socorro. Nessa noite, demasiado próxima, foram poucos os que dormiram na aldeia. Regina fechou-se na capela. Na manhã seguinte, permanecia na mesma posição: ajoelhada e a correr, entre os dedos, as pedras suplicantes; Alberto sentado algures entre a desesperança e o desespero, à mesa da cozinha, acompanhado por vizinhos e amigos, que debitavam esterilidades vãs para preencher a certeza de um vazio; Eduarda no quarto, com os filhos dos amigos e vizinhos, questionavam a certeza desesperançada e desesperada dos adultos. A luz da manhã não aquietou os temores sombrios da longa jornada nocturna. Pelo contrário, só os evidenciou. Nesse dia, ao final da tarde, encontraram Zilda oitocentos metros a jusante, presa a um escolho. Aventaram-se, como sempre sucede, várias possibilidades: a corrente sob a superfície, uma pancada durante o mergulho, sim, havia um hematoma na testa, os pais ensurdeceram para as teorias e abraçaram o silêncio final do vazio. Alberto sentiu o regresso de Regina. Levantou o olhar e viu-a, apesar da noite de retiro e de orações, do constante entra e sai lá de casa, das bocas que se abrem à sua volta, embora eles as desejassem fechadas, da certeza crescente de uma subtracção lá em casa, ele achou-a bela, com um caminhar altivo, apesar de um ligeiro coxear pela dor sentida, mas, sim, sempre altivo. Não se olharam. Talvez por pudor, ou por escassez de verbo… Contudo, a certa altura da tarde, antes da certeza definitiva da partida, cruzaram-se no infindável vai e vem lá de casa, de novo, olhares baixos, mas as mãos procuraram-se numa sofreguidão de fome, assim que se encontraram, houve dedos entrelaçados e tudo se comunicou, numa linguagem para além de emissores, receptores, e do verbo… Assim que Alberto retornou ao seu lugar, à mesa da cozinha, sentiu uma bengala, de madeira, caminhante, a aproximar-se, numa lentidão familiar, até que uma mão, com uma força doce e segura, sobre o seu ombro, e uma frase, com a emoção quase a fugir-lhe, suspirada ao ouvido: Meu rapaz, meu rapaz, por favor, levanta-te… Assim que a bengala, de madeira, se dirigiu para outra divisão da casa, Alberto ergueu-se, ainda a tempo de ver o vulto paterno abraçar a nora. Percebeu-lhe as lágrimas pelas falanges que seguravam a bengala.

III 

E alguns com a soberba do saber, quando nem a nós nos sabemos… 

Encontrou a neta no quarto, demasiado concentrada num jogo com os amigos e vizinhos, para dar pela entrada da bengala, de madeira, caminhante. Tal como ao filho, pousou, em primeiro lugar, a mão no ombrito da neta. De imediato, ele viu aquele olhar subir à altura do seu, leu-lhe um súbito pânico por ser apanhada no momento de diversão, e vislumbrou-lhe um azedume passageiro, na sua direcção, por este desvelar. Antes de se sentar, tirou a boina, e meditou naquele azedume espontâneo em tão precoce idade. Olhou o tecto e suspirou. Tinha uma frase à espera de voz, preferiu levantar-se e sair. Eduarda permaneceu sentada, impassível, assistiu à partida da bengala, de madeira, caminhante, como é verdade: há silêncios, na vida, que gritam demasiado…

Eram onze horas, quando o pequeno caixão transpôs o portão de ferro, preto, ainda novo, com um qualquer indizível de dor, embora já oxidado nalguns pontos, talvez nos interstícios mais interiores, silencioso, como se compreendesse a sua função de vigilante imemorial do adeus. Praticamente, toda a aldeia o seguia num misto de espanto, incredulidade, e tristeza demasiada… Regina e Alberto amparavam-se mutuamente. Talvez para os mais distraídos. Se atentassem com mais pormenor, percebiam os passos decididos de Regina, o rosto focado apenas no destino, enquanto Alberto olhava em volta, como se procurasse um ponto de fuga, e a sua passada ainda mais lenta que o pensar. Eduarda seguia ao lado da mãe, de rosto caído, algures, em si, uma voz sussurrou-lhe ser esta a postura mais indicada, porém, tinha uma estranha sensação de estar aquém da realidade circundante, um pouco como o viajante que não domina o dialecto em vigor. Sim, um pouco isso. Somos tão estranhos! E alguns com a soberba do saber, quando nem a nós nos sabemos… O cortejo imobilizou-se perante uma escavação demasiado pequena para pertencer àquela realidade de uma espantada dor sombria. O padre procedeu à sua récita, que é, no fundo, o preâmbulo à materialização de uma certeza. Ou de uma esperança? De um regresso… Ou do desespero? Do fim… Enquanto as cansadas palavras do sacerdote se evolavam no calor jovem daquela manhã de Verão, cada um relembrava o rosto de Zilda, sim, é sempre o rosto que nos surge no início e no fim de tudo, Alberto a vê-la em todas as idades, desde que lhe imaginava uma face, quando pousava a mão no ventre dilatado de Regina, a socorria do choro e a levantava do berço, contrariando a autoritária voz materna, ainda se lembra do susto quando ela, com seis anos, a erguer, a custo, a enxada, com um sorriso nascido da frescura da espontaneidade, e no dia em que terminou a quarta-classe, a anunciar aos pais que iria ser médica para cuidar deles quando fossem velhinhos, de repente, já as pernas de Alberto cediam, e uma mão estendida para o segurar, de novo, uma frase sussurrada Então, então, meu rapaz, já falta pouco, já falta pouco… Aguenta-te! Deixa isso, para quando fechares a porta da tua casa. Alberto não percebeu que, enquanto as palavras ganhavam voz, uma bengala, de madeira, se afundava na terra. E que recordações guarda uma bengala? Talvez o carinho, sempre plural, que umas mãozitas lhe consagravam, sempre que o avô pedia por ela. Nunca um azedume, uma queixa, uma contrariedade, os olhos procuravam-na, e as mãozitas traziam-na no respeito de uma preciosidade. Afinal, como ela gostava de caminhar ao sabor das palavras, com aroma a saber, sussurradas pelo avô. Com o tempo, aprende-se o desperdício do barulho, afinal, a última estação é a do silêncio.

Assim que os olhares pousaram na terra, e o adeus se materializava na invisibilidade crescente do pequeno caixão – uma quase obscenidade! –, Regina preferiu olhar em volta, analisou aqueles rostos compadecidos, de vizinhos, amigos, familiares, conhecidos, menos conhecidos, e sabia-lhes a indiferença vindoura, talvez demasiado próxima, em alguns daqueles lares, esta noite ainda, serão tecidos apenas alguns comentários (Coitados daqueles pais… Tão novinha, coitadinha… Meu Deus, que injustiça! Como tal foi possível! Toda uma vida pela frente… E aquela família, que horror… Como irão ultrapassar isto? O Alberto quase não resistia…), o mais, será vida a chamá-los, no mais ínfimo pormenor, até que esta manhã se tornará uma memória demasiado longínqua, quase como uma impossibilidade, no entanto, ela, doravante, passará a viver numa outra realidade, sim, de facto, Regina soube-o logo naquela tarde, afinal, partiram quatro de casa e somente regressaram três. A sua dor é inexpressiva. Talvez pela profundidade. Sim, está além gestos e palavras. Quantas vezes o céu contrasta com o que nos habita? Hoje, pensava Regina, o céu azul e chove no tecto de mim. À sua volta, sentem o amanhã. Regina apenas o presente. Afinal, a dor ensina-nos o momento. E ela ficou, para sempre, enredada numa margem a olhar a corrente. É o lugar de muitos, nesta vida. Aqueles que conhecem uma dor inexpressiva. Talvez pela profundidade. Sim, uma dor além gestos e palavras. E assim que lhes é apresentada, no momento seguinte, já se sabem um outro…

Eduarda, por fim, a ceder à curiosidade, ergueu o olhar, percorreu os rostos em volta, de certa forma, constrangida pela insegurança que dali retirava, o abandono, o desespero, e, em alguma parte de si, uma questão a brotar: E o meu amanhã? O seu olhar, agora, num indistinto ponto, o que lhe permitia reflectir se Alguma coisa iria mudar? De vez em quando, surgia-lhe o rosto da irmã, sorridente, mas a sua atenção logo o obnubilava, o rosto sorridente a insistir, a atenção de novo lhe fugia, e uma certeza pétrea gravou-se-lhe no sentir, quando chegou a sua vez de depositar um vestígio de beleza numa tampa de madeira tosca, Ainda é tão cedo para me despedir…

IV 

Há dias que ensinam a vida

Os dias seguintes aconteceram. Sim, só se pode retirar essa evidência daquilo que não ilumina a memória. O pai entre a fábrica e a horta, a mãe absorta com os deveres domésticos, recorda-se da rapidez materna na execução das tarefas, como se fugisse de espaços vazios no viver, talvez, no fundo, Regina fugisse do pensar. De vez em quando, o padre de visita. Sentava-se à mesa da cozinha, de madeira, rectangular, enegrecida pela proximidade do lume, e falava pausadamente com Regina, que o escutava com uma expressão de saudade confortada. Alberto mantinha distância. Há alguns anos, começara a beber nos ideais da horizontalidade social. Desde aí, destilava aversão às alturas. Se calhava cruzar-se com o sacerdote lá por casa, baixava, pouco, o rosto, naquilo que considerava um cumprimento, e dirigia-se para o quintal, a saber dos animais. Sempre a horizontalidade. Regina não o censurava. Achava que cada náufrago tem o direito de escolher a sua boia. E, apesar de tudo, sempre cumpria com o dever da educação. Para Alberto, a situação era similar, desde que ela sobrevivesse. A bengala, de madeira, com o tempo, cada vez menos caminhante. Até que, numa tarde de Outono, caiu, para não mais se levantar, a caminho da praça da aldeia. Houve quem falasse de coração, houve quem atribuísse à idade. Sim, talvez fosse a sua hora. Afinal, todos temos uma, mas a maioria obstina-se em esquecer este singelo facto.

De novo, atravessaram o portão de ferro, preto, já menos novo, com um qualquer indizível de dor, embora já oxidado nalguns pontos, talvez nos interstícios mais interiores, silencioso, como se compreendesse a sua função de vigilante imemorial do adeus. Foi uma cerimónia mais recatada. A idade da bengala, de madeira, outrora caminhante, já apelava à discrição. A maioria dos que viajavam consigo, há muito que iniciara a descida da carruagem, ora em apeadeiros, ora em estações, alguns com o comboio ainda em movimento, mas, o que é certo, a carruagem foi-se despindo da familiaridade espelhada em faces sorridentes. Um dos primeiros abandonos, para sempre marcante, foi o da sua mulher. Houve quem atribuísse a bengala, de madeira, ao facto de ter desaprendido de caminhar, sem ela a seu lado, por esta terra agora feita noite. Alberto já tinha pedido Regina em casamento. Chegaram a adiar o enlace. A tuberculose, a ida para o sanatório, a restrição nas visitas devido aos bacilos, a passada a desacelerar, as forças num abandono de naufrágio, até que numa manhã, um toque demasiado insistente à porta… Houve quem falasse que um dia se transformou em décadas. É verdade, há dias que ensinam a vida. Alberto aportou na segurança de Regina. Nunca procurou outros confortos. Além da palavra respeito, o conceito de gratidão era-lhe sumamente próximo. Regina, nessa altura, chegou-lhes a organizar o lar: da cozinha ao tanque, encarregou-se de tudo. Ao ver o filho com um pé fora de casa, sem um porquê para o movimento, apresentou-se a uma bengala, de madeira, que o acompanhou até ao último degrau da carruagem. Diz-se que, antes de pisar a plataforma, a ouviram cair, talvez alguém o esperasse… 

 

V 

Estamos algures entre nós e o mundo

À medida que as sombras se iluminavam, aproximava-se a hora da primeira aula. Eduarda olhava, com insistência, o portão de entrada. O olhar só insiste num ponto quando se irmana do pensar. Por fim, viu-o entrar. Vinha com um amigo mais velho, numa conversa descontraída, ela incomodada com aquela visão, sem haver um porquê, hoje sentia-o ainda mais distante de si, o diálogo prosseguiu até à entrada do edifício escolar, ela permaneceu junto da bicicleta, por fim, teve de entrar. No intervalo seguinte, ela procurou, de todas as formas, o acaso de se cruzarem, que acabou, inevitavelmente, por suceder. Ela sozinha, ele com o amigo mais velho, por um incontável de tempo, os seus olhares encontraram-se, e tudo se disse... Afinal, um adeus pronuncia-se com o olhar. Onde ao certo se cruzaram? Em que intervalo? O que trazia ele vestido? Nessa noite, ela já não saberia o que responder. Porque estamos algures entre nós e o mundo. Numa zona indistinta em que sempre nos procuramos para nunca nos encontrarmos. E o outro? Apenas um longínquo e desconhecido continente. O mais, apenas pretensões estéreis e contos infantis. Victor e o amigo mais velho vinham a entrar pela porta principal do edifício escolar, ela viu-os por uma janela do piso superior, apressou-se a descer a escada, de forma a potenciar o encontro, já se habituava à difusa luz interior, quando se apercebeu dela – o amigo longe destes olhares –, vinha em direcção contrária, ambos sabem o que viram no esforço de vislumbrar uma qualquer outra coisa, ela leu-lhe um sentir refreado, como se ele soubesse os passos do seu destino e, de forma alguma se pudesse desviar, sim, naqueles fugazes segundos, pediu-lhe perdão, gostava de se ter demorado mais num muro de pedra à sombra de uns choupos, de lhe ter segurado as mãos ao mesmo tempo que se perdia no seu rosto, mas algo o traiu, uma compaixão jocosa ao contemplar os seus toscos sapatos, uma expressão contínua entre a face e as mãos que se traduziu num sentir inequívoco, como se, de repente, ele já um continente longínquo e inacessível, no fundo, talvez fosse a sua obstinação, de não olhar um pobre e anacrónico par de sapatos, que mais a feriu. Se ele fosse um outro, podia não reparar no seu calçado, apenas na sua face, e, ao acariciar-lhe as mãos, na frescura de uma sombra de Maio, gentilmente cedida por um choupo empoeirado, ambos sentados num muro de pedra, lhe tentasse alcançar os lábios para aí se revelar por inteiro. Por sua vez, ele na esperança de uma expressão distinta, mas não, ela, de novo, com um semblante deveras pesado, que fulminava qualquer resquício de uma hipotética frase de cumprimento, sabe o que a magoou, porém, como evitar que a vista não lhe descaísse para aquela obscena demonstração de pobreza? Apenas lhe queria transmitir que tudo não passou de um espanto puro, nada mais. Não, não houve qualquer desdém. Muito pelo contrário: uma revolta por alguém caminhar assim sobre o mundo. E, naquele corredor, escudado pela companhia do amigo, compreende que o seu silêncio se prolongou em demasia, entre o espanto puro e a revolta, ela já se afastara para o sol, ele no desamparo da humilhação ainda na sombra, afinal fora ela a deixá-lo, entre pares não se comentava outro episódio, e tudo por uma escassez de verbo, se uma palavra antes, talvez tudo numa outra direcção…

Quantos pensamentos não encontram o corpo da palavra pronunciada? De novo, no alto daquela colina entardecida, mãos no guiador, olhar no indistinto de uma dúvida jamais sarada, a sentir uma distância segura das coisas. Afinal, olhava tudo das alturas. A compreender que os outros são a ilusão de nós. De certa forma, um pouco vaga, despedia-se: de Victor, daquele vale, da aldeia dos pais, da escola, daquela vida, no fundo, despedia-se de si própria, do que fora até então. Dizia-se adeus. Até partir, seria habitada por uma sombra, nada mais, apenas uma expressão daquilo que os outros esperam de nós, talvez assim a paz na terra dos homens, quando habitamos na prateleira da alteridade, ela, por outras palavras, a sua mais recôndita vontade, de costas para o mundo, aguarda por um sono num canto da sua alma.

Nessa noite, a mãe demorou-se-lhe no rosto. Por fim, Resolveste esperar na ausência… Às vezes resulta, outras não. Depende do tamanho da paciência. Nada mais se disse. Ela, como expressão daquilo que os outros esperam de nós, fingiu ouvir com um sorriso benevolente. Mas num canto da sua alma, houve movimento, sim, é verdade, alguém anuía, a cada palavra da mãe, o sentido das coisas antes da chegada de um sono demasiado longo…

VI

Talvez a vida seja um desencontro em movimento 

Os carros já anunciavam a noite, os passeios num movimento de regresso, sacos com compras, uns mais pesados, outros de tão leves inclinam-se com a brisa do entardecer, alguns de mãos nos bolsos e passos hesitantes, como se procurassem, pela calçada, uma parte de si perdida, e nunca mais encontrada, mas que lhes retém irremediavelmente o passo, jovens de mochila às costas, ou com os livros na mão, falam da esperança sem lhe conhecerem a amargura do gosto, a esperança é a porta do futuro, mas, sem sabermos porquê, tem sempre um sabor pretérito, lá iam, passeio fora, leveza de movimentos, duas raparigas e um rapaz, mas também uma leveza de pensar, se ao menos o pensar lhes pesasse um pouco mais, ele no meio delas, falava mais com a do lado direito, que lhe sorria indulgentemente ao mesmo tempo que acelera o passo, ele no esforço de a acompanhar enquanto procura achas para a trémula chama de um ocaso dialogante, a jovem da esquerda num esforço suplementar para não perder aquele pelotão, e o seu olhar perde-se, sempre que possível, no perfil do rapaz que caminha a seu lado, talvez a vida seja isto, um desencontro em movimento, um grupo de velhas, talvez umas quatro, a regressar da eucaristia, embora naquela conversa arrastada não se vislumbre quaisquer sinais de boa nova, bem-aventuranças, ou de arrependimentos, muito pelo contrário, temas demasiado horizontais, que condenam ao malogro qualquer efémera tentativa de ascese, desde o embarcadiço, marido da vizinha do segundo andar, que apenas regressa por um mês, durante um ano inteiro, a casa, nessas quatro semanas ninguém lhes põe a vista em cima, quase não saem, a certas horas os gemidos ouvem-se do elevador, Uma pouca-vergonha, sublinha uma delas, logo outra a trazer à liça o jovem do rés-do-chão, do lote dez, cada vez mais magro, E com umas companhias…, no outro dia, a polícia foi lá bater à porta, Coitada da Dona Manuela! Parece que ele ainda dormia, a desgraçada foi acordá-lo, ouvi dizer que o levaram para interrogar. Acho que foi aquele roubo, de madrugada, ao padeiro. Ainda lhe deram três facadas! Desde aí, nem pão temos. Ainda houve tempo para descrever o rosto da Dona Manuela, quando o filho entrou na viatura dos indesejados, atrás dos vidros, com os punhos cerrados de encontro às faces, no esforço de conter um grito, por uma dor demasiada, pela humilhação, por ela, por si, por saber que, na indiferença do amanhã, o sol se irá de novo levantar… Antes de se separarem, um último tema sobre a mesa, a ruptura iminente do casal jovem do primeiro andar, do lote doze, vozes em crescendo por ali, louça que cai, portas que gritam, por vezes silêncio, movimentos, depois ela em choro, ele a sair, o carro em fúria, horas depois, um casal grisalho a entrar no prédio, talvez ela os tenha chamado, certamente os pais, conselhos ponderados, Quando as vozes se sobrepõem, é porque uma está a mais, ela anuía, por vezes, óculos escuros, ele regressa em cantos a horas de silêncios, logo as portas recomeçam em gritos, os vizinhos em cansaço, a situação aproxima-se de um abismo, sempre esta vertigem na vida dos homens, Que pena, são tão novos, podiam-se entender, logo outra riposta, Mais vale agora! Mais vale agora! Assim, sempre podem refazer a vida, é possível, pode ser que, dessa forma, ela aprenda a olhar o céu… Já é noite. Do dia findo, para alguns, apenas o cansaço. Para outros, porventura escassos, memórias que perduram sob a luz do ontem. A cidade recolhe-se. Ainda há regressos por cumprir. Talvez vá haver sempre.

Neste momento, ela atrás do balcão, a sorrir para a entrada, talvez nem sorrisse, apenas a máscara da circunstância, a colega, de cócoras, a atender um idoso, Então, que lhe parece? Não quer dar uma voltinha? Ele hesitante, talvez pelo cansaço de se erguer, nisto, a mulher, a seu lado, intervém Anda lá homem, já não temos o tempo, de imediato, ele no esforço da subida, a observar os sapatos ao espelho, a esboçar umas passadas, a deter-se na lojista, ainda no mesmo lugar, quase irmanada com o chão, talvez a sua alma, por cansaço, esteja ainda mais abaixo, ela a olhar para cima, e a não compreender que ele nunca saíra do seu lado, enquanto isto, mais um cliente loja adentro, ela, ainda com o balcão à sua frente, observa-o, um bom lojista conhece, à primeira vista, o comprimento da carteira de cada cliente, pela forma decidida como entrou, sabe ao que vai, mãos nos bolsos, logo esta forma de se mobilizar indicia uma total teatralização, influência, quiçá, do cinema francês, muito em voga nesta altura, de Trintignant a Delon, só lhe faltavam os óculos escuros, de massa grossa, como convinha, ela dirige-se-lhe, Procura algum modelo específico? Ele surpreso pela questão repentina, ou seria por aquele rosto? Ou pela hora e o rosto? Porém, não, ela não era bonita. Ainda menos bela. Mas não se pode afirmar que fosse um rosto desagradável. Muito pelo contrário. Ela percebeu-lhe o agrado. O diálogo, entre sapatos, fluiu de forma despercebida, no fundo, a única possível. Apesar da pose de cinema francês, ela leu-lhe a aldeia longínqua, ainda mais que a sua, o estudo apenas necessário, sonhos maiores que os passos, uma candura invulgar que o aproximava perigosamente do idiota, o sorriso envolvente, um atrevimento contido, e, quando voltou a si, estava num cinema de mão dada com ele. E não, por acaso, o filme não era francês. Já se tinham passado duas semanas. Após o cinema, ele acompanhava-a a casa, com respeito, se bem que, simultaneamente, sentisse quase uma obrigação de demonstrar a sua masculinidade, na forma de uma mão atrevida que procurava escalar uma saia, ela, em risos interiores e indignações externas, refutava-lhe a mão, ele, de certa forma, feliz pela comprovada seriedade. A mão continuou a sua escalada, lenta e obstinada, oficializaram namoro, marcaram, num Sábado, almoço para o apresentar aos pais. Ela regozijou-se de chegar à aldeia de carro. Ele chamava-se Rodrigo, era empregado, há alguns anos, numa pastelaria, para sua sorte, tinha a total confiança do patrão, ambicionava, um dia, ter o seu próprio estabelecimento, de estatura média, tinha um rosto infantil, que parecia resistir à erosão do tempo, até ao dia em que compreende a efemeridade, é estranho, mas há rostos assim, parece que perduram numa fotografia escolar, provinha de uma humilde família do interior, quatro irmãos, igualdade de géneros, os pais caseiros de gente abastada, ele é o mais novo, veio para a cidade em busca da cansada melhoria de vida, de verbo fácil e particular gosto na adição, sempre se viu no ramo comercial, hoje em bolos e pastéis, como amanhã em toalhas e lençóis. O importante, para ele, era estar. 

VII

Com este, vais viver bem na terra. Mas nunca vislumbrarás os céus 

Assim que o automóvel se abeirava da curva que precede a aldeia, ela acaricia-lhe o lóbulo da orelha direita, e, numa súplica feminina, que, note-se, nunca foi, em verdade, uma súplica, mas sim um canto, ancestral, que leva os homens a descansar a sua vontade, Vai mais devagar, por favor, ele a conotar com segurança, quando, em verdade, ela olhava para outro zénite, de imediato, ele a refrear a marcha, enquanto o sorriso dela se lhe alagava no rosto. O carro imobilizou-se mesmo à porta da casa. Não era um carro recente. Ele tinha-o adquirido a um colega mais velho. Mas tinha bom aspecto. E, afinal de contas, ela tinha partido dali, numa pardacenta manhã de Setembro, de camioneta. Ainda não se tinha desligado o motor, já o pai assomava ao portão. Sim, de forma espontânea, vivia tão o momento, que sem tempo para apresentações a malícias e afins. A mãe, por outro lado, permanecia resguardada. Quantas vezes acusara o marido: Sempre foste de vistas curtas. Nunca vês para além da tua sombra. Ainda por cima, não és alto… Ela, no interior do carro, apenas a olhar em frente. Nem por uma vez, um olhar lateral. Sim, tinha-se previamente disciplinado para esse fim. O pai, claro, aquém destes objectivos, apenas imensamente feliz por rever a filha, nem se preocupou, por um segundo sequer, em analisar o convidado. Ela, claro, saiu em lentidão do carro, para logo ser surpreendida pelo abraço paterno. Não estranhou, como é natural, a ausência da mãe neste preâmbulo… Após as apresentações, e as frases de demasiada circunstância, entraram, a partir dali, ela passou a olhar em todas as direcções. Encontraram a mãe a descascar um fruto. Ninguém se recorda de qual teria sido. O olhar dela, ao contrário do que sucedera há pouco com o pai, apenas em Rodrigo. Desviou-se para a filha apenas no cumprimento da educação. De resto, enquanto descascava (que fruta?), sempre no convidado. Estabeleceu-se, de imediato, uma corrente de simpatia entre o pai e Rodrigo. Para ambos, as sombras do mundo serviam para refrescar. Eduarda ajudou a mãe a pôr a mesa. A dada altura, a mãe Parabéns, minha filha. Com este, vais viver bem na terra. Mas nunca vislumbrarás os céus. Sim, nunca te faltará com o pão, mas jamais irás conhecer o sabor das nuvens. Eduarda estacou, incrédula com as palavras escutadas. Enquanto procurava ordenar palavras, na busca vã por uma resposta, já a mãe se afastara. A refeição decorreu com cortesia, o pai anuía às palavras do convidado e aos seus planos de futuro, de vez em quando Eduarda dava-lhe a mão, como se um estímulo à retórica, a mãe em silêncio, só, por altura da sobremesa, o rompeu (sim, já descascava uma peça de fruta): E, no seu futuro, encontra lugar para filhos? (Sentiu o calor hostil do olhar da filha. Manteve-se impassível, à espera de uma resposta. Simpatizava com o rapaz. Sim, achava-o apatetado. Sabia, de antemão, que ia ser um desgraçado nas garras da filha. Tivera sorte. E olho, diga-se. Da sua parte, tinham carta-branca. A questão, como é óbvio, não era para ele, mas sim para Eduarda. Daí a hostilidade do olhar. A mãe sempre soube que a boa pergunta já encerra, em si mesma, a resposta. Daí que a colocasse ao rapaz e não à filha…)

(Ele achou a pergunta banalíssima. Estava encantado com o pai de Eduarda. Quanto à mãe, via-a como uma senhora mais reservada. Não ia além desta suposição. Convém sublinhar, aqui chegados, que Eduarda nada lhe adiantou acerca dos pais. Não era tema que a seduzisse. E também não o queria influenciar. Ou assustar, seria mais honesto…) Sim, sim, com toda a certeza. Dois, pelo menos. O casalinho seria o ideal!

Mas que bom! Esse sempre foi o sonho da minha filha. Ter um casalinho. Sabe, a aspiração máxima de qualquer mulher é ser mãe. E Eduarda não foge à regra. Quando tenciona apresentá-la aos seus pais? (Note-se que esta peça de fruta ainda não estava toda descascada. O pai, neste momento, como quase sempre, com a lonjura. Talvez para sempre numa margem, com um sorriso incrédulo… Eduarda, como excelente bailarina, resolve trocar a hostilidade por um sorriso. Ou melhor: um semi-sorriso: véu do sentir. Por fim, Rodrigo considerou este diálogo mais que expectável. Afinal, a mãe até era uma senhora bastante comunicativa. E preocupada com a filha.) 

Logo que possível. Se quiseres (nisto, o que já indicia um respeito temeroso, algo que não passou despercebido à mãe, vira-se, com lentidão, para Eduarda), podemos lá ir no próximo fim-de-semana… (Crescia a compaixão da mãe pelo rapaz. Ainda nem casados estavam, e ele já em passadas curtas. Coitado, pensava ela! Vai ser engolido. Se, ao menos, lhe reparasse no olhar, podia ler-lhe o desdém por cada uma das sugestões aqui proferidas. Mas não, perde-se no conjunto, daí a sua cegueira.)

Foi Eduarda, enquanto se levantava, a arrefecer o diálogo: É melhor irmos andando, querido. Não te esqueças de que fiquei, hoje, de acender as luzes da montra. Simultaneamente, todos se levantaram. A mãe despediu-se deles ali mesmo. Não ia participar no número do carro. Achava ignóbil. Mais uma manifestação da pequenez da filha. Apenas isso. Nada mais. Nunca aceitou que a filha se afirmasse do mundo para si. Era a total inversão dos seus mais elementares valores: ela, que sempre se acostumou a pouco, cedo aprendeu a fazer valência de si mesma, daí que a sua afirmação sempre partisse de si para o mundo. Até hoje assim foi. Até ao fim assim espera ser.

O pai, claro, acompanhou-os. E não se coibiu de dar uma volta em redor da viatura. Mesmo depois de se terem diluído do seu olhar, permaneceu com a mão erguida na saudade de um gesto, sim, sempre de uma margem a olhar o longe, ela, nervosamente, à medida que o carro se afastava da aldeia, a olhar o anel de noivado, para não se confrontar com o vazio deixado após se digladiar com a mãe, com a crescente distância da aldeia, ela recompunha-se, ele sempre a debitar frases a seu lado, planos e mais planos, ela anuía, refugiada no seu semi-sorriso, de facto, o tempo dele era o futuro, mas o dela não era nenhum, do passado fugia, o presente apenas uma ilusão, o futuro uma promessa sempre levada pela corrente… E a imagem de uma mão erguida, na saudade de um gesto, a perseguir-lhe o pensar, enquanto algo lhe aquece a face, por ter silenciado, demasiado tempo, frases de ontem…

Assim que começou a sentir cidade, ela recompôs-se. O intensificar de trânsito, estradas mais largas, horizontes de edifícios, gente pelos passeios, montras, luzes, dissonâncias, sim, era no meio do torvelinho que ela se encontrava. A cidade dava-lhe o espelho da vida. Era este o seu lugar. Como isso é bom! Encontrar o nosso lugar no existir! Grande parte do trajecto de uma vida cumprido. Ou seria este o seu refúgio? Parte do itinerário de uma permanente fuga? De quê? Talvez de si… Afinal, ninguém foge do passado. Mas muitos fogem do que transportam às costas. Sim, a maioria corre para longe disso. Esta mudança de semblante passou despercebida aos olhos, sempre na distância, de Rodrigo, quando, afinal, tudo se joga no aqui. Encostou o carro frente à loja. Ela saiu enquanto abria a carteira para tirar a chave. Ele ficou, dentro do carro, a apreciá-la de costas. A sua mão ainda na encosta. Neste momento, numa ambivalência de sentimentos: por valores de fontes distintas: o orgulho pela seriedade da eleita: a frustração pelo inclemente refrear da sua natureza. Daí a ânsia por uma cerimónia de viajantes celestes, promessas repetidas, contratos oficializados, chuva de grãos de vida, momentos roubados ao tempo para sempre emoldurados sob vidro, que terão como destino olhares de saudade ou de uma crescente mágoa… Quando regressou a si, já a montra iluminada, a porta direita do carro a abrir-se, a frescura do anoitecer carro adentro, ela a sorrir-lhe, a perceber que ele viajara, daí a questão O que se passa, amor? sublinhada de preocupação. Ele, de certa forma, reconfortado pelo tom, com honesta candura a responder-lhe Imaginava o dia do nosso casamento… Ela com um sorriso, enquanto abria a mala, depositava lá a chave, se ele fosse um pouco mais atento, apenas ligeiramente mais, este gesto não lhe teria passado despercebido, porque o gesto é filho do sentir, e Eduarda desviou a sua atenção de uma inevitabilidade que teria de cumprir. Como se mais uma montra, a determinada hora, por iluminar. A cidade tem as suas exigências. Mas, desde que por aqui anda, nunca mais houve compaixão em quaisquer olhares à vista dos seus sapatos ou vestuário. Isso, ela nunca mais iria permitir. Fechou a carteira. Olhou-o. Beijou-o. Aproximou os lábios do ouvido dele: Achas que eu penso noutra coisa? Assim que a última sílaba a deixou, ela sentiu uma comoção sincera nele, abraçou-o, e, de repente, sentiu-se no alto de uma colina, sob a clarividência do cansaço, entre o doce afago das amoras, a sentir uma distância segura das coisas…

VIII 

Uma fotografia é um relógio sem ponteiros 

Ela acordou num quarto demasiado branco para conter vida. Ou talvez não. Demorou algum tempo a perceber-se. A dor forneceu-lhe o pouco que restava. Um ardor excruciante no baixo-ventre. Sim, os pontos. Que horas seriam? Tentou mobilizar-se, mas, de novo, aquele ardor. Como se uma chama sobre uma recente queimadura. Deixou-se estar. Pelos interstícios do estore, a luz prolongava as sombras, não muitas devido ao carácter asséptico da divisão, ainda assim, ela a perceber a proximidade dos passos da noite. Já os ouvia. Passado um indefinível de tempo, sempre o mais inquietante, afinal, somos uma essência de tempo, daí a nossa luta para o contabilizar, esquematizar, e, no fim, sempre derrotados, a porta abre-se, uma cara autoritária, emoldurada num uniforme condizente na sua demasia com aquela divisão, a sorrir-lhe, Então, está mais calma? Lembra-se do que se passou? Ela longe destas questões. A única memória que tem, é a de uma dor gravada quase a fogo. Nem responde, tal o espanto, mas as palavras também não se lhe formam. Por vezes, isso acontece. Talvez, nessas alturas, falemos de uma outra forma. A outra insiste, Espero que sim. Eu vou, agora, buscar o seu filho. Tem de o alimentar! Filho?! Que estranha palavra aquela… Uma reminiscência a despertar em si: a sentar-se nuns degraus, a sentir um desconforto frio, dor, um grito por ajuda, a vizinha que quase não sai de casa a ir ao seu encontro, uma frase repetida até ao cansaço, Chegou a hora, Chegou a hora, a ambulância, demasiadas vozes, Rodrigo de um longe, Estou aqui, amor, vai tudo correr bem, ela a tentar perceber o quê, uma voz, de si, a sussurrar-lhe para sossegar, nem pensar em se levantar, deixou-se ir, não, do que foi apenas ilumina isto, de novo a porta, a autoridade emoldurada de branco a regressar, acompanhada por gritos, a depositar, do seu lado direito da cama, demasiados decibéis, a anunciar com a solenidade possível, Eis o seu filho, ela a olhar, um incómodo crescente pelo barulho emitido por aquele diminuto ser, enrugado, escarlate, por fim, o cansaço a ser-lhe imperativo, na forma de uma questão, Desculpe, mas o que quer que eu faça? O rosto autoritário, pela segunda vez nesse dia, a turvar-se de hostilidade, a responder sibilantemente, Que o alimente, mulher, que o alimente, ela, Mas como… Ele não se cala, ajude-me, por favor, leve-mo daqui, de novo, a cena de há umas horas, pouco passou até à chegada da histeria, calmante aquoso pelo antebraço, o desespero siderado de Rodrigo na sala de espera, a preocupação pelo recém-chegado, que nem o alimento lhe concedem, e ela a regressar talvez ao desconforto de uns frios degraus, lugar de onde ainda não partira.

Despertou, desta vez, a sentir uma mão, de forma lenta, a passear-lhe pelos cabelos. Primeiro o sentir, só depois o ver. Sim, sempre assim foi. Para quê mudar isso? Surge-lhe, de uma estranha névoa, o rosto da mãe. Logo se inquieta, as poucas energias canalizadas para uma acuidade tão distante ainda. Se pudesse evitar um rosto, seria este. Olha-a da mais alta balaustrada de si. A mãe sorri. Minha filha, minha filha, e agora? Note-se que a sua mão persiste no enlevo. Descuidaste-te na tua trajectória de sobrevivente. Nunca te esqueças: não escolheste viver, mas sim sobreviver. E um filho não é um bom plano para um actor. Bem sei da insistência dele, mas como foste cair? (Ela esmagada por aquelas palavras, mas simultaneamente a sentir um certo reconforto, afinal, alguém a conhece. E isso é tão raro neste mundo! Daí o fascínio, daí o temor…) E agora, minha filha? Sei que tiveste de ser sedada já por duas vezes. Dizem que, por vezes, acontece. Não te preocupes, ainda não há falatório. Ele, lá fora sentado, só está preocupado contigo. Agora, a mim preocupa-me o inocente que ainda nem a mãe conhece. Vais alimentá-lo enquanto conseguires. Chegou a altura de representares um papel deveras difícil. Depois, alegas o que quiseres, que eu cuido dele. Não te esqueças: só se aprende ao olhar para cima. Mas disto, és incapaz! Sabes, serás sempre infeliz, porque viverás sempre contigo. Exactamente de onde foges a cada instante. Talvez seja esse o bálsamo da morte: libertarmo-nos de nós. (Apenas anuiu, e, mesmo ali, conseguiu refrear um longo alívio, sob uma forma suspirada, a actriz recuperava terreno em si. Nada respondeu. A última frase apenas lhe fez sentir chão sob os pés. Sim, de novo devolvida à terra. A mãe suspendeu o gesto de enlevo, levantou-se, e saiu. Nem uma saudação de despedida. De facto, não sabia representar. Escolhera, desde muito cedo, o lado da vida. Tinha ido, horas antes, visitar o neto. Permitiram que o sentisse nos braços. O calor emanado por aquele pequeno ser, iluminou zonas de si há demasiado tempo invernosas. E aquele perfil adormecido, como é estranho, parecia que o tinha recuperado das águas…

Ouviu, desta vez, um bater tímido na porta. Seguiu-se-lhe uma face temerosa. Ela a assumir um rosto extenuado, sim, recuperava bem, passos indecisos na sua direcção, uma questão surda, emitida num temor respeitoso, Como estás, minha querida? Ela a respeitar o compasso, antes a baixar os olhos, como se uma dor súbita, ele num esgar de aflição, a imobilizar-se, Estás bem? Esta mais audível, fruto de uma apreensão real, ela, com a mão, a incitá-lo a aproximar-se, esse gesto a transportá-la para uma noite do passado, após a longa cerimónia trajada de branco, um dia em que nem ouviu a voz da mãe, mas não se pode censurá-la, compreendeu que a filha, a cada instante, em vez de olhar, olhava-se, sempre a insularidade do egoísmo, o orgulho da actriz pelo desempenho, aplausos na forma do sobreviver, ao pai, pelo contrário, sentiu-lhe no braço, aquando da singular entrada no templo, todo um dilúvio de emoções, embora felicidade fosse a consubstanciada, do resto perduram instantes roubados ao tempo, sim, uma fotografia é um relógio sem ponteiros, rostos para sempre subtraídos, outros que as esquinas da vida afastaram, e esse momento, em que o mundo já uma sombra, povoada por centelhas longínquas, que nos mitigam dores e relembram amanhãs, de silêncio no verbo e respirares de afogados. Ela entregou-se num gesto de suicida diante do abismo, com um quê de curiosidade pelo provir, todavia, não lhe escapou a timidez dele, afinal, a sua mão, nesses instantes, em parcimónia, quando antes tão abnegada na subida, talvez ele quisesse colocar ousadia no lugar da timidez, sempre a imagem, mas as leis da natureza são-nos pretéritas, e tudo se cumpriu, embora ela sempre, tal como a suicida, de olhar velado. Talvez ele não percebesse. Talvez o sentir se sobrepusesse à razão. Enquanto o respirar se harmonizava, ela vislumbrou um ro 

IX 

Havia ali um qualquer desamparo de passeio sob a chuva 

Foi num aniversário que isto se passou. Talvez no quarto ou quinto. Ela e o marido a caminho de casa dos pais. À medida que a aldeia se aproximava, o assento a diminuir face a sua crescente inquietude. Uma vez mais, Eduarda com o silêncio. Ele a comentar campos e colheitas, enquanto ela em reunião de forças para a mãe. Caminhava para o aniversário do filho, mas esse facto tão longe, na realidade, nas faldas do seu pensar. Se, passado este tempo, nos detivéssemos a analisar o rosto dele, visualizávamos uma ligeira sombra de pesar. Como possível de outra forma? Sim, ele realizou uma escolha, sabe-o perfeitamente, mas soterrou essa certeza sob o peso de múltiplos escombros: o melhor para a criança, o conveniente emprego dela a uma considerável distância – como foi prestimosa esta mudança! –, a salutar e estável relação com os avós, ele sempre assoberbado, a parca disponibilidade temporal de ambos, o público a vê-los como vítimas (Coitados! Devem sofrer tanto, longe do filho… Imaginamos pelo que estão a passar. Mas lembrem-se: estão a cuidar do futuro dele. Um dia, há-de reconhecer o vosso sacrifício), e o mais importante: ela transparecia leveza… E se ela sorria, o mundo dele em Primavera… Logo que se aperceberam da vitimização do seu papel, intuíram a força inesgotável que aqui reside. Múltiplas vezes ali regressariam. Como uma fonte, de água retemperante, num árduo e poeirento caminho. A vítima apenas suscita compaixão. Nunca um julgamento. Desse modo, não chega a entrar num plano moral. Está para além dele. Por outras palavras: a sua entrada em cena não está sob um escrutínio crítico, porque surge imbuída num contexto esclarecedor, assim, apenas sobe ao palco para recolher a nossa simpatia. Nada mais. Quanto ao resto, como podemos avaliar se fomos velados a montante? Só assim, enquanto vítima, o seu papel tem préstimo. Há um sentido para tudo. Uma outra perspectiva sobre as coisas, obrigar-nos-ia a reeducar o olhar. A reorganizar tudo. E poucos nasceram para demiurgos. Se é uma vítima, há que torcer por ela. Apenas isso. Coitada, já deve estar a sofrer. É melhor corrermos em seu auxílio… Ele, claro, sempre guiado pela mão dela. Sozinho jamais encontraria o caminho. Mas, ali chegado, provou-lhe o gosto. E como gostou! Regressavam, em silêncio e de mão dada, a este papel. Interpretavam-no numa perfeição singular. Nem ensaios havia. Nada. Apenas a personificação. E quantos aplausos, ao longo de uma carreira, recolheram? Demasiados. Alguns ainda ecoam. Talvez uma outra perspectiva, um olhar reeducado, ajude na compreensão da excelência dos actores…

Assim que chegaram, uma imagem cansada: o pai, sorridente, à porta, a acenar-lhes, numa solidão de caminhante das chuvas. O carro já outro. Ainda maior. Ainda melhor. Ela em sorrisos para o pai, mas os gestos apressados denunciavam o nervosismo de um réu por uma sentença sempre adiada. Entretanto, genro e sogro num sentido abraço, talvez Rodrigo tivesse compreendido, desde o início, a porta mais cálida daquele universo. A mãe com a lareira, a cumprimentá-los como se já os tivesse visto nessa manhã, algo que sempre a feriu, esta indiferença cronológica, o banalizar da sua presença. Sim, a mãe sabia atingir-lhe a essência insuflada por um ego de uma inquietude sôfrega. Ela a disfarçar, com olhares rasteiros, a repulsa por aquela cozinha, como se nunca dali tivesse partido, de repente, a ser atravessada pela ideia de que, afinal, ali pertence, como se uma peça transviada, logo, o asco a submergi-la por esses pensares de fonte incógnita, como a maioria é, os olhares ainda térreos, a mesa, de madeira, ainda mais fumigada, tal como a chaminé e o tecto em redor, a lâmpada fluorescente num estertor cadenciado, nisto, Rodrigo a elevar a voz numa saudação que lhe soou demasiado a palco, ao virar-se, para a sua esquerda, deparou-se com o filho, que correu para a avó, ela a tomar como provocação, a sombra de pesar, na face do pai, a adensar-se, a avó a receber o neto num gesto de espontaneidade maternal, como se a parte regressasse ao todo, de facto, é um pouco assim, o avô lá fora numa qualquer actividade, talvez tivesse ido aos ovos, afinal, ouviam-se gritos alados ao longe…

Enquanto se procedia ao rito de canção, bolo, e velas, ela deteve-se no rosto da mãe. Era estranho, mas só agora percebia que algo dali partira há muito. Como se fosse um rosto que coxeava. Estava com a distância, talvez do tempo, enquanto a cantiga se precipitava para as palmas, afinal, a mãe também representava, fingia caminhar ligeira onde se arrastava numa dolorosa lentidão. Mas o acto de representar não faz parte da vida? Então, porquê essa censura? Assim que o neto, após as velas, de novo por perto, ela a recompor-se, de regresso ao aquém, e um rosto que dissipava a lentidão de um coxear através de passadas discretas e seguras. Quanto dela não ficou naquela margem? Talvez demasiado… Desde o nascimento que a vida nos vai abandonando. Por vezes, com maior velocidade, outras na ilusão lenta do perdurar. Mas sempre irreversível. E naquele momento, de subir o vale, não num regresso, mas numa ida para um desamparo anunciado, talvez a velocidade do abandono, para ela, tenha sido excessiva. Sim, sem dúvida. Tanto que nunca mais caminhou da mesma maneira. Um caminhar traduzido numa expressão para sempre sombreada por um céu invernoso. Havia ali um qualquer desamparo de passeio sob a chuva. Bastava perscrutar-lhe o rosto por um instante demorado. Aí residem todas as respostas. Não fosse o rosto a entrada da alma. Em que outro lado se grava cada biografia? Talvez por esse traço indelével, no rosto da mãe, sempre tenha invejado a irmã. Sim, partira, mas com isso garantiu-lhes a devoção. Hoje está mais presente, do que se respirasse a seu lado. Ela a estranhar-se. De onde emerge este sentir? O marido a seu lado. O filho do outro lado da mesa. Mesmo à sua frente. E todos tão distantes deste seu mundo! No fundo, vivemos condenados a dois mundos: o nosso e o dos outros: e os nossos dias vivem-se nesta ténue fronteira: sonhamos em nós: mas ferimo-nos no dos outros… Há quem lhe chame vida. 

X 

Quantas vezes o olhar nos apresenta o futuro? 

Numa tarde, talvez de Outono, sim, havia uma luminosidade límpida no ar, sem o excesso da Primavera, a calidez do Verão, e a desesperança do Inverno, ela a sair do trabalho, agora já perto de casa, com uma colega, aproximadamente da mesma idade, com valores similares, se havia dissonância, ela a subir ao palco no papel que a celebrizou, e aí mais aplausos e gratificações, como resultado as amizades ainda mais fortalecidas, antes de descer os quatro degraus, que as separavam do passeio, a inspirar aquele entardecer, a colega, a seu lado, com o jantar, ainda o jantar, o marido, qualquer coisa do trabalho dele, ela a não ouvir, não só por desinteresse, é certo, mas por estar em qualquer outro lado, faltava um degrau para virar à direita no passeio, quando o seu olhar, sem saber porquê, a levou para o outro lado da rua. Quantas vezes o nosso olhar nos apresenta o futuro? Ali estava ele (há quantos anos não o olhava?) no passeio em frente. Ia de fato, com um sujeito a seu lado, falavam animadamente, num primeiro ímpeto, ela a querer atravessar a estrada, a dirigir-se-lhe para falar, mas ainda um degrau para o passeio, a colega já o descera, agora com a escola do filho, ele a passar, sempre num animado diálogo, como se o mundo um recreio seu, isto sempre a irritou, mas, de novo, a doçura da sombra de um choupo no seu sentir, dele, neste momento, só as costas e o perfil, ainda a conversa, notava-se-lhe uma aura de sucesso nos movimentos e na expressão, por ali ainda não havia sombras, ou talvez houvesse e ele também adquirira o gosto do palco, é possível, desce o degrau em falta, a voz da colega mais nítida, resolve, sim, chamá-lo, mas algo em si se precipita, numa queda repentina, o seu olhar nos sapatos a imobilizá-la, enquanto sente a distância a engoli-lo. Nunca mais o viu. Soube dele por conhecidos, mas muito esporadicamente. Com o tempo, o rosto dele foi-se esbatendo na sua memória. Mas à medida que a imagem se diluía, aumentava a doçura das sombras derramadas de um choupo. No fim de tudo, perduram momentos, desvanecem-se rostos. Somos tão estranhos! Em última análise, estranhos para nós mesmos. Quem isto concluir, revela um pensar com as cores do mundo. Nessa noite, não voltou a articular uma palavra. Rodrigo, como sempre, aguardava-a no carro, a uns passos da entrada do serviço. A colega aproveitava a boleia. Hoje, de forma especial, ela agradeceu. Ajudava a povoar o silêncio exterior, dessa forma, os seus gritos interiores permaneciam inaudíveis… Àquela hora, já a face da noite perscrutava cada vida, e, ainda há tão pouco, cada um regressava na companhia da sua sombra. Como se ainda um convite há vida. Agora apenas a sedução de um recolhimento, como se fôssemos outros, e os de antes vivessem uma outra existência. Enquanto o carro pelas ruas da cidade, na melancolia de um regresso cansado de tão repetido, como se almejasse algo mais, mas sempre um pudor autoritário que silencia pensar e verbo simultaneamente, apenas o cumprir de um dever, jamais um expirar, ao mesmo tempo que o olhar planta interrogações no horizonte de cada circunstância, ela, a sentir a frescura do vidro na face direita, e, sem saber porquê, a ver, diante de si, o rosto sorridente da mãe. Sim, ela sabia. No fundo, sempre o soubera. Talvez fosse melhor assim. Mas como doía!

Nesta altura, já o filho com eles. Ela sempre aquém de uma ponte jamais tentada. Em verdade, nem o olhar se demorava por ali. Sempre que a cortina se levantava, abraços, beijos na face, presentes, mas a criança jamais aprendera palco. Pelo contrário, tornara-se um viajante do silêncio. Em vez de ouvir o dobro do que falava, conforme lhe ensinara a avó, ouvia o quádruplo. Um sorriso no rosto, gestos de suposta tranquilidade, uma obediência de sobrevivente, e, sempre que possível, o telefone, um número discado na pressa, e a voz que o libertava do silêncio, assim que férias da escola, ninguém lhe precisava de ensinar os passos para uma casa, onde, de facto, o ensinaram a caminhar pelo mundo. Parte do seu silêncio deriva de uma culpa, nunca assumida, mas que o rondava numa ferocidade uivante, pelo abandono maternal. Jamais verbalizado. No fundo, tratava-se de uma ferida do pensar. Talvez a sua compreensão sempre aquém do acontecer. É possível… Daí a sua culpa pela incompreensão das coisas. Afinal, com ele a natureza em desarmonia. Todavia, cada gesto, mesmo o mais ínfimo, a espelhar esta sua inquietude essencial. Parecia viver de costas para o futuro. Ou talvez o seu futuro seja o passado. Há pessoas assim. São raras. Na realidade, são aquelas que, a dada altura, se enganam no caminho, e não regressam para corrigir, apenas pela poesia de viver à sombra de um se… Como se iluminadas pela tragédia de fechar uma porta da existência. E, desse modo, respirassem um pouco à parte dos restantes mortais. Sim, de novo, a sedução de certos papéis. Há fardos que nunca nos cansamos de carregar. Como se explicassem um cansaço das coisas, que nos faz viver a uma distância segura do mundo. O pai conseguiu erigir uma ponte débil com o filho. Não tinha a vocação da paternidade, é certo, mas denotava-se-lhe um esforço em cumprir com o papel, como se um imperativo ético. A debilidade da sua construção advinha da presença de Eduarda. A sua presença, aos olhos dele, ofuscava a própria realidade. Como era estranho! O que lhe ensinou aquele lar? Muito cedo, aprendeu a desconfiança. Não há melhor fonte para a desarmonia. Como se, no espaço de uma casa, habitasse vários mundos, consoante os protagonistas. Quantos mundos cabem numa casa? Talvez os sonhos que consiga albergar… Certa tarde, não há muito, talvez por médico ou qualquer outra coisa, foi buscar o filho ao liceu, este aproxima-se do carro naquele passo que olha qualquer coisa de indefinível, logo o pai atira Despacha-te que temos de ir buscar a tua mãe! Senta-se, sem tempo para uma saudação, já o carro obedecia a mudanças e aceleramentos, ainda assim, tanto tempo depois, surge-lhe o espanto na forma de uma questão. O curto trajecto entre o liceu e a entrada do serviço da mãe, com aqueles degraus, em que depois vira à direita, fez-se sob um silêncio nervoso e apressado. Por fim, conseguiu imobilizar a viatura antes da hora de saída. Expirou. De seguida, retirou o jornal do banco traseiro, o filho, a seu lado, num mutismo de espectador. Virou-se para o pai, que hesitou, assim que sentiu um olhar a derramar-se sobre si, em abrir o jornal, e perguntou-lhe, com uma voz longínqua, como se um eco da distância que viaja no vento, numa súplica indignada, na eloquência de ancião, Porquê?  

Cair  

A mulher caminha sempre à frente do homem

Certa noite, ela ainda de candeeiro aceso, a folhear uma revista de horizontes demasiado planos, ele de olhos fechados mas pensar aberto, vira-se ligeiramente (Não achas que o miúdo está cada vez mais fechado?), o olhar dela a deixar a revista, numa contrariedade próxima da irritação (O que é que estás para aí a dizer?), agora vira-se por inteiro (Não é um miúdo feliz!), a revista cai (Onde foste buscar essas ideias? O que queres dizer? Foi a minha mãe que te inculcou esses disparates?), ele a endireitar-se na cama (Ridículo! Hoje, quando o fui buscar à escola, apercebi-me de que há uma lentidão triste nele. Como se fosse mais velho que os outros. Nada, nele, é espontâneo), ela também já direita, até porque tem uma revista para apanhar (Andas cansado do trabalho. Está tudo bem com ele. Preocupa-te em não o estragar com mimos), ele a acender o candeeiro do seu lado (Se ao menos tivesse um irmão…), ela, num último momento, a disfarçar uma expressão de repulsa, a olhá-lo como se uma criança que esboçasse um tolo desejo, mas nada se diz, sim, a mulher sempre a uma idade segura do homem (É uma ideia a considerar. Mas temos outras prioridades de momento. Não te parece?), nisto, ele já de regresso à almofada (Sim, tens razão), a desligar o candeeiro, de certa forma, numa leveza, sempre aparente, porque o seu rosto há muito sombreado por um pesar, por tê-la confrontado, ela de regresso à lisura daquelas páginas, mas o olhar, neste momento, a assentar na nuca dele, a revolver aquelas palavras, ainda por largos minutos, já antes, mais ou menos por trimestre, ele e o silêncio do miúdo, conseguira sempre encaminhá-lo para outras paisagens, sim, a mulher caminha sempre à frente do homem, hoje já é tarde, e ainda não terminou a revista, a ver se amanhã, antes do sono, encerra um trimestre para contabilizar um novo. De facto, a mulher caminha sempre à frente do homem.

É claro que não houve mais filhos. Com o tempo, ela cada vez mais à frente. Ele no cansaço de uma abnegação órfã, de lhe seguir os passos por uma capitulação de si, algures, e, na sua crescente fadiga, a carecer de menos espaço, Eduarda a expandir o seu, sempre a vontade, o tempo de espera, por ela, enquanto folheava o jornal numa atenção decrescente, a aumentar, certa tarde, enquanto ela no cabeleireiro, ele com o jornal, dentro do carro, sempre estacionado perto do destino, a familiaridade de um vulto, no passeio, a erguer-lhe a vista de misérias impressas, era o filho, a mãe alertara-o para, logo que findas as aulas, ali vir ter, pelos vistos, ele a cumprir, a mão do pai, estática, entre sentir e pensar, pronta a rodar no sentido de abrir o vidro, o filho a passar pelo carro sem se aperceber, como se absorto por qualquer coisa, se o pai atendesse à passada demasiado hesitante, percebia que o dominava um temor absoluto, agora, a olhar a entrada do prédio cabisbaixo, apesar das intenções, da manivela firmemente agarrada, a mão ainda imóvel, tantos afectos naufragados entre sentir e pensar, a vontade numa margem apenas a assistir, afinal uma mera espectadora à espera de um chamamento, a mão a persistir na sua imobilidade, no passeio, agora, apenas a ausência do filho, e nos seus dedos as marcas de um gesto por cumprir. Sempre no tempo de espera por ela. Como se a vida se suspendesse. Nunca compreendeu, na sua existência, a distância entre viver e sobreviver. Talvez tenha ficado a meio caminho. Suspenso numa indecisão. A quantos não sucede isto? Talvez devido à dificuldade do primeiro, optem mais pelo segundo. É possível. Sempre é mais cómodo e garante de amanhãs conhecidos. Mas, no seu caso, porquê uma capitulação tão prematura? Terá, ao menos, um vislumbre do primeiro? Há quem desista de horizontes no receio de se perder…

Não era a primeira vez que entrava no cabeleireiro. Desde que se conhece, este um dos destinos primeiros da mãe. Situava-se num primeiro andar de uma alameda de Lisboa. Aqui chegados, podemos questionar se ele terá visto o carro do pai. Se, porventura, não simulou desatenção na esperança do chamamento paterno. Tudo pode ser questionado, mas tão pouco é respondido… Sobe a escada, nem acende a luz, sempre preferiu assim, fugia das evidências, afinal, possuía uma alma nocturna, toca à porta, uma das empregadas vem abrir, uns anos mais velha, envergava uma bata que lhe conferia um ar de cirurgiã, a tesoura na mão atestava que lhe haviam interrompido o desempenho do ofício, o olhar certificava-lhe a pouca tara da sua bagagem, e, a avaliar pela cor da cabeleira, a sua proveniência seria extensível a qualquer canto do sistema solar. Assim que entra, é invadido por um cheiro a vasos capilares requentados, misturado com o ténue aroma, demasiado artificial, de champôs, e o ininterrupto roncar mecânico dos secadores, que sempre lhe traziam à memória, sem saber muito bem porquê, qualquer coisa de metropolitano, tudo compassado pelo tinir, como se gaivotas em orla marítima, das tesouras.

Quem busca o ontem esquece a circunstância 

Entrou com uma passada ainda mais hesitante, do que aquela evidenciada, há pouco, no passeio. Os livros debaixo do braço direito, a olhar aquele estranho universo – há coisas, felizmente, que nos serão sempre estrangeiras –, em que, por todos os meios, se procura o ontem. Ainda na busca de palavras, no sentido de uma frase, para dizer ao que vinha, quando a voz da mãe, de novo, a subida ao palco, o sorriso, o abraço, a encaminhá-lo para uma cadeira, a voz numa afabilidade que lhe julgava impossível, afinal, subestimava os dotes maternos para a representação, ele, uma vez mais, numa incredulidade espantada, um observador mais atento aperceber-se-ia daquela expressão desarmante, mas quem busca o ontem esquece a circunstância. Assim que refeito do espanto pela actuação materna, a readquirir a sua peculiar expressão, um hermetismo observante, sim, andava por aí, não se pode dizer que fosse fechado, havia nele uma curiosidade pelas coisas, sobretudo pela causa das acções humanas, é compreensível dada a sua biografia, afinal, sempre tivera dificuldade em encontrar palavras, talvez por viver sob o domínio de uma (Porquê?). Há muito que lhe evitava o olhar. Ela, de certa forma, também. Quando o olhava, era sempre, ou para uma ordem ou recomendação, de carácter generalista, nunca se demorava por ali, parecia, quando pisava aqueles terrenos, estar sob as leis do tempo, como se caminhasse por uma plataforma ferroviária, talvez ansiasse por uma partida, sempre adiada, ele, por seu lado, desistira, vencido pela amargura da lucidez, como é verdade, não se sonha sob a luz, sim, o sonho caminha pelas sombras, contudo, no passado, chegou a estender-lhe os braços, a articular uma palavra que ela só conhece pela superfície, e, com tanta distância à sua volta, regressou a si, aí fundou a sua própria cidade (Quantas idades não terá atravessado? Como o tempo é estranho! No fundo, o tempo é sempre individual…), de onde partia apenas para uma casa de aldeia, onde sabia que uns braços estendidos o aguardavam, e que havia quem conhecesse a essência das palavras. 

À sua volta, ninguém lhes compreendeu a insularidade. E que distância entre duas ilhas! Ela a manter o sorriso, sim, a representação, ali, pelos vistos, a perdurar, ele, como sempre, num registo hermético, mas numa varanda, neste caso, fascinado com a qualidade da protagonista, e a tentar compreender de onde tanta inspiração… Talvez nunca ali chegue, se tal sucedesse, percebia-lhe a amargura, e, aí sentado, via-lhe reflectido no olhar, não uma criança, neste caso, um filho, mas sempre a imagem humilde de uns sapatos envergonhados… Se ele, ao menos, fosse filho da sombra de um choupo… Antes de saber o mundo, já o mundo sabia dele. Sim, nascemos com um passado, e sempre trocamo-lo pela incógnita de um futuro. Esquecemo-nos de que já somos, antes de sermos. Há demasia na espera de nós, e nunca estaremos preparados, é natural, depois, dizem que errámos, mas é falso, apenas não queríamos um passado tão distante. Não temos alforges para tão pretérita caminhada. Ele a olhá-la, e sempre uma repulsa, houve demasiadas coisas cedo na sua vida, poder-se-á afirmar, em verdade, que compreendeu antes de experienciar, sabia, há muito, que ela nunca derramaria um olhar similar ao da avó, ou àquele que aguardava os colegas na hora da saída, daí a lentidão do seu passo, só caminha assim quem se cansou de olhar o mundo.  

Sombras esquivas que reflectem, sem sabermos muito bem porquê, a impossibilidade de um regresso

Uma tarde, ao deixar Andreia à porta, viu Madalena. Há quanto aquele rosto ausente da sua circunstância? De repente, foi como se encontrasse um lugar, para si, no mundo. Sim, encontrar-se é saber-se perdido. Ela ainda com o longe. Andreia não se apercebera da irmã. Fixava-se, apenas, em Henrique. Ele declinara subir. Preferia assim. Talvez houvesse demasiados ecos naquela casa. Talvez, por ali, o tempo um só. Madalena cada vez mais presente. Ele a já não conseguir disfarçar a atenção, por fim, Andreia a saudar a irmã, esta num cumprimento geral, de repente, ele a saber-se indefeso, de certa maneira, ridículo, sim, sem dúvida, há coisa mais ridícula do que propor-se subir uma montanha e não passar do sopé? Assim ia o sentir dele, enquanto Madalena aproveita o desviar da irmã para deixar a cena, de novo, eles os dois, talvez não fosse bem assim, são preciosas as vezes em que realmente somos só dois… E Madalena, quantos regressos não cumpriria? Não é um regresso, um arrependimento? Madalena evitou tantos olhares, que acabou por se prender a um que olhava numa outra direcção. As poucas vezes que se demorava nela, souberam-lhe a uma vida. Era médico lá no hospital. Enfrentava um divórcio iminente, segundo se ouvia dizer Dois filhos para somar. Mas aquelas eternidades justificavam-lhe o existir. Encontravam-se num apartamento que ele dizia arrendado, contudo, ela veio a descobrir que pertencia à mãe, entretanto depositada num lar, mas antes do emergir das respostas, por outras palavras, antes da necessidade das questões, afinal, ainda mais a montante, tudo em harmonia, marcavam uma hora, ele aguardava-a já dentro de casa, nunca lhe quis dar uma chave, ela também não se lembrou de pedir, ele, detentor de um peculiar sentido de humor, à sua maneira, apresentou-lhe um certo mundo, ela grata, após a vertigem ritmada da urgência dos sentidos, ficavam preguiçosamente deitados, como se desafiassem o tempo, sobre colchas e lençóis emaranhados, quantas vezes ela lhe repetiu a questão A que sítio pertencemos? Ele sempre aquém do amanhã da questão, escudava-se num lugar-comum, ela sonhadora de novo com a questão A que sítio pertencemos? Questões da vida, como sonhos por iluminar. Tudo se diluiu com uma naturalidade quase obscena. Estavam ambos de banco. Noites de hospital, noites de gritos de uma dor só. Num momento de pausa, ela atravessa corredores de desespero, até à enfermaria onde ele se encontrava, uma desculpa profissional para se justificar por ali, mas ele ausente, a sua pausa a expirar, regressava quando o vê sair de um gabinete, num esforço patético de naturalidade, acompanhado de outra enfermeira, que se digladiava com uma chuva de cabelos para repor a touca, ela cola-se à parede do lado oposto do corredor, numa ânsia de invisibilidade, passa por eles, nada é dito, nem um cumprimento, de novo, uma questão cansada lhe surge A que sítio pertencemos? Ainda hoje, Madalena só sabe os sítios que abandonou… 

Henrique e Andreia acabaram por se juntar após o términus dos cursos. Sem cerimónias dos deuses ou dos homens. Apenas um homem e uma mulher que, num dado momento, resolvem partilhar silêncios. Até quando? Não se preocupavam com isso, tinham aprendido uma passada cautelosa e segura. Madalena, para ele, acabou por ser uma sombra, afinal, não passara do sopé, difusa do passado. E ele aprendera, há muito, a temer regressos. É compreensível. O horizonte do seu passado assemelha-se a uma noite, demasiado longa, de palavras impronunciadas e de gestos abandonados. Já antes do lar, nunca se proferiu a palavra filho. Ela, por motivos óbvios, para sempre de encontro a um escolho do destino, e a inclemência da corrente no perdurar da memória com uma nitidez de há instantes. O indelével de nós a esmagar-nos de encontro ao pó. Ele jamais ousara assomar à janela desse horizonte. De novo, o caminho já percorrido antes de sermos. Como se destinado, nesse particular da existência, a um falhanço que sabia não ser seu. Assemelhava-se a um emissário de distante reino. Não, não podia permitir. Talvez houvesse egoísmo neste apartar de horizontes. Mas em que acção humana não está presente? Em menor ou maior quantidade, sempre espreita, de algum canto, como para nos relembrar uma ânsia sonhadora por um público que aplauda, numa aceitação incondicional, cada acção heroicamente por nós desempenhada. Em verdade, nunca se arrependeu. Temia contemplá-lo com o olhar da mãe. Esse seria o seu maior falhanço. Como se, em si, já corresse tal veneno. Não queria corroborar tal possibilidade. As respostas sempre nos habitaram, as questões é que chegam sempre depois. Sem dúvida! Que pena esquecermos isto. Quantos desvios se evitavam… E quantas ilusões iluminariam, ainda, um se sonhado no possível de uma madrugada, com o seu doce cântico de sereia na lonjura…

Com o tempo, aprenderam a completar silêncios. Ele fascinado pela luminosidade inata do feminino. Gostava de roupa feminina pela casa, mas não apreciava jardins, sim, a cada um, as suas flores… A cumplicidade crescia no respeito da individualidade de cada respirar. Como primeira casa, alugaram um pequeno apartamento num desses bairros da capital, em que, de manhã, os passeios se povoam de frutas e legumes das mercearias, e, à noite, de sombras esquivas que reflectem, sem sabermos muito bem porquê, a impossibilidade de um regresso. 

Como se o coração quisesse passear pela terra 

Certa tarde, o telefone insistente, talvez soasse como um grito de náufrago, ela, por acaso, àquela hora a entrar em casa, a dirigir-se-lhe de imediato, antes do auscultador, um temor frio por si (sempre de uma fonte sombreada), cinco ou seis frases trocadas num decréscimo evidente de palavras, devolve o auscultador, e senta-se no banco, de plástico, ao lado da mesinha. Por uns momentos, imóvel, apesar do torvelinho do seu pensar. Evidenciava uma expressão de espanto resignado. Sim, algures por aí. De seguida, pousou a carteira em cima da mesa da sala de jantar, e arrumou as compras. Pensou ligar ao marido, mas algo a reteve. Se lhe pedissem para explicitar o quê, ela não saberia o que dizer. Ele chegou, com o filho, pouco antes do jantar. Chamou-o à parte, e contou-lhe que, nessa tarde, um vizinho encontrou a enxada do pai caída ao lado do seu corpo, por essa altura, o coração ainda respirava, mas quando chegou a ambulância, talvez pela demora, talvez pelo cansaço, o áspero cabo da enxada, primeiro, a repousar na terra, ele numa tontura, uma impressão no peito, como se o coração quisesse passear pela terra, o suor na testa a turvar-lhe a visão, a tontura a insistir no regresso ao chão do mundo, ele a ceder, e como última imagem, antes da Verdade, o tortuoso cabo da enxada, que expirava a seu lado, talvez nunca tenha havido imagem mais verdadeira – primeira ou última. 

Partiram na manhã seguinte. Ele ainda insistiu para ser nessa mesma noite, mas ela demoveu-o (É perigoso viajar de noite. Não achas precipitado? O que é que íamos adiantar? Chegávamos a horas impróprias…), como sempre sucedia. Ele a ceder, a desculpar-se, a atribuir-lhe razão, e, de imediato, a adormecer um pensamento, com uma voz rouca, que lhe segredava qualquer coisa acerca daquela frieza diante da súbita morte do pai. Não tardou a ser escorraçado, até que um dia não lhe bateu mais à porta. Quantos pensamentos não desistem de nós? Partiram cedo, na frescura ainda sossegada da manhã. A viagem decorreu em silêncio. Enquanto o verbo se cala, o pensar viaja. E, neste caso, o destino era o mesmo: um qualquer lugar de memórias. Quando alguém parte, o destino imediato dos que ficam reside num passado comum. Como se a cerimónia da despedida fosse uma viagem, comum e individual, por momentos que ressuscitam, sob máscaras de dor e de silêncios, um rosto já ausente. E, com o tempo, vamo-nos povoando de ausências. Um vazio galopante à nossa volta. Talvez seja isso viver: a compreensão do vazio. Mas em nós as vozes. Como se garantias de uma veracidade que, num certo momento, questionamos, talvez pela rapidez absurda de tudo, afinal, o mundo sempre outro, e a nossa compreensão das coisas sempre tarde num encontro jamais concretizado.

Foi a primeira vez, segundo a sua memória, que encontrou a mãe sentada e de rosto caído. As mãos escondidas. Nem sinais de peças de fruta desveladas numa cuidadosa perícia de cirurgiã. O neto contorna os pais e corre a abraçá-la. De súbito, mãos lívidas destacam-se do negrume geral, para o acolher. Ela e o marido, de pé, assistiram àquele abraço comunicante, talvez por uma dor comum, e compreenderam que a sua exclusão, daquele mundo, há muito fora sentenciada. A filha não se admirou de já tudo estar tratado. Das questões humanas às divinas, essa escadaria com sempre mais um degrau, e ela sempre no encalço da mãe. Por fim, a velha a erguer-lhes o rosto, o neto agora a seu lado, o genro aproxima-se, beija-lhe a face, e olha-a com as emoções reveladas, a filha segue-lhe os passos, um beijo na face direita, demasiado fugidio, ao contrário do marido, uma expressão impassível, enquanto a face materna numa ruína por um dia que nunca devia ter acontecido. A mulher conhece o homem, a filha apenas o pai. Daí os equívocos dos filhos e os seus julgamentos liminares. Não se conhece um rio apenas pela foz. Há todo um montante para o perceber. Mãe e filha, lado a lado, receberam palavras e gestos do possível, antes do abraçar da terra. Mas como pode uma ruína ser ladeada por um véu? No entanto, assim foi. Talvez por isso, e apesar da hora, a mãe irradiasse uma certa luz, sim, uma ruína é sempre uma compreensão da dor. O nosso olhar turva-nos certos lugares. Como se bússola do pensar. Mas a vida sempre nos acaba por apresentar a terra sob uma qualquer forma de luz. Mais uma vez, atravessaram o portão de ferro, preto, a carecer de manutenção, em cada um a dor vivia a sua diferença, oxidado em diversos pontos, silencioso, como se compreendesse a sua função de vigilante de um imemorial e cansado adeus. O neto ficou mais uns dias. Eduarda e Rodrigo partiram de manhã cedo. Deixaram a aldeia pelo caminho que ela tanto pedalara, como se numa outra vida, quando passaram pelo terreno dos pais, ela ergueu a vista, pareceu-lhe ver uma figura de costas para a estrada, pernas afastadas, tronco arqueado, e de enxada nas mãos. Sem saber muito bem porquê, sentiu a aspereza do cabo da enxada. O carro a seguir, estrada fora. Ela, neste momento, a ver-se, ali, parada, numa imobilidade expectante, na margem da estrada. A figura continua a cavar. Vestia um daqueles pares de calças que ostentava a geografia do tempo, uma outrora branca camisa desabotoada, e na cabeça pontificava uma boina que cheirava a sal e a terra. Raros são os objectos que comportam estes odores: sal e terra: o sonho e a realidade. A enxada continuava, através do seu movimento vertical, a trazer o céu à terra. De cada vez que subia, o cabo reflectia luz, para, logo de seguida, mergulhar na seiva da vida. Ela assim ficou, por uns instantes, agora sentada na bicicleta, a assistir àquele labor secular, protagonizado pelo pai. Ela baixa o rosto e serve-se de uma mão para disfarçar um mundo que adormecera em si…

E o mundo tornou-se uma saudade imensa

Entrou no quarto e dirigiu-se para a varanda. Tinha uma passada de caminhante com dúvidas. Só quem se vê de longe, caminha assim. Na varanda, ficou, de mãos nos bolsos, a contemplar as águas agora alaranjadas, e sempre silenciosas. Ela secundou-o. Assim que o olhar dela reflecte aquele silencioso entardecer líquido, logo a mão no ventre. Um gesto do tempo, por uma dor sempre do agora. Ele apercebia-se do gesto apenas pela expressão, que traduzia um adeus nunca pronunciado, sim, é quando o mundo se torna uma saudade imensa. Estende-lhe a mão, e ela, como sempre fazia, aceita numa súplica de falanges para saber que o vazio ainda um lugar distante, vira-se para ele Como estás? Ele ainda com aquele espelho entardecido, talvez na procura de uma sombra vertical que proclamasse harmonia, mas nem vislumbre de um vulto unificador de águas e céus, no horizonte, neste momento, apenas o respirar da terra, Cansado. Afinal, tudo não passa de uma enorme desilusão pelo nada que foi dito, e pelo tudo que ficou por dizer. As falanges a serenar enquanto os olhares agora repousam naquele silêncio de fim. Ela acrescenta Esta é a tua história. Cheguei a meio. Porém, conheceste-me no cinzento e trouxeste-me para o azul. Ele sorri. Vira-se para ela e beija-lhe a face. Assim ficaram, até que um ligeiro frio lhes relembrou noite. As águas silenciosas agora em prata. Regressam ao quarto ainda de sentires entrelaçados. Fecham a porta de vidro. Acendem um candeeiro. O mundo, lá fora, já uma noite imensa. Enquanto eles se sorriem sob uma luz.

Pedro de Sá

(25/08/13)