Livros

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segunda-feira, 25 de outubro de 2021


 ... quando temos um livro aberto, há sempre uma multidão entre nós e o mundo...

in Anoiteceu

domingo, 17 de outubro de 2021

Hoje subiu a maré em mim



Está há quanto ali sentada, a olhar talvez um esquecimento, naquela sala com aroma a despedidas e a fugazes reencontros. A sentir o desconforto oscilante daquela cadeira plástica, os odores entardecidos à sua volta, a brancura desesperançada das paredes, uma mãe com o filho ao colo, um oscilar compassado por um contínuo murmúrio de palavras cantadas ao ouvido, o miúdo de olhos entreabertos, ainda assim percebe-se-lhe água no olhar e espinhos no sentir, um polegar na boca para lhe relembrar casa, mais à frente, um sujeito com o casaco escarlate, a cor que corre demasiado depressa entre copos e punhos, uma das mãos de encontro às costelas, uma expressão de espanto, como se não compreendesse a sua circunstância, ou a si mesmo, embora se tivesse perdido de si há muito, no fundo, é tão difícil seguirmos os nossos passos por este mundo! É compreensível que alguns caiam de cansaço, como talvez seja o caso dele, e permaneçam numa sede de esquecimento, afinal, ninguém gosta de se saber caído. Uma mulher aproxima-se dele, receosa, os trajes condizentes com a sua postura, humildes, ele dá pela sua presença, levanta o olhar, ela recua um passo, talvez dois, sempre o receio, talvez em casa também copos e punhos, ao menos quando havia obra ele mais calmo, por vezes, acompanhado de um sorriso a entrar em casa, levava-a ao café da rua, com o tempo, os sonhos dela povoaram-se de paredes, talvez o passeio até ao café não fosse mau de todo, porém, há muito que lá não ia, desde que o patrão dele fugira para Espanha, uma licença que nunca mais chegava, as desculpas com a cor dos dias, por fim, uma manhã de silêncio, o esqueleto da construção num obsceno abandono, eles apenas gritos interiores de uma certeza negra, ainda equacionaram segui-lo, mas a leveza dos bolsos gritou-lhes a impossibilidade. Ela hoje não ouviu o praguejar dele escada acima, confiou numa oração para que o vociferar, o passo arrastado, os impropérios, ecoassem, de novo, pelos degraus subidos a custo, mas a resposta a uma oração tem o tempo desencontrado do nosso compreender, e só após o serão televisivo, em que se esquece de si para viver vidas que não suas, talvez aí as paredes dos sonhos se diluam um pouco, sim, sem dúvida, nessa altura o seu horizonte ousa ir além de um café de bairro, quando olhou o vazio daquele travesseiro por preencher, como se uma natureza não se cumprisse, ela decidiu-se pelo telefone, e após repetir o nome dele cerca de quatro vezes, localizou-o num destino adivinhado. Ele indicou-lhe, num gesto eivado de dor, a cadeira plástica vazia do seu lado direito. Reticentemente, ela sentou-se, sempre o temor, as paredes dos sonhos, assim que os ombros se ladearam, houve algumas frases, sempre demasiado curtas, de repente, ele com a mão no rosto, a respiração entrecortada, cedia, sim, percebia-se caído numa qualquer sombra do mundo, agora via uma mão estendida para si, trémula, receosa, sempre demasiado receosa, mas era a única que se obstinava na tentativa de o erguer. Nada mais via.

 O seu olhar deixa, agora, o casal, para se perder em pontos indistintos de si, é quando nos olhamos com o pensar. Percebemos, aí, quão tortuosa é a nossa geografia. Pelo menos a dela assim o era. O que ali a retém? Naquela madrugada de Outono? Mantém uma postura impassível, como se pudesse estar num qualquer outro lugar. Mas algo a trai. Se a olharmos atentamente, por algum tempo, percebemos a cadência com que vislumbra as portas oscilantes, de onde emana uma dor demasiado plural para ser humana… Por quem espera? Só esperamos, em verdade, por quem nos conhece. Talvez, àquela hora da madrugada, ela aguarde por um vislumbre de si num outro. Às vezes é o que esperamos do mundo, para nos sabermos vivos. Persiste naquela contenção de gestos. Mas o olhar continua a traí-la. Que história encerra aquela cadência ansiosa? Àquela hora da madrugada? Haverá muros nos seus sonhos? Talvez não. Não há receio no olhar, temor nos gestos, nem horizontes de cafés de bairro… Ela é apenas alguém que espera parte de si. A sentir o desconforto oscilante de uma cadeira plástica, rodeada pela brancura desesperançada das paredes. As portas oscilam incessantemente. Entram mais do que saem. Há lugares assim. Geralmente, são as últimas estações. De novo, com o casal. Ele já normalizara a respiração. O temor, nela, capitulara face ao casaco escarlate. A sua mão pela face dele, num gesto decidido. Ele sorria àquele calor. Talvez, para nos sabermos vivos, um horizonte de café de bairro, por vezes, seja o suficiente… 


 


 

... e nesta rua deserta anoitecida, uma frase levanta-se em mim de um ontem tão ontem As amoras sabem a Agosto…

in Por ruas desertas anoitecidas